Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro I/V
V.
OUTROS PONTOS AMBIGUOS DE GILLIATT.
Não estava fixa a opinião acerca de Gilliatt.
Geralmente era tido por marcou. Outros acreditavam mesmo que fosse filho do diabo.
Quando uma mulher, tem do mesmo homem, sete filhos machos consecutivos, o setimo é marcou. Mas para isso, é necessario, que nenhuma filha venha interromper a serie dos rapazes.
O marcou, — tem uma flôr de liz impressa em uma parte do corpo, donde resulta que aproveita tanto aos escrophulosos como aos reis de França. Em França ha marcous em toda a parte, especialmente na provincia de Orleans. Cada aldêa do Gatinais tem o seu marcou. Para curar os doentes basta que o marcou sopre nas chagas ou lhes faça tocar a flôr de liz. O remedio é efficaz, principalmente quando applicado na noite de sexta-feira maior. Ha uma dezena de annos, o marcou d’Ormes, no Gatinais, appellidado o Formoso Marcou, e consultado por toda a Beauce, era um tanoeiro, chamado Foulon, que tinha cavallo e carruagem. Para pôr cobro aos seus milagres foi preciso intervir a policia. Tinha elle a flôr de liz embaixo do peito esquerdo. Outros marcous têm-n’a em lugar diverso.
Ha marcous em Jersey, em Aurigny, e em Guernesey. Parece que isto procede dos direitos que tem a França sobre o ducado da Normandia. A não ser assim, porque haveria ali a flôr de liz?
Como ha tambem nas ilhas da Mancha muitos escrophulosos, os marcous são necessarios.
Em um dia estando Gilliatt a banhar-se no mar, diante de algumas pessoas, julgaram estas ter-lhe visto no corpo a flôr de liz. Interrogado a esse respeito, por unica resposta pôz-se a rir. Gilliatt ria ás vezes como os outros homens. Mas desde esse dia nunca mais o viram tomar banho. Começou então a banhar-se em lugares solitarios e perigosos. Provavelmente á noite, e em noites de luar; o que, hão de convir, é cousa um tanto suspeita.
Os que se obstinavam em crê-lo filho do diabo (cambiou), enganavam-se evidentemente. Deviam saber que só os ha na Allemanha. Mas o Valle e Saint-Sampson eram ha cincoenta annos paizes ignorantes.
Acreditar em Guernesey que alguem é filho do diabo, por força que ha nisso exageração.
Por isso mesmo que Gilliatt inquietava o populacho era muito consultado. Os camponios aterrorisados iam conversar com elle acerca dos seus achaques. Aquelle terror equivalia a meia confiança, e no campo, quanto mais suspeito é o medico mais efficaz é o remedio que elle dá. Gilliatt tinha medicamentos propriamente seus, herdados da finada velha. Dava-os a quem lh’os pedia, e não recebia dinheiro. Curava os panaricios com applicações de hervas; o liquido de um dos seus frascos cortava a febre; o chimico de Saint-Sampson, que chamariamos pharmaceutico em França, pensava que era uma decocção de quina. Os menos benevolos convinham em que Gilliatt era excellente diabo para os doentes, quando se tratava de seus remedios ordinarios; mas, como marcou não queriam ouvir nada; se algum escrophuloso pedia-lhe para tocar a flôr de liz, a resposta de Gilliatt era fechar-lhe a porta na cara; recusava fazer milagres, cousa ridicula em um feiticeiro. Não sejas feiticeiro, mas se o és, faze o teu officio.
Havia uma ou duas excepções nesta antipathia universal. O Sr. Landoys, do Clos-Landés, era escrivão da parochia de Sain-Pierre Port, encarregado das escripturas, e guarda dos registros dos nascimentos, casamentos e obitos. Jactava-se o escrivão de descender do thesoureiro da Bretanha, Pedro Landoys, enforcado em 1485.
Estando uma vez a banhar-se, o Sr. Landoys affastou-se da praia, e quasi se affogou; Gilliatt atirou-se á agua, affogou-se quasi, mas salvou Landoys. Desde esse dia Landoys não fallou mal de Gilliatt. Aos que se admiravam disso, respondia elle: Como hei de aborrecer um homem que não me fez mal, e até me prestou um serviço? O escrivão chegou mesmo a ser amigo de Gilliatt. Não era homem de preconceitos. Não acreditava em feiticeiros. Mofava dos que acreditavam em almas do outro mundo.
Tinha uma canôa, pescava nas horas de descanço para divertir-se, e nunca vio cousa alguma extraordinaria, a não ser, em certa noite de luar, um vulto branco de mulher, que pulava na agua, e ainda assim não estava muito certo. Moutonne Gahy, feiticeira de Torteval, dera-lhe um saquinho para atar debaixo da gravata, afim de afugentar os espiritos; Landoys zombava do sacco, e não sabia o que havia dentro; mas sempre andava com elle, e sentia-se assim mais seguro.
Algumas pessoas audazes, acompanhando o Sr. Landoys, arriscaram-se a reconhecer em Gilliatt certas circumstancias attenuantes, algumas apparencias de qualidades, a sobriedade, a abstinencia do gin e do tabaco, e chegavam ás vezes a fazer delle este bello elogio. Não bebe, não fuma, nem masca.
Mas a sobriedade é uma qualidade, quando o individuo possue outras.
Gilliatt inspirava a aversão publica.
Fosse o que fosse, como marcou, Gilliatt podia prestar serviços. Em uma sexta-feira maior, á meia noite, dia e hora usados para esses curativos, todos os escrophulosos da ilha, por inspiração, ou combinação, foram em massa á casa mal assombrada, e com as mãos postas, pediram a Gilliatt que os curasse. Gilliatt recusou. Reconheceu-se nisto a sua perversidade.