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Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro V/I

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I.


A PALESTRA NA POUSADA JOÃO.


O Sr. Clubin era o homem que espera a occasião.

Era baixo e amarello, com a força de um touro. O mar não podia com elle. Tinha uma carne que parecia cera. Era da côr de uma tocha e tinha nos olhos uma luz discreta. A sua memoria tinha um quê de imperturbavel e especial. Vêr um homem uma vez era conserval-o como se fosse uma nota em um registro. O olhar laconico apunhalava. A palpebra tirava a prova de um rosto, e conservava-o; não importava que o rosto envelhecesse depois, o Sr. Clubin não deixava de reconhecel-o. Era impossivel fugir áquella memoria tenaz. O Sr. Clubin era breve, sóbrio, e frio; não fazia gesto algum. Tinha uns ares de candura que prendiam logo. Muitas pessoas acreditavam-n’o simplorio; trazia no rosto uma certa, ruga que indicava uma espantosa estupidez. Não havia melhor marinheiro do que elle. Não havia reputação de religiosidade e integridade maior que a sua. Quem o suspeitasse é que era suspeito. Travara amizade com o Sr. Rebuchet, cambista em S. Malo, rua de S. Vicente, ao lado do armeiro, e o Sr. Rebuchet costumava dizer que confiaria a sua fabrica a Clubin. O Sr. Clubin era viuvo. A mulher foi tão honesta como elle. Morreu com a fama de uma virtude invencivel. Se o bailio lhe fizesse uma declaração ella iria conta-lo ao rei, e se Nosso Senhor se apaixonasse por ella iria contal-o ao padre vigario. O casal Clubin realizou em Torteval o ideal do epitheto inglez respectable. A Sra. Clubin era o cysne; o Sr. Clubin era o arminho. Morreria se lhe puzessem uma nodoa. Nunca achou um alfinete que não fosse logo á cata do proprietario. Era capaz de pôr em almoeda uma caixa de phosphoros se acaso a tivesse achado na rua. Entrou uma vez em uma taberna em Saint-Servan e disse ao taberneiro: almocei aqui ha tres annos e você enganou-se na conta; e dizendo isto restituio ao taberneiro 75 centimos. Era uma grande probidade, mordendo attentamente os beiços.

Parecia estar sempre á espera. De quem? Provavelmente dos velhacos.

Todas as terças-feiras levava a Durande de Guernesey a S. Malo. Chegava a S. Malo na terça-feira á noite, demorava-se dous dias para fazer o carregamento, e voltava a Guernesey na sexta-feira de manhã. Havia então em S. Malo uma pequena hospedaria, situada no porto, que se chamava a pousada João.

A construcção dos cáes actuaes fez demolir a pousada. Naquella época vinha o mar até a porta S. Vicente e a porta de Dinan; S. Malo e S. Servan communicavam-se nas marés baixas por meio de carrinhos que rolavam e circulavam entre os navios em secco, evitando as boias, as ancoras e os maçames, e arriscando-se às vezes a rasgar a coberta de couro em alguma verga baixa. No intervallo de duas marés, os cocheiros fustigavam os cavallos, naquella mesma arêa, onde, seis horas depois, vinha o vento chicotear as vagas. Na mesma praia andavam outr’ora os vinte e quatro cães, porteiros de S. Malo, que devoraram um official de marinha em 1770. Tamanho zelo fez suprimir os cães. Já não se ouve agora latidos nocturnos entre o pequeno e o grande Tallard.

O Sr. Clubin ia á pousada João. Era alli o escriptorio francez da Durande. Os guardas da alfandega e os guardas da costa ião comer e beber na pousada João. Faziam rancho á parte. Os guardas da alfandega de Binic encontravam-se, vantajosamente para o serviço, com os guardas da alfandega de S. Malo.

Também lá iam os mestres de navio, mas comiam em outra mesa.

O Sr. Clubin assentava-se ora n’uma, ora n’outra, mas preferia a dos guardas á dos mestres. Era bem recebido em ambas.

As mesas eram bem servidas. Haviam as mais apuradas bebidas estrangeiras para os maritimos expatriados. Um marinheiro gamenho de Bilbáo acharia alli um copo de helada. Bebia-se stuol como em Greenwich, e gueuse, como em Anvers.

Capitães de longo curso e armadores tomavam ás vezes lugar na mesa dos mestres de navio. Trocavam-se ahi noticias:

— Como vai o assucar?

— Pequenos lotes. Vende-se bem o assucar bruto; tres mil saccas de Bombay e quinhentas barricas de Sagua.

— Ha de ver que o partido da direita ainda derruba o ministerio Villele.

— E o anil?

— Venderam-se apenas uns sete surrões de Guatemala.

— A Nanine Julie ancorou. Lindo navio de Bretanha.

— As duas cidades do Rio da Prata estão outra vez desavindas.

— Quando Montevidéo engorda, Buenos-Ayres emmagrece.

— Foi preciso deitar ao mar a carga do Regina Coeli condemnado em Calháo.

— O cacáo vai andando; os saccos Caracas são cotados a 234, e os saccos Trindade a 73.

— Parece que na revista do Campo de Marte ouvio-se gritar: abaixo os ministros.

— Os couros salgados saladeros vendem-se, os dos bois a 60 frs. e o das vaccas a 48.

— Já passaram o Balkan? O que faz Diebitsch?

— Em S. Francisco ha falta de anisette. O azeite Plagniol está calmo. O queijo de Gruyére está a 32 frs. o quintal.

— Com que então Leão XII morreu?

— Etc., etc., etc.

Todas estas cousas eram ditas e commentadas no meio de grande barulho. Á mesa dos guardas da alfandega e dos guardas da costa fallava-se menos.

A policia das costas e dos portos quer menos sonoridade e menos clareza no dialogo.

A mesa dos mestres de navio era presidida por um velho capitão de longo curso, o Sr. Gertrais-Gaboureau. Não era um homem, era um barometro. Os habitos do mar deram-lhe uma espantosa infallibilidade de prognostico. Elle decretava o tempo que devia haver no dia seguinte; ascultava o vento; tomava o pulso á maré. Dizia á nuvem; mostra-me a tua lingua. A lingua era o relampago. Era o doutor da vaga, da brisa e da lufada. O oceano era o seu doente; fez uma viagem á roda do mundo como quem faz uma clinica, examinando todos os climas na sua boa e má saude; sabia a fundo a pathologia das estações. Enunciava factos como este: — o barometro desceu uma vez em 1796 a tres linhas abaixo da tempestade. Era marinheiro por amor. Odiava a Inglaterra tanto quanto estimava o mar. Estudou cuidadosamente a marinha ingleza para conhecer os seus lados fracos. Explicava em que ponto o Sovereign de 1637 differia do Royal William de 1670 e de Victory de 1755. Comparava os castellos de pôpa. Lamentava as torres no tombadilho e os cestos de gavea afunilados do Great Harry de 1514, provavelmente no ponto de vista da bala franceza que se aninhava perfeitamente naquellas superficies. Para elle as nações só existião por suas instituições maritimas; fazia synonymias extravagantes. Chamava a Inglaterra Trinity House, a Escossia Northern Commissioners, e a Irlanda Ballast Board. Abundava de informações; era alphabeto e almanack. Sabia de cór a portagem dos pharoes, principalmente inglezes; um penny por tonelada ao passar diante deste, um farthing ao passar diante daquelle. Dizia: o pharol de Smalt Rock, que consumia apenas duzentos galões de azeite, consome agora quinhentos. Achando-se muito doente um dia, a bordo, a tripulação que já o tinha por defunto, estava á roda de sua maca, quando elle interrompeu os soluços da agonia para dar ao mestre carpinteiro uma ordem relativa a um concerto do navio.

Era raro que o assumpto de conversa fosse sempre o mesmo na mesa dos capitães e na mesa dos guardas. Apresentou-se, porém, o seguinte caso nos primeiros dias do mez de Fevereiro, em que se passam os factos que estamos contando. A gallera Tamaulipas, capitão Zuela, vinda do Chile, e prestes a voltar, chamava a attenção das duas mesas. Na mesa dos mestres fallou-se do carregamento, e na mesa dos guardas fallou-se dos ares suspeitos do navio.

O capitão Zuela, de Copiapó, era chileno, um pouco columbiano; tinha feito com independencia as guerras da independencia, acompanhando, ora Bulivar, ora Morillo, conforme os lucros a haver. Tinha-se enriquecido obsequiando a toda a gente. Não havia homem mais bourbonico, mais bonapartista, mais absolutista, mais liberal, mais atheu e mais catholico. Elle pertencia a este grande partido que se póde chamar o partido Lucrativo. De tempos a tempos fazia apparições commerciaes em França; e, a acreditar-se nos boatos, dava passagem a bordo aos fugitivos, bancarroteiros ou proscriptos politicos, fossem quem fossem, com tanto que pagassem. O meio de embarcal-os era simples. O fugitivo esperava n’um ponto deserto da costa, e no momento de apparelhar, Zuela destacava um escaler que ia buscal-o. Foi deste modo que na sua precedente viagem fez evadir um homem implicado no processo Berthon, e desta vez contava levar pessoas compromettidas na questão da Bidassoa. A policia, já avisada, estava com o olho n’elle.

Era um tempo de fugas aquelle. A restauração era uma reacção; ora as revoluções trazem emigrações, e as restaurações arrastam proscripções. Durante os sete ou oito primeiros annos, depois da entrada dos Bourbons, espalhou-se o terror em tudo, nas finanças, na industria, no commercio, que sentiam tremer a terra e viam multiplicar-se as falencias. Havia um salve-se quem puder na politica. Lavalette fugira; Lefebvre Desnouettes fugira; Delon fugira. Os tribunaes de excepção trabalhavam; depois veio Trestaillon. Fugia-se á ponte de Saumur, á explanada de Reole, ao muro do observatorio de Paris, á torre de Taurias d’Avignon, tudo isso que se conserva de pé na historia, vestigios da reacção, aonde se distingue ainda a sua mão sanguinolenta.

Em Londres, o processo Thisthewood, ramificado em França, em Paris o processo Trogoff, ramificado na Belgica, na Suissa e na Italia, multiplicaram os motivos da inquietação e desapparecimento, e augmentaram essa profunda derrota subterranea, que deixava vasios os mais altos lugares da ordem social de então. Pôr-se em segurança, era a preoccupação universal. O espirito dos tribunaes prebostaes sobrevivera á instituição. As condemnações eram feitas por complacencia. Fugiam para o Texas, para o Perú, para o Mexico. Os homens da Loire, salteadores então, paladinos hoje, tinham fundado o campo de Asylo. Dizia uma canção de Beranger:

Sauvages, nous sommes français;
Prenez pitié de notre gloire.

Expatriar-se era o recurso; porém, nada menos simples que fugir; este monosyllabo encerra abysmos. Tudo é obstaculo para quem se esquiva. Fugir é disfarçar-se. Pessoas importantes, e até illustres, viram-se reduzidas aos expedientes dos malfeitores. E ainda assim sahiam-se mal. Eram inverosimeis. Os seus habitos de franqueza tornava-lhes difficil resvalar pelas malhas da evasão. Um gatuno fugitivo mostrava-se mais correcto aos olhos da policia do que um general. Imaginem a innocencia constrangida a disfarçar-se, a virtude contrafazendo a voz, a gloria mascarando o rosto. Algum individuo que passasse com ar suspeito, era uma reputação á cata de um passaporte falso. O ar embaraçado de um fugitivo, não provava que elle deixasse de ser um heróe. Traços fugazes e caracteristicos dos tempos, que a historia regular esquece, mas que o verdadeiro pintor de um seculo deve rememorar. Atraz dos homens honestos, fugiam os tratantes, menos vigiados, menos suspeitos. Um tratante obrigado a eclipsar-se aproveitava-se da confusão, fazia parte dos proscriptos, e muitas vezes, graças a uma arte apurada, parecia naquelle crepusculo mais honesto que o honesto. Que ha ahi mais acanhado que a probidade diante da justiça? Nada entende, nada finge. Um falsario escapa-se mais facilmente que um convencional.

Cousa estranha! especialmente em relação aos tratantes, quasi se póde dizer, que a evasão fazia subir o individuo. A quantidade de civilisação que um velhaco levava de Paris ou de Londres valia-lhe por dote nos paizes primitivos ou barbaros, recommendava-o e fazia delle um iniciador. Era facil que um aventureiro, escapando ao codigo, chegasse depois ao sacerdocio. Havia phantasmagoria na desapparição, e mais de uma evasão tinha os resultados de um sonho. Uma fuga deste genero levava ao desconhecido e ao chimerico. Tal bancarroteiro sahia de Europa e apparecia mais tarde grão-visir em Mogol ou rei na Tasmania.

Ajudar as evasões era uma industria, e, visto a frequencia do facto, uma industria lucrativa. Esta especulação completava certos generos de commercio. Quem queria fugir para Inglaterra dirigia-se aos contrabandistas quem queria fugir para a America dirigia-se aos trapaceiros de longo curso, taes como Zuela.