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Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro V/VIII

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VIII.


CARAMBOLA DA BOLA VERMELHA E DA BOLA PRETA.


No dia seguinte, que era quinta-feira, a pouca distancia de Saint Malo, perto da ponta do Decolé, n’um lugar em que as rochas das praias são altas, e o mar profundo, passou-se uma cousa tragica.

Nada mais frequente na architectura do mar, que uma lingua de rochedos em fórma de lança, que se prende á terra por um isthmo estreito, prolonga-se na agua e acaba-se ahi bruscamente em forma de rochedo a pique. Para chegar ao alto desse rochedo, indo da praia, segue-se um plano inclinado cuja subida é ás vezes assaz difficil.

No alto de um rochedo desse genero, achava-se em pé, pelas quatro horas da tarde, um homem embrulhado em uma larga capa de uniforme, e provavelmente armado, o que era facil de reconhecer por certas dobras rectas e angulosas do manto. O sitio em que estava esse homem era uma plataforma assaz vasta semeada de cubos á semelhança de seixos immensos, deixando entre si estreita passagem. Esta plataforma onde brotava uma hervasinha estreita e curta, terminava do lado do mar por um espaço livre, que ia dar a um despenhadeiro, de uns sessenta pés de altura, acima do mar, e parecia talhado com um prumo. Entretanto, o angulo da esquerda ia-se arruinando e offerecia uma dessas escadas naturaes proprias aos granitos marinhos, cujos degraos pouco commodos exigem ás vezes pernas de gigante ou pulos de downs. Descia perpendicularmente ao mar e mergulhava nas aguas. Era um quebra-costas. Podia-se, comtudo, a rigor, ir por alli embarcar na muralha da lingua de rochas.

Soprava uma brisa. O homem, apertado na capa, firme nas pernas, com o cotovello direito na mão esquerda, piscava um olho e applicava ao outro um oculo. Parecia absorto em uma attenção séria. Approximou-se da borda do rochedo, e alli estava immovel com o olhar imperturbavelmente fito no horisonte. A maré estava cheia. A vaga batia por baixo delle no sopé do rochedo.

O que o homem observava era um navio ao largo que fazia manobras singulares.

Esse navio, que apenas uma hora antes sahira de Saint-Malo, tinha parado por traz dos Banquetiers. Era uma galera. Não tinha deitado ancora, talvez porque o fundo não lh’o permittisse, e porque o navio teria prendido a ancora de baixo do gurupés. Limitou-se a pôr-se á capa.

O homem, que era guarda-costa, como o uniforme indicava, espiava todas as manobras do navio e parecia tomar nota mentalmente. O navio tinha atravessado: era o que indicava a vela ré alada a barlavento, e as de prôa largas por mão; tinha braceado o panno de ré o mais que lhe foi possivel, de forma que neutralisava a força dos de prôa. Deste modo, cahindo a sotavento, não perdia mais de milha e meia por hora.

O dia ainda estava claro, sobretudo em pleno mar e no alto das rochas. Mas ao pé das costas começava a escurecer.

O guarda-costa, entregue ao seu trabalho, e espionando conscienciosamente ao largo, não tinha pensado em examinar o rochedo ao lado e em baixo. Dava as costas para a escada pouco praticavel que punha em communicação a plataforma com o mar. Não reparou que alguma cousa andava alli em movimento. Havia nessa escada, por traz da anfractuosidade, alguma pessoa, um homem escondido alli, segundo parecia, antes da chegada do guarda-costa. De tempos a tempos, na sombra, apparecia uma cabeça por baixo da rocha, olhava para cima e espiava o espião. Essa cabeça coberta por um largo chapéo americano, era a cabeça do quaker, que, uns dez dias antes, fallara nas pedras do Petit Bey, ao capitão Zuela.

De repente pareceu redobrar a attenção do guarda-costa.

Limpou rapidamente com a manga o vidro do oculo e firmou-o com energia sobre o navio.

Destacara-se um ponto negro.

O ponto negro, semelhante a uma formiga no mar, era uma barcaça.

A barcaça parecia querer ganhar a terra. Era tripolada por alguns marinheiros que remavam vigorosamente.

Já obliquava a pouco e pouco e dirigia-se para a ponta do Decollé.

A espreita do guarda-costa chegou ao seu maior gráo de fixidez. Elle não perdia nenhum dos movimentos da barcaça. Approvimou-se mais ainda da borda do rochedo.

Neste momento um homem de alta estatura, o quaker, surgio por traz do guarda-costa, no alto da escada. O espião não via o quaker.

Parou este alguns instantes, com os braços cahidos, e os punhos crispados, e, com o olhar do caçador que aponta, olhou para as costas do espião.

Quatro passos apenas o separavam do guarda-costa; adiantou um pé, depois parou; deu outro passo e parou outra vez; o unico movimento que fazia era andar, o resto do corpo era estatua; o pé firmava-se na relva sem rumor; deu terceiro passo, e parou; estava quasi tocando o guarda-costa, sempre immovel, com o oculo fixo. O homem ajuntou as duas mãos fechadas na altura das suas claviculas, depois, bruscamente, abateram-se os antebraços, e os dous punhos, como que soltos por uma mola, bateram nos hombros do guarda-costa. O choque foi sinistro. O guarda-costa nem teve tempo de soltar um ai. Cahio de cabeça no mar. Viram-se-lhe os pés durante o tempo de um relampago. Foi uma pedra n’agua. A agua cerrou-se depois, descrevendo dous ou tres grandes circulos.

Ficou apenas o oculo escapo ás mãos do guarda-costa e cahido no chão.

O quaker inclinou-se á borda das rochas, vio acalmar-se a agua, esperou alguns minutos, depois endireitou-se, cantando entre os dentes:

Monsieur de la police est mort
En perdant la vie.

Inclinou-se outra vez. Nada reappareceu. Sómente no lugar onde o guarda-costa tinha cahido, formou-se na superficie da agua uma especie de espessura negra, que se alargava no movimento da vaga. Era provavel que o guarda-costa tivesse quebrado o craneo em alguma rocha sub-marinha. O sangue subira e fazia aquella mancha na espuma. O quaker, contemplando aquella mancha, continuou:

Un quart d’heure avant sa mort,
Il était encore....

Não acabou.

Ouvio atraz de si unia voz doce que lhe dizia:

— Ora viva, Rantaine. Acaba o senhor de matar um homem.

Elle voltou-se, e vio a quinze passos, no intervallo de dous rochedos, um homem baixo que tinha um revolver na mão.

Respondeu:

— Como vê. Bom dia. Sr. Clubin.

O homem baixo estremeceu.

— Reconheceu-me?

— Não me reconheceu o senhor? disse Rantaine.

Entretanto ouvio-se um rumor de remos no mar. Era a barcaça observada pelo guarda-costa que se approximava.

O Sr. Clubin disse a meia voz como se fallasse comsigo:

— A cousa foi rapida.

— Em que precisa de mim? perguntou Rantaine.

— Pouca cousa. Ha quasi dez annos que nos não vemos. O senhor ha de ter feito bons negocios. Como está de saude?

— Bem, disse Rantaine. E o senhor?

— Perfeitamente, respondeu Clubin.

Rantaine deu um passo para o Sr. Clubin.

Um pequeno som chegou aos seus ouvidos. Era o Sr. Clubin que armava o revolver.

— Rantaine, estamos a 15 passos. É uma boa distancia. Fique onde está.

— Ah! mas o que quer o Sr. de mim?

— Venho conversar.

Rantaine não se mecheu. O Sr. Clubin coutinuou:

— O senhor matou agora mesmo um guarda-costa, Rantaine levantou a aba do chapéo e respondeu:

— Já me fez a honra de dizel-o.

— Em termos menos precisos. Disse ha pouco: um homem; agora digo: um guarda-costa, O quarda-costa tinha o n. 619. Era um pai de familia. Deixa mulher e cinco filhos.

— Deve ser assim, disso Rantaine.

Houve um imperceptivel tempo de silencio.

— São homens escolhidos estos guarda-costas, disse Clubin, quasi todos antigos maritimos.

Notei que em geral deixam mulher e cinco filhos. Clubin continuou:

— Advinhe quanto me custou este revolver.

— É um lindo instrumento, respondeu Rantaine.

— Quanto vale?

— Vale muito.

— Custou-me cento e quarenta e quatro francos.

— Comprou naturalmente na loja de armas da rua Contanchez.

Clubin continuou:

— O guarda-costa nem gritou. A queda corta a voz.

— Sr. Clubin, hade ventar esta noite.

— Eu sou o unico que sei do segredo.

— Continúa a morar na pousada João?

— Sim. Vive-se bem alli.

— Já lá comi muito boa couve fermentada.

— Rantaine, o senhor deve ser excessivamente forte. Tem cada espadua! Não seria eu quem lhe levaria um piparote. Era tão rachitico quando vim ao mundo, que nem se sabia se me poderiam criar.

— Felizmente, criou-se.

— Sim, e continúo a morar na pousada João.

— Sabe porque motivo eu o reconheci, Sr. Clubin? Porque o senhor me tinha reconhecido. Disse comigo: Só Clubin póde reconhecer-me.

E adiantou um passo.

— Fique onde estava, Rantaine.

Rantaine recuou e disse aparte:

— A gente torna-se criança diante destes instrumentos.

O Sr. Clubin continuou.

— Situação. Temos aqui á direita, do lado de Saint-Enogat, a trezentos passos, outro guarda-costa, numero 618, que está vivo, e á esquerda, do lado de Saint-Lunaire, um posto de alfandega. Sete homens armados que podem estar aqui dentro em cinco minutos. O rochedo ficará cercado. O desfiladeiro ficará guardado. Impossivel fugir. Ha um cadaver ao pé da rocha.

Rantaine deitou um olhar obliquo ao revolver.

— Como diz, Rantaine. É um lindo instrumento. Talvez esteja carregado com polvora secca. Mas que importa? Basta um tiro para fazer correr a força armada. Tenho seis tiros.

O choque alternativo dos remos tornava-se mais distincto. A barcaça não estava longe.

O homem alto olhava estranhamente para o homem baixo. O Sr. Clubin fallava com um ar cada vez mais tranquillo e doce.

— Rantaine, os homens da barcaça que vai chegar, sabendo o que fez ha pouco, ajudar-me-hiam a prende-lo. O senhor paga 10,000 francos de passagem ao capitão Zuela. Entre parenthesis, a passagem ficaria mais barata se tratasse com os contrabandistas de Plainmont, mas estes só o levariam para Inglaterra, e demais o senhor não póde arriscar-se a ir a Guernesey onde ha quem tenha a honra de conhecel-o. Volto á situação. Se eu disparar prendem-n’o. Nesse caso pagará a Zuela 10,000 francos de fuga. Já lhe deu 5,000 mil francos; Zuela guardará esses 5,000 trancos e vai-se embora. É isto. Rantaine acho-o bem rebuçado. Esse chapéo, esse casaco, e essas polahias disfarçam-n’o. Esqueceram-lhe os oculos. Fez bem em deixar erescer as suisas.

Rantaine sorrio como quem range os dentes. Clubin continuou:

— Rantaine, o senhor tem uma calça americana com duas algibeiras. N’uma dellas tem o seu relogio. Guarde-o.

— Obrigado, Sr. Clubin.

— Na outra ha uma caixinha de ferro batido, que abre e fecha por molas. É uma velha boceta de marinheiro. Tire-a do bolso, e atire-a para cá.

— Mas isto é um roubo!

— Póde chamar a guarda.

E Clubin fixou os olhos em Rantaine.

— Olhe, mess Clubin.... disse Rantaine dando um passo e estendendo a mão aberta.

Mess era uma lisonja.

— Fique onde está, Rantaine.

— Mess Clubin, arranjemos as cousas. Offereço-lhe metade.

Clubin executou um crusar de braços, mostrando a bocca do revolver.

— Rantaine, quem pensa que eu sou? Sou um homem honrado.

E acrescentou depois de uma pausa.

— Quero tudo.

Rantaine disse entre dentes:

— É temivel este.

Entretanto acenderam-se os olhos de Clubin. A voz tornou-se cortante como o aço. Disse elle:

— Creio que se engana. O seu nome é que é Roubo, o meu é Restituição. Ouça, Rantaine. Ha dez annos, sahio o senhor de Guernesey á noite tomando da caixa de uma sociedade cincoenta mil francos que lhe pertenciam, e esquecendo de lá deixar cincoenta mil francos que pertenciam a outro. Esses cincoenta mil francos roubados ao seu socio, o excellente e digno mess Lettierry, fazem hoje com os juros accumulados de dez annos oitenta mil seiscentos e sessenta e seis francos e sessenta e seis centimos. O senhor entrou hontem na casa de um cambista. Reluchet, chama-se elle, rua de S. Vicente. Deu-lhe setenta e seis mil francos em bilhetes de banco francezes, e em troca deu-lhe elle tres bank-notes de Inglaterra de mil libras esterlinas cada uma, e mais uns trocos. O senhor poz essas bank-notes na boceta de ferro, e a boceta de ferro na algibeira direita. As tres mil libras esterlinas fazem setenta e cinco mil francos. Em nome de mess Lethierry, contento-me com isso. Parto amanhã para Guernesey, e vou levar-lh’os. Rantaine, a galera que alli está á capa é o Tamaulipas. O senhor embarcou alli esta noite as malas misturadas com os saccos e canastras da equipagem. Quer sabir de França. Tem suas razões para isso. Vai a Arequipa. A barcaça vem buscal-o. Está á espera della. Ella ahi vem. Já a estamos ouvindo. Depende de mim deixal-o partir ou obrigal-o a ficar. Basta de palavras. Atire cá a boceta de ferro.

Rantaine abrio o bolso, tirou uma caixinha de ferro e atirou-a a Clubin. A caixinha foi rolar aos pés de Clubin.

Clubin inclinou-se sem abaixar a cabeça, e apanhou a boceta, tendo dirigidos contra Rantaine os dous olhos e os seis canos do revolver.

Depois disse:

— Meu amigo, volte as costas.

Rantaine voltou as costas.

O Sr. Clubin poz o revolver debaixo do braço, e apertou a mola da caixinha. A caixinha abrio-se.

Havia dentro quatro bank-notes, tres de mil libras, e uma de dez libras.

Clubin dobrou as tres notas de mil libras, pol-as outra vez na caixinha, fechou-a, e metteo-a no bolso.

Depois apanhou no chão uma pedra. Embrulhou a pedra no bilhete de dez libras e disse:

— Volte para cá.

Rantaine voltou-se.

O Sr. Clubin continuou;

— Disse-lhe que me contentava com as tres mil libras. Aqui vão as dez libras.

E atirou a Rantaine o bilhete e mais o lastro de pedra.

Rantaine com um pontapé deitou o bilhete e a pedra ao mar.

— Como queira, disse Clubin. Vamos lá, o senhor hade estar rico. Estou tranquillo.

O rumor dos remos que se tinha approximado durante o dialogo, cessou. Indicava isto que a barcaça estava ao pé das rochas.

— Está embaixo o seu carro. Pode ir, Rantaine.

Rantaine dirigio-se para a escada e desceu.

Clubin foi com precaução até a borda do rochedo, e adiantando a cabeça, vio descer Rantaine.

A barcaça tinha parado ao pé do ultimo degráo do rochedo, no mesmo lugar em que tinha cahido o guarda-costa.

Vendo descer Rantaine, Clubin murmurou:

— Bom numero seiscentos e desenove! Pensava que estava só. Rantaine pensava que eram apenas dous. Só eu sabia que eramos tres.

Clubin vio no chão o oculo do guarda-costa; apanhou-o.

Começou o ruido dos remos. Rantaine acabou de pular na barcaça, e esta tomava o largo.

Quando Rantaine achou-se na barca, indo-se já afastando dos rochedos, levantou-se bruscamente, a face tornou-se-lhe monstruosa; mostrou o punho e gritou:

— Ah! o proprio diabo é um canalha!

Instantes depois, Clubin do alto das rochas, e fixando o oculo na barcaça, ouvio distinctamente estas palavras, articuladas por uma voz grossa, meio do rumor do mar:

— O Sr. Clubin é um homem honrado, mas consinta que eu escreva a Lethierry para participar-lhe o facto, e aqui vai nesta barcaça um marinheiro de Guernesey que é da equipagem do Tamaulipas, que se chama Ahier Tortevin, o que ha de voltar a Saint-Malo, na proxima viagem de Zuela, e que será testemunha de que eu lhe entreguei para mess Lethierry a somma de tres mil libras esterlinas.

Era a voz de Rantaine.

Clubin era o homem das cousas bem feitas. Immovel como estivera o guarda-costa, e no mesmo lugar, com o oculo no olho, não perdeu de vista a barcaça. Vio diminuir-se os remos, desapparecer, reapparecer, approximar-se a barcaça do navio; e pôde reconhecer a alta corpulencia de Rantaine no tombadilho do Tamaulipas.

Quando a barcaça foi içada, o Tamaulipas entrou a preparar-se. A brisa soprava de terra, o navio abrio as velas todas, o oculo de Clubin continuava fixo no lineamento cada vez mais simplificado, e, meia hora depois o Tamaulipas era apenas um ponto negro que ia a diminuir-se, a diminuir-se, a diminuir-se no céo amarello do crepusculo.