Os Glutões
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Que os gazeos olhos pela mesa espalha
Por ver se ha mais comer que tire ou peça,
Entrando n’elle com tal fome, e pressa
Qual faminto frizão em branda palha;
(N. Tolentino.—Soneto.)
Oh tu quadrada Musa impavesada,
Soberana rainha da papança,
Borrachuda matrona insaciavel
Que tens o corpo pingue, e larga pança ;
Oh tú arca bojuda que resguardas
O profuso fardel das comidelas;
Amasona terrivel, devorante
Té capaz de engolir mil caravelas :
Esganiça o pescoço longo-estreito,
Em linha poem os teus animalejos,
Os horridos abutres, feyos lobos,
Porcos, gallinhas, gatos, percevejos.
Vem á triste morada do trovista
Um canto lhe inspirar que cheire a bife,
Para a fama elevar dos lambareiros
Sobre as grimpas do monte Tenerife.
Vem filha do pincel do grande Alciato
Dourar os versos meus que, descorados,
Não podem atrahir Leitores sabios,
Amantes da lambança e bons guizados.
Derrama n’estas linhas desbotadas
O perfume odorante de linguiça,
Do payo portuguez, do bom salame,
Que a fome desafia, e nos atiça.
Transmuda o negro véo da escuridão,
Que a vista me detem, cerrando os olhos ;
Um quadro me appresenta em que divise
Saboroso pastel com seus refolhos.
Presuntos de Lamego, perús cheios,
Roastbifs, e leitoens, tenras perdizes,
Tostado arroz de forno, nabos quentes,
Ganços, marrecas, patos, codornizes.
Fervendo, em niveas taças crystallinas, ...
Espumante Champagne, geropiga,
O bastardo, o madeira, o porto velho—
Que tem a via lactea na barriga.
Cerveja da godemia, maraschino,
O licor de Campinas, decantado,
Que faz sua visita, pelas onze,
A' gente de focinho alcantilado.
Bojudos garrafoens, quartólas cheias,
Em linha de batalha, á romper fogo,
A' sucia comilona provocando
A gula saciar, por desafogo.
O còro das bacchantes estrondosas
Em dilirio bradando o—evohé;
N'um canto a negra morte esborneada,
Tomando uma pitada de rapè.
Fortalece meu estro, oh grande Musa,
Estende os cantos meus pelo Universo,
Que um hymno á teus alumnos se consagre,
Se tam sublime preço cabe em verso!
Dos glotoens já cadentes leyo a fama
Nas paginas de um livro quinhentista;
Vejo a gula amolando as ferreas garras,
Para em guerra tenaz fazer conquista.
E's tu valente Clodio—o fero Anibal
Que rompendo na frente dos papoens,
Vais mostrar a potencia gargantona
Dos xeques da bebança, e comiloens.
Refere o grão Macedo, autor de nota,
Que só tu n'uma ceya chupitaste
De saborosos figos uns quinhentos
Além de dez meloens que inda mamaste.
E, para terminar o tal repasto,
De tordos seis dezenas consumiste,
Do fructo da videira vinte arrateis,
Com mais ostras quarenta que engoliste.
Melon Crotoniense, por basofla,
Um touro devorou, de quatro annos;
Theogenes tambem, famoso atleta,
Por aposta comeu tres bois cabanos.
E Phago, em lauta mesa—á custa alheia,
Transportou para a pança tres leitoens,
Dous carneiros, um ganço, um javalí,
De senteio cem paens, quatro meloens.
Mithridates, honrou com pompa e cultos
Os vivos sorvedouros ambulantes,
Com premios distinguiu canina fome,
Dos avidos abutres devorantes.
Cambyses, rei da Lydia, em certa noute,
Atracou-se á consorte com tal gana,
Que a metteu inteirinha no bandulho,
Como quem imbutia uma banana!
O ebrio Philoxeneo lamentava
Um pescoço não ter de braças mil,
Onde o vinho corresse a pouco e pouco,
Como corre das pipas n’um funil.
À fecunda Bretanha viu, com pasmo,
Um filho d’essa Roma armipotente,
Que de seixos comia cinco arrateis,
Um bóde semi-morto, e meyo quente.
E tam feya a garganta se mostrava,
Que em horror excedia uma cratera;
E tam forte o appetite que nutria,
Que a si proprio comera, si podera!
Outros muitos heroes refere a historia,
Que deixo de narrar, por carunchosos,
De feitos singulares, tam tremendos,
Que os guerreiros deslustram mais famosos.
Desdobre-se a cortina bolorenta
Sobre os nomes dos filhos lá da extranja;
Repimpem-se no templo da victoria
Os brasileos heroes que comem canja.
Vinde, ó Nymphas cheirosas dos outeiros
De nocturnas essencias perfumadas
Mimosas cavalgando urbanos tygres.
Os nomes burrifar-lhes; vinde, oh Fadas!
No vasto pantheon quero que brilhem
Os lúcidos varoens do meu paiz;
Em tela de algodão pintados sejam,
Com bôrra de café. agua de giz.
Ethereo Caravagio trace as linhas
Dos comiloens de rúbidos toutiços,
Que o tonel das Danaides tem por pança
Onde cabem, sem susto, mil chouriços.
Callem-se os Celtas, Gregos e Romanas;
Silencio! oh tuba Aonia e Lusitana!
Erguei-vos, oh glotoens da minha patria;
Temos côco, cajú, temos banana!
E tu, audaz Macedo, registrante,
De ronceiras façanhas já caducas,
Vê quebrarem-se as guelas portentosas
Quaes se quebram no chão frágeis cumbucas.
Dos Clodios e Miloens prodigios altos,
Do ebrio Philoxeneo heroicos feitos,
Sem viço, desbotados—já sem côres,
Por terra vam cahindo, em pó desfeitos.
Juncto d’elles assoma ousado e forte,
O dente arreganhando, um deputado
Que com quatro apoiados retumbantes
Nos cofres da Nação tem manducado
Um longo diplomata aparvalhado,
Com pernas d’aranhiço, extenso pé,
Que na Europa se fez profundo e sabio
No trafico do fumo, e do café.
Retumbante engenheiro de compasso,
O lume encaixotando nos planetas.
Mettendo em Capricórnio Libra e Venus—
0 sonante metal chucha com tretas.
Centenas de empregados—gente limpa,
Que os penedos não roe, por não ter dentes,
Encaixando no fradel das comidelas
A patria reduzida a dobroens quentes.
Famintos tubaroens, sedentos monstros—
Immortaes thesoureiros d’obras pias,
Que engolem pedras, o metal devoram—
Sem que ronque a barriga em taes folias.
Os sagazes carolas d’ordens sacras,
Vigarios, andadores, sachristaens,
Que tragam n’um momento, Igreja e Santos
Sem metter na contenda os capellaens.
Oh, si Deus sobre a terra derramasse
Moedas de quintal, causando horror,
Inda assim saciar não poderia
A fome d'um voraz procurador !
Prestante pae da patria—homem de peso
Entre rato e balea—acachapado—
Morde aqui, roe alli, lambe acolà—
Mette dentro do bucho o Corcovado.
Se quereis, ó Leitor, ver jà por terra
Gambyses, que engoliu sua consorte,
Sim, prodígio maior vos appresento—
Um Ministro vos dou—papal Mavorte.
Que abusando das leis da natureza,
A’ mae patria se agarra, como louco;
Chupita a pobre velha, e logo brada.
(Batendo no bandulho)—-inda foi pouco!...
Deixemos pois atraz a gloria antiga,
Das potentes gargantas esfaimadas;
Hosannas entoemos furibundas
A’s modernas barrigas sublimadas.
Que feitos gloriosos, d’esta laia
Gravados viverão na lauta historia,
No perfume do vinho, e dos guizados
Voarão sobre as azas da memoria.