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Os Dois Amores/XXXI

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Ao tempo que o amor de Cândido e da "Bela Órfã" vacilava entre dúvidas, e ia vivendo a vida de todos os primeiros amores, ora animando-se com um sorrir de esperança, ora estremecendo diante de uma quimera, de um receio, ou de um fraco contratempo, caminhava o amor de Henrique e de Mariana ao seu desejado termo.

Poucos dias faltavam para que viesse o himeneu coroar aquela constância com que se haviam sabido amar os dois.

Aproximava-se a noite do dia em que o jovem do "Purgatório-trigueiro" despertara ao bramir da tempestade.

Sucedera a uma manhã feia e borrascosa uma tarde amena, fresca e bela. O céu estava claro, a atmosfera leve, a natureza em horas de magia.

Mariana achava-se só na sala do "Céu cor-de-rosa"; Anacleto saíra; Celina tinha ido despedir-se do dia entre as flores do seu jardim.

Meio deitada no sofá, em voluptuoso abandono, com os olhos quase completamente cerrados, com os lábios levemente dilatados pelo mais gracioso dos sorrisos, a interessante viúva contemplava em sua imaginação o quadro da ardente felicidade que a esperava; fruía de antemão todos os prazeres, todas as delícias com que durante tão longos anos debalde sonhara.

Seu mundo estava ali... dentro dela; dentro dela, em sua imaginação, reunia em belo grupo todos os entes que amava; conversava com eles, sorria para seu pai, recostada ao seio de Henrique.

Nem uma só nuvenzinha escura naquele imenso céu belo e sereno que estava criando; era uma dessas horas mágicas, que em vão se procura nos dias que se passa na terra, horas que se vive meio-dormindo, meio-acordado, quando se está só, e se está sonhando...

Era uma dessas viagens encantadas, viagens longas, de dezenas de anos e de milhares de léguas, que se faz com os olhos fechados, com o sorriso nos lábios, sem mudar de posição, e às vezes em uma só hora, em cinco minutos, ou mesmo em rápidos instantes.

Estava pois Mariana embebida naquele mar de gozos imensos, naquele mundo de abstrações deleitosas, quando...

Talvez mesmo passava nesse momento por diante de seus olhos a mais cara de suas imagens, porque ela apertou as mãos com indizível ardor contra o coração, e exalou um anelante suspiro, quando soou o rodar de uma carruagem que parou à porta do "Céu cor-de-rosa".

A viúva soltou um pequeno grito e ergueu-se inopinada­mente.

O mundo abstrato acabava de esvaecer-se; a realidade fria e pesada chegava.

O rosto expansivo e belo de Mariana contraía-se dolorosamente.

Tinha reconhecido o rodar daquela carruagem: aquela carruagem trazia-lhe um tormento sempre que parava junto do alpendre do "Céu cor-de-rosa".

A porta da sala abriu-se.

— O sr. Salustiano! disseram.

— Que entre! murmurou a viúva.

E o rosto de Mariana tomou uma nova expressão; tornou-se frio, mas sossegado.

Salustiano entrou, e veio sentar-se junto da viúva.

Encontravam-se ainda uma vez a sós esse homem e essa mulher que se aborreciam tanto.

— Parece que um anjo benfazejo me protege, disse Salustiano. Sempre que desejo falar a V. Exa. sem testemunhas, uma ocasião própria se me oferece.

— Hoje então...

— V. Exa. se admirava talvez de me não ver há muito tempo, não é assim?... perguntou sorrindo o mancebo.

— Oh! não; respondeu secamente Mariana; V. Sa. deu-nos o prazer de passar conosco o último serão; foi ainda há dois dias.

— A resposta não parece das mais lisonjeiras; mas também é porque me não fiz compreender; eu dizia que V. Exa. talvez já se admirasse de me não ver procurar alguns momentos em que pudesse falar-lhe a sós.

— Também não. Pensava ao contrário que V. Sa. já tinha exigido de mim tudo quanto exigir podia, e que pela minha parte eu já me havia mostrado obediente demais.

— Demos que assim fosse; não quereria porém V. Exa. pedir-me a entrega de alguma coisa que julgasse pertencer-lhe?...

— Confesso que não pensava em tal. Confiava na sua honra, e julgava que não seria preciso pedir-lhe o que o dever ordenava a V. Sa. que me entregasse.

— Oh! mil vezes agradecido; V. Exa. pela primeira vez em sua vida parece acreditar na honra do mais humilde de seus escravos.

— Senhor... de que serve aqui a ironia?

— Já vejo, minha senhora, que conserva todas as suas antigas disposições; ama a verdade e a singeleza sobretudo.

— Entendamo-nos, senhor, disse Mariana com sangue frio. Devo crer que não foi simplesmente para zombar de mim, que teve a complacência de vir hoje a esta casa.

— Oh! não, por certo.

— Pois então fará o obséquio de explicar-se. Estamos sós. O que quer de mim ainda?...

— Primeiramente eu vinha depositar aos pés de V. Exa. os mais sinceros parabéns pelo seu próximo casamento.

— Agradecida.

— Oh! eu tenho uma inveja desesperada de um noivo de moça bonita. Acreditará V. Exa.?... estou louco por casar-me.

— Felizmente para V. Sa. o remédio é fácil.

— Então aconselha-me?...

— Que se case.

— Esse é o meu desejo, certamente; e como em V. Exa. se concentra toda a minha esperança, eu não hesitei em correr a seus pés.

— Senhor...

— Falemos com clareza: não ignora que amo a sua sobri­nha.

— Sei ao mesmo tempo que minha sobrinha não o ama.

— É verdade; disse com sangue frio imenso Salustiano, E se eu tivesse podido agradar à "Bela Órfã", acredite V. Exa. que dispensava completamente a sua intervenção.

— E não tendo podido agradar-lhe, senhor, a minha intervenção será sempre improfícua.

— Tenho a certeza do contrário,

— Estou hoje convencida de uma verdade que V. Sa. adivinhou antes de todos; minha sobrinha já ama.

— É uma dificuldade, convenho, mas...

— Quereria por acaso ligar-se a uma senhora que amasse a outro?...

— Sua digna sobrinha, minha senhora, tem a educação da virtude.

— Oh! mas a educação da virtude abafa, porém não mata nunca o amor! a mais nobre, a mais pura das virgens que se desposasse com um homem, amando ao mesmo tempo a outro, sem querer, a despeito de esforços inauditos, seria infiel na alma a seu esposo.

— Mas uma virgem cristã...

— Uma virgem cristã não desposa o homem que não ama. Deus proíbe esses laços sem nobreza. São laços ilegítimos. Em tal caso, ou não há verdadeiro casamento, ou o casamento é um sacrilégio.

— Quantos sacrilégios tem portanto havido neste mun­do?... disse Salustiano.

— Não é uma razão para que continue a havê-los,

— Pode ser que V. Exa. tenha toda razão; tornou o moço descansando uma perna sobre outra. Mas o pior é que, ou eu me engano muito, ou me acho desesperadamente apaixonado; e conseguintemente surdo à voz da razão, cego à luz da verdade, vinha dizer a V. Exa. que eu teria o maior prazer deste mundo se no dia do seu casamento se assinassem as escrituras do meu.

— Creio que não conseguirá o que pretende. Minha sobrinha é mais forte e decidida do que parece, e meu pai ama-a muito para querer sacrificá-la.

— V. Exa. nada fará por mim?...

— Eu não posso fazer nada.

— Sejamos francos, minha senhora; pela última vez, sejamos francos; demos cartas para jogarmos a última partida.

A voz de Salustiano tinha mudado de tom, como seu rosto tomara uma expressão fisionômica toda nova, era o senhor que se erguia diante da escrava.

No semblante de Mariana apenas uma ligeira contração dos músculos labiais atraiçoou seus padecimentos interiores.

— Sejamos francos, disse Salustiano; eu sei que a minha presença nesta casa é incômoda a todos; sei que seu pai me aborrece, que sua sobrinha me despreza e que a senhora me odeia como a vítima odeia o algoz.

Mariana não pronunciou uma só palavra, não fez mesmo o menor sinal, o mais leve movimento para desmentir Salus­tiano.

O mancebo prosseguiu:

— E no entanto, senhora, tudo parece ser disposto por um poder superior para que eu me ligue a esta casa.

— Poderes superiores, senhor, concebem-se de diversas naturezas, observou Mariana.

— Um feliz acaso, já o tenho dito muitas vezes, continuou Salustiano, pôs a mais soberba e orgulhosa das mulheres sob a dependência do mais fraco e humilde dos homens.

— Que humildade!...

— Mas tudo devia ser compensado; e assim como esse feliz acaso me deu aqui o caráter de senhor, o meu coração e o meu amor me faz curvar a cabeça como um escravo.

— E o que mais? o que mais?...

— Eu vim mesmo encontrar nesta casa recordações da minha infância. Há alguns meses um velho ocupa aqui o lugar de guarda-portão, e esse velho, senhora, viu-me nascer, viu-me crescer, e apenas depois da morte de meu pai deixou a minha casa.

— É possível?! exclamou Mariana. Um traidor! um es­pião!...

— Não; nada de injustiças, respondeu Salustiano. Eu e esse homem não fomos, nunca, amigos; e, além disso, acho-me hoje no caso de poder dizê-lo, porque tenho sabido velar por meu amor. O velho Rodrigues é protetor do jovem Cândido; ele entra todos os dias no "Purgatório-trigueiro", e, ou o ciúme não sabe adivinhar segredos, ou esse maldito velho tem concebido o pensamento de ligar o seu protegido à "Bela Órfã".

— Enfim, senhor...

— Enfim, senhora, estamos hoje dependendo um do outro: somos dois furiosos inimigos, que uma dependência mútua pôde tornar amigos devotados. Uma palavra diz tudo: um documento por uma mulher, senhora!...

— Que audácia!...

— Trocaremos, no mesmo dia, a mão de uma jovem bela por meia folha de papel de peso.

— Que sarcasmo!...

— Oh!... mas não é simplesmente meia folha de papel de peso! é um nome que se pode atirar ao meio da rua... é uma reputação que se pode nodoar para sempre...

— Senhor!...

— Escolha.

— É uma infâmia!...

— Embora; fará com que sua sobrinha seja minha esposa?...

— Nunca!

— Bem; vingar-me-ei.

— Embora! exclamou Mariana com ardor; já me tenho curvado demais, já tenho arrastado meu rosto pela terra muitas vezes, já tenho comprometido a salvação de minha alma. Minha alma que se purgue de seus erros, que expie suas culpas na humilhação e nos tormentos que me esperam!

— Oh! como lhe parecer.

— Já tenho sido fraca demais! minha reputação... não tem sido ela quase que nodoada já? não consenti, porventura, que se persuadissem que eu amava um homem que aborreço? eu, mulher casada, não passei por namorada de um moço sem nobreza? não se lembra, senhor, dessa terrível noite em que um cravo rajado passou de meu peito para seu paletó?... que disseram todos? disseram uma calúnia; mas quem teve culpa dessa calúnia foi a minha fraqueza.

Salustiano levantou os ombros e sorriu.

— Ainda há poucos dias, senhor, para não revolver mais o passado, ainda há poucos dias não pratiquei uma indignidade?... não caluniei minha inocente sobrinha fazendo um honrado mancebo acreditar que ela o desprezava por ser pobre? não bati com a porta de minha casa no rosto desse mancebo?... oh! o que quer mais?... o que pretende ainda?... devo eu ser miserável toda a minha vida? não repara que uma vida assim é pesada como um fardo enorme? não! não! e não!... faça o que lhe parecer: perca-me, mas pela minha parte basta de humilhar-me ante um homem sem generosidade.

— Bem, disse com frieza Salustiano; posso então fazer da carta que está em minhas mãos o uso que me parecer?...

— Que indignidade!...

— Não responde?

— Faça o que quiser.

— Oh! vê-se bem que a senhora não se lembra do que escreveu há vinte e um anos passados!

— Senhor!

— Cuida que nesse papel existe apenas a confissão de uma falta que às vezes o mundo desculpa?... não, senhora! ali se confessa um erro e um crime!

— Senhor!...

— Um crime que horroriza a natureza... um crime pelo qual a justiça de Deus há de condená-la a penas terríveis, e a justiça dos homens pode arrastá-la ao banco dos condenados, ao cárcere, ao patíbulo mesmo!

— Senhor...

— Oh! quem diria que esta mulher orgulhosa e insolente, que se apresenta em toda a parte com a cabeça tão levantada, carrega sobre a cabeça o mais horrível dos crimes?.

— Miserável!

— Sim... sim... miserável embora; mas este miserável pode aparecer com o rosto descoberto!... senhora, tudo está decidido: eu rompo o seu casamento, eu mato a sua ventura, eu me vingo!

Mariana arquejava.

— Primeiro irei ter com o homem que loucamente a ama, e mostrar-lhe-ei a sua carta... ou... se não... ah!... que idéia!..

O mancebo soltou uma risada. Mariana não achou em seu furor uma palavra para dizer-lhe.

— Tudo pode acabar em paz, minha senhora, disse com fingida amabilidade Salustiano: não haverá nem banco de condenados, nem cárcere, e muito menos patíbulo; a senhora casar-se-á com aquele que ama, e eu desposarei a jovem que adoro.

Mariana ficou olhando, e o terrível moço prosseguiu:

— Dispenso também a sua intervenção; achei um belo meio... que estupidez a minha!... deveria tê-lo há mais tempo lembrado. Aparece apenas um inconveniente: há um velho que talvez morra de desgosto... paciência.

Mariana estremeceu.

— Amanhã, senhora, terei uma hora de conferência com o honrado, austero e amoroso sr. Anacleto. Quando eu o deixar só levarei a certeza de ser o esposo de Celina, e ele ficará mudo e terrível, pálido como um cadáver, e se falar, falará para amaldiçoar sua filha.

— Oh!...

— Porque ele há de saber (há de saber pela própria letra da senhora), que a filha de seu coração, que a orgulhosa e bela Mariana, no meio das mil loucuras de seus primeiros anos, amou um homem... e amou tanto... tanto... tanto... que perdeu-se por ele!...

Mariana escondeu o rosto entre as mãos.

— Há de saber mais, que depois de cometida a primeira falta, cometeu ainda um crime abominável; há de saber que sua filha, em resultado de um momento de embriaguez, tinha de ser mãe; que inspirada pelo demônio, não o foi; não foi mãe... porque... porque...

— Oh!... bradou Mariana.

— Porque matou seu filho.

Sucederam a essas terríveis palavras alguns momentos de silêncio. Mariana estava convulsa, tinha os lábios pálidos, o rosto cadavérico, as mãos estendidas para diante, e trêmu­las como se quisesse defender-se de algum objeto; e com os olhos pasmos e terríveis, parecia talvez estar vendo diante dela a imagem do filho que havia assassinado.

Depois de algum tempo ela murmurou fracamente:

— Infanticídio... infanticídio...

Soltou um grito e desatou a chorar.

Salustiano, insensível e silencioso, esperou muito tempo que Mariana sossegasse um pouco. Quando a viu menos so­bressaltada, disse-lhe:

— Então, senhora?...

— Perdão, senhor; balbuciou a desgraçada pondo-se de joelhos.

Salustiano ergueu-a, fê-la sentar e continuou:

— Nada do que ouviu será sabido. No dia em que eu me casar com sua sobrinha, queimaremos juntos a carta fatal.

— Mas o que é que eu devo fazer?... perguntou a mísera viúva.

— Primeiramente fazer com que esse mancebo que mora no "Purgatório-trigueiro", desapareça destes lugares; conseguir dele uma carta para sua sobrinha, carta em que se apague toda a esperança de amor.

— Oh! mas isso é impossível.

— Nada é impossível, senhora.

— Porém de que modo conseguir isso?...

— Uma mulher que se ajoelha e chora aos pés de um homem consegue tudo, principalmente quando esse homem é um moço.

Mariana abaixou a cabeça.

— Depois, prosseguiu Salustiano, convirá que seu pai se interesse a meu favor, convirá que a "Bela Órfã" ouça os seus conselhos, e até os seus rogos; e, em último caso, é preciso que se imponha.

— E se ela resistir?

— É uma criança; resistirá ao princípio, chorará depois, e cederá no fim.

— Está bem.

— Não voltarei a esta casa, concluiu Salustiano levantando-se, senão na véspera de seu casamento, e então... ou se hão de assinar as escrituras do meu, ou... a senhora o sabe...

Salustiano saiu.

Meu Deus!... meu Deus!... exclamou Mariana dolorosamente; eu não pensava qu e a minha desgraça fosse tão grande!... eu não me lembrava de ter escrito a confissão do último crime!... Oh!... isso foi loucura... e a loucura que me fez escrever tal, é o primeiro castigo da Providência!...



Quando Salustiano deixou o "Céu cor-de-rosa", o velho Rodrigues estava sossegadamente sentado na porta do alpendre... mas não cantava como de costume.