Os Sertões/Travessia do Cambaio/II

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Incompreensão da campanha

Foi um mal.

Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contagio desta crença espontânea, a tropa, por sue vez, compartiu-lhes as esperanças.

Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos.

Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que vencem. A historia militar e toda feita de contrastes singulares. Além disto a guerra é uma coisa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao rigorismo da estratégia, aos preceitos da tática, à segurança dos aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe dentro da frieza de uma fórmula matemática o arrebentamento de um schrapnel e subordina a parábolas invioláveis o curve violento das balas, permanecem — intactas — todas as brutalidades do homem primitivo. E estas são, ainda, a vis a tergo dos combatentes.

A certeza do perigo estimula-as. A certeza da vitória deprime-as.

Ora, a expedição ia, na opinião de toda a gente, positivamente — vencer. A consciência do perigo determinaria mobilização rápida e um investir surpreendedor com o adversário. A certeza do sucesso imobilizou-a quinze dias em Monte Santo.

Analisemos o caso. O comandante expedicionário deixara em Queimadas grande parte de munições, para não protelar por mais tempo a marcha e impedir que os inimigos ainda mais se robustecessem. Assim, teve o intento de uma arremetida fulminante. Revoltado com as dificuldades que encontrara, entre as quais se notava quase completa carência de elementos de transporte, dispusera-se a ir celeremente ao couto dos rebeldes, embora levando apenas a munição que as praças pudessem carregar nas patronas. Isto, porém, não se realizou. De sorte que a partida rápida de uma localidade condena a demora inconseqüente na outra. Esta somente se justificaria se, ponderando melhor a seriedade das coisas, ele a aproveitasse para agremiar melhores elementos, fazendo vir de Queimadas o resto dos trens de guerra. Os inconvenientes de uma longa pausa, justificá-los-iam as vantagens adquiridas. Ganharia em força o que perdesse em celeridade. Às aventuras de um plano temerário, resumindo-se numa investida e num assalto, substituiria operação mais lenta e mais segura. Não fez isto. Fez o inverso: depois de longa inatividade em Monte Santo, a expedição partiu ainda menos aparelhada do que quando ali chegara quinze dias antes, abandonando, ainda uma vez, parte dos restos de um trem de guerra já muitíssimo reduzido. Entretanto, contravindo ao modo de ver dos propagandistas de uma vitoria fácil, chegavam constantes informações sobre o numero e recursos dos fanáticos. E no disparatado das opiniões — entre as que elevavam aquele, no máximo, a quinhentos. e as que o firmavam, decuplicando-o, no mínimo, em cinco mil, cumpria inferir-se uma média razoável. Além disto, de envolta num sussurrar de cautelosas denuncias e mal boquejados avisos, esboçava-se a hipótese de uma traição. Apontavam-se influentes mandões locais, cujas velhas relações com o Conselheiro sugeriam, veemente, a presunção de que o estivessem auxiliando a socapa, fornecendo-lhe recursos e instruindo-o dos menores movimentos da investida. Ainda mais, sabia-se que a tropa, quando mesmo o maior sigilo rodeasse as deliberações, seria, no avançar, precedida e ladeada pelos espias espertos do inimigo, muitos dos quais, verificou-se depois, dentro da própria vila acotovelavam os expedicionários. Uma surpresa, depois de tantos dias perdidos e em tais circunstâncias, era inadmissível. Em Canudos saberiam da estrada escolhida pare a linha de operações com antecedência bastante pare se fortificarem os seus trechos mais difíceis, de sorte que, reeditando o cave de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a preliminar de um combate em caminho. Assim a partida da base de operações, do modo por que se fez, foi um erro de oficio. A expedição endireitava pare o objetivo da lute como se voltasse de uma campanha. Abandonando novamente parte das munições, seguia como se, pobre de recursos em Queimadas, paupérrima de recursos em Monte Santo, ela fosse abastecer-se — em Canudos... Desarmava-se à medida que se aproximava do inimigo. Afrontava-se com o desconhecido, ao acaso, tendo o amparo único da fragilidade de nossa bravura impulsiva.

A derrota era inevitável.

Porque a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais completa ignorância da guerra.

Revela-a a ordem do dia organizadora das forças atacantes.

Escassa como uma ordem qualquer distribuindo contingentes, não há rastrear-se nela a mais fugaz indicação sobre o desdobramento, formaturas ou manobras das unidades combatentes, consoante os vários caves fáceis de prever. Não há uma palavra sobre inevitáveis assaltos repentinos. Nada, afinal, visando uma distribuição de unidades, de acordo com os caracteres especiais do adversário e do terreno. Adstrito a uns rudimentos de tática prussiana, transplantados as nossas ordenanças, o chefe expedicionário, como se levasse o pequeno corpo de exército pare algum campo esmoitado da Bélgica, dividiu-o em três colunas, parecendo dispô-lo, de antemão, pare recontros em que lhe fosse dado entrar repartindo em atiradores, reforço e apoio. Nada mais, além desse subordinar-se a uns tantos moldes rígidos de velhos ditames clássicos de guerra.

Ora, estes eram inadaptáveis no momento.

Segundo o exato conceito de Von der Goltz, qualquer organização militar deve refletir alguma coisa do temperamento nacional. Entre a incoercível tática prussiana, em que é tudo a precisão mecânica da bala, e a nervosa tática latina, em que é tudo arrojo cavalheiresco da espada, tínhamos a esgrima perigosa com os guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga sistemática, num vaivém doidejante de arrancadas e recuos, dispersos, escapantes do seio da natureza protetora. Eram por igual inúteis as cargas e as descargas. Contra tais antagonistas e num tal terreno não havia supor-se a probabilidade de se estender a mais apagada linha de combate. Não havia até a possibilidade de um combate no rigorismo técnico do termo. A luta, digamos com mais acerto, uma monteria a homens, uma batida brutal em torno à ceva monstruosa de Canudos, ia reduzir-se a ataques ferozes, a esperas ardilosas, a súbitas refregas, instantâneos recontros em que fora absurdo admitir-se que se pudessem desenvolver as fases principais daquele, entre os dois extremos dos fogos violentos, que o iniciam, o epílogo delirante das cargas de baioneta. Função do homem e do solo, aquela guerra devia impulsionar-se a golpes de mão de estrategista revolucionário e inovador. Nela iam surgir, tumultuariamente, fundidas, penetrando-se, simultâneas, todas as situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar qualquer força em operações — a de repouso, a de marcha e a de combate. O exército marchando pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas dos caminhos, ou a vê-lo romper dentre as próprias fileiras surpreendidas, devia repousar nos alinhamentos da batalha.

Nada se deliberou quanto a condições tão imperiosas. O comandante limitou-se a formar três colunas e a ir para a frente, pondo diante da astúcia sutil dos jagunços a potência ronceira de três falanges compactas — homens inermes carregando armas magníficas. Ora, um chefe militar deve ter algo de psicológico. Por mais mecanizado que fique o soldado pela disciplina, tendendo para esse sinistro ideal de homúnculo, feito um feixe de ossos amarrados por um feixe de músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas, sem nervos, sem temperamento, sem arbítrio, agindo como um autômato pela vibração dos clarins, transfiguram-no as emoções da guerra. E a marcha nos sertões desperta-as a todo o instante. Trilhando veredas desconhecidas, envolto por uma natureza selvagem e pobre, o nosso soldado, que é corajoso na frente do inimigo, acovarda-se, invadido de temores, todas as vezes que este, sem aparecer, se revela, impalpável dentro das tocaias. Assim, se um tiroteio das guardas de frente se constitui, na campanha, aviso salutar ao resto dos lutadores, naquelas circunstâncias anormais era um perigo. Quase sempre as seções se baralhavam, sacudidas pelo mesmo espanto, numa desordem súbita, tendendo a um refluxo instintivo para a retaguarda.

Era natural que fossem previstas estas conjunturas inevitáveis. Para atenuá-las, as diversas unidades deviam seguir com o máximo afastamento, embora agissem, no primeiro momento, completamente isoladas. Este dispositivo, além de lhes altear o ânimo, pela certeza de um pronto auxílio por parte das que fora da ação imediata do inimigo podiam acometê-lo levando a força moral do ataque, evitava o alastramento do pânico e facultava um desdobramento desafogado. Embora a direção dos vários movimentos escapasse da autoridade de um comando único, substituída pela iniciativa mais eficaz dos comandantes de pequenas unidades, agindo autônomas de acordo com as circunstancias do momento, impunha-se largo fracionamento das colunas. Era parodiar a norma guerreira do adversário, seguindo-a paralelamente, em traçados mais firmes e opondo-lhe a mesma dispersão, única capaz de amortecer as causas de insucesso de anular o efeito de repentinas emboscadas, de criar melhores recursos de reação, e de acarretar, ao cabo, a vitória, do único modo por que esta poderia ser alcançada, feito uma soma de sucessivos ataques parciais.

Em síntese, as forcas, dispersas em marcha, a partir da base das operações, deviam ir, a pouco e pouco, apertando os fanáticos, concentrar-se em Canudos.

Fez-se sempre o contrário. Partiam unidas, em colunas dentro da estrutura maciça das brigadas. Avançavam emboladas pelos caminhos em fora. Iam dispersar-se, repentinamente — em Canudos...

Em marcha para Canudos

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.

Tomaram pela estrada do Cambaio.

É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale do Cariacá, numa cinta de terrenos férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras mates.

Transcorridos alguns quilômetros, porem, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do sopé da serra do Acaru. Dali por diante se encurva pare leste transmontando a serrania por três ladeiras sucessivas, até galgar o sitio da Lajem de Dentro, alçado trezentos metros sobre o vale.

Gastaram-se dois dias pare atingir-se este ponto. A artilharia reduzia a marcha. Ascendiam penosamente os Krupps, enquanto os sapadores na frente reparavam a estrada, desentulhando-a e destocando-a, ou abrindo desvios contornantes, evitando fortíssimos declives. E a tropa, que tinha as condições de sucesso na mobilidade, paralisava-se presa no travão daquelas massas metálicas.

Transposta a Lajem de Dentro e a divisória das vertentes do Itapicuru e do Vaza-Barris, a estrada desce. Torna-se, porem, mais seria a travessia, metendo-se no acidentado de contrafortes, de onde fluem os tributários efêmeros do Bendegó. A bacia de captação deste desenha-se, então, ligando as abas de três serras, a do Acaru, a Grande e do Atanásio, que se articulam em desmedida curve. A expedição entrou por aquele vale fundo como uma furna ate a um outro sitio. Ipueiras, onde acampou. Foi uma temeridade. O acampamento, envolto de fraguedos, centralizaria os fogos do inimigo, se este aparecesse pelo topo dos morros. Felizmente não chegavam até lá os jagunços. De sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme ao norte, a tropa prosseguiu pare Penedo, salve de uma posição dificílima.

Tinha meio caminho andado. As estradas pioravam crivadas de veredas, serpeando em morros, alçando-se em rampas, caindo em grotões, desabrigadas, sem sombras...

Até Mulungu, duas léguas além de Penedo, os sapadores estradaram o solo pare os canhões, e a jornada remorava-se no passo tardo da divisão que os guarnecia.

Entretanto era imprescindível a máxima celeridade. Tornava-se suspeita a paragem: restos de fogueiras a margem do caminho e vivendas incendiadas davam sinais do inimigo . Em Mulungu, à noite, eles se tornaram evidentes. Alarmou-se o acampamento. Tinham-se distinguido, próximos, encobertos na sombra, rondando em torno, vultos fugazes, de espias. Os soldados dormiram em armas. E no amanhecer de 17 a expedição que se encravara nas montanhas, muito aquém ainda de um objetivo que podia ser atingido em três dias de marcha, começou de ser terrivelmente torturada.

Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dois últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. Isto valia por um combate perdido. A feição da luta agravava-se em plena marcha, antes de se dar um tiro. Prosseguir para Canudos, poucas léguas distante, era quase a salvação. Era lutar pela vida.

Completando o transe, desapareceram à noite, em grande parte, os cargueiros contratados em Monte Santo. E, sob o pretexto de providenciar para urgente remessa de munições, o comissário daquela vila largou para ignoradas paragens — e não voltou.

Alguém, entretanto, salvou a lealdade sertaneja, o guia Domingos Jesuíno. Conduziu as tropas para a frente até ao rancho das Pedras, onde acamparam.

Estavam cerca de duas léguas de Canudos.

E à noite um observador que do acampamento atentasse para o norte, distinguiria talvez, escassas, em bruxuleios longínquos, fulgindo e extinguindo-se, intermitentes, muito altas, como estrelas rubras entre nevoeiros, algumas luzes vacilantes. Demarcavam as posições inimigas.

Ao alvorecer, desdobraram-se imponentes.