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Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro I/I

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I.


O SINO DO PORTO.


O Saint-Sampson de hoje é quasi uma cidade; o Saint-Sampson de ha quarenta annos era quasi uma aldêa.

Chegando á primavera, e acabadas as vigilias de inverno, deitavam-se todos cedo. Saint-Sampson era uma antiga parochia de tocar a recolher, tendo conservado o habito de apagar cedo as luzes. Os habitantes deitavam-se e levantavam-se com o dia. As velhas aldêas normandas são voluntariamente gallinheiros.

Digamos além disso que Saint-Sampson, á excepção de algumas ricas familias burguezas, é uma população de pedreiros e carpinteiros. O porto é um lugar de concertar navios. Durante o dia extrahem-se pedras du trabalham-se pranchas; aqui a picareta, além o martello. Perpetuo meneio de páu e granito. Á tarde tudo cahe de cançasso e dorme como chumbo. Os rudes trabalhos fazem os duros somnos.

Uma noite dos principios de Maio, depois de ter por alguns instantes contemplado o crescente da lua nas arvores e ouvido o passo de Deruchette passeiando sozinha, ao fresco da noite, no jardim de Bravées, mess Lethierry entrou para seu quarto situado sobre o porto e deitou-se. Doce e Graça estavam na cama. Excepto Deruchette, tudo dormia na casa. Portas e postigos estavam fechados. Ninguem andava nas ruas. Raras luzes semelhantes ao piscar de olhos que vão fechar-se, brilhavam aqui e alli nas janellas dos sotãos, annuncio do deitar dos criados. Já nove horas tinham batido na velha torre romana, coberta de hera, que partilha com a igreja de Saint-Brelade de Jersey, a singularidade de ter por data quatro uns: 1111; o que significa mil cento e onze.

A popularidade de mess Lethierry em Saint-Sampson vinha do bom exito da Durande. Acabado este, fez-se o vacuo. Parece que o enguiço pega, e que as pessoas infelizes tem a peste comsigo, tão rapida é a quarentena em que as mettem. Os lindos filhos-familias evitavam Deruchette. O isolamento em roda da casa de Lethierry era tal que nem mesmo se soube ahi o pequeno grande acontecimento local que nesse dia agitou Saint-Sampson. O cura da parochia, o reverendo Joe Ebeneser Caudray estava rico. O tio delle, o magnifico decano de Saint-Asaph, morrera em Londres. A noticia foi trazida pelo sloop de posta Cashmere chegado de Inglaterra nessa manhã, e cujo mastro via-se no porto de Saint-Sampson. O Cashmere devia voltar para Southampton no dia seguinte ao meio dia, e dizia-se que devia levar o reverendo cura, chamado á Inglaterra sem demora para a abertura official do testamento, sem contar as outras urgencias de uma grande herança para recolher. Durante o dia Saint-Sampson dialogou coufusamente. O Cashmere, o reverendo Ebeneser, o tio morto, a riqueza, a partida, as promoções possiveis no futuro, foram o fundo do borborinho. Só uma casa, que nada sabia, ficara silenciosa, a de Lettierry.

Mess Lethierry atirou-se á maca vestido.

Depois da catastrophe da Durande, atirar-se á maca, era o recurso delle. Deitar-se no grabato é o recurso do prisioneiro, e mess Lethierry era prisioneiro da tristeza. Deitava-se; era uma tregoa, um descanço, uma suspensão de idéas. Dormia? Não. Vellava? Não. Propriamente fallando, havia dous mezes e meio,—já dous mezes e meio,—mess Lethierry estava em somnambulismo. Não era ainda senhor de si. Andava nesse estado mixto e diffuso que costumam ter os que soffreram grandes abatimentos. As suas reflexões não eram pensamentos, o seu somno não era repouso. De dia não era um homem acordado, de noite não era um homem adormecido. Estava em pé, estava deitado, eis tudo. Quando estava na maca, esquecia-se um pouco; a isso chamava elle dormir; as chimeras flutuavam nelle e por sobre elle, a nuvem nocturna, cheia de faces confusas, atravessava-lhe o cerebro; o imperador Napoleão dictava-lhe as suas memorias, haviam muitas Deruchettes, extranhos passaros pousavam nas arvores, as ruas de Lons-le-Saulnier toruavam-se serpentes. O pesadelo era o descanço do desespero. Passava as noites a sonhar e os dias a scismar.

Ás vezes ficava uma tarde inteira, immovel á janella do quarto que dava para o porto, com a cabeça baixa, os cotovellos sobro o peitoril de pedra, as orelhas nas mãos, as costas voltadas para o mundo inteiro, o olhar fito na velha argola de ferro pregada no muro da casa a alguns pés da janella, onde outrora amarrava a Durande. Contemplava a ferrugem que invadia a argola.

Mess Lethierry estava reduzido á funcção machinal de viver.

Os homens mais valentes, privados da sua idéa realisavel, attingem a isto. É esse o effeito das existencias esvasiadas. A vida é a viagem, a idéa é o itinerario. Sem itinerario, pára-se. Perdido a alvo, morre a força. A sorte é um obscuro poder descricionario. Póde bater com as suas vergastas o nosso ser moral. O desespero é quasi a destituição da alma. Só os grandes espiritos resistem. E ainda assim...

Mess Lethierry meditava contiuamente, se a absorpção pode chamar-se meditação, no fundo de uma especie de precipicio turvo. Escapavam-lhe palavras desoladas como estas: só me resta pedir ao céo o meu bilhete de sahida.

Notemos uma contradição nesta natureza, complexa como o mar, de que mess Lethierry era, por assim dizer, o producto; mess Lethierry não resava.

Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotencia que o homem acha o ponto de apoio, a oração.

O homem soccorre-se do proprio medo; pede auxilio ao pavor; a anciedade aconselha o ajoelhar.

A oração, enorme força propria da alma, é da mesma especie que o mysterio. A oração dirige-se á magnanimidade das trevas; a oração contempla o mysterio com os olhos da sombra, e diante da fixidez poderosa desse olhar supplice, sente-se um desarmamento possivel no ignoto.

Essa possibilidade entrevista é já uma consolação.

Mas Lethierry não orava.

No tempo em que era feliz, Deos existia para elle, póde dizer-se que em carne e osso; Lethierry fallava-lhe, dava-lhe a sua palavra, dava-lhe quasi, de quando em quando, um aperto de mão. Mas no infortunio de Lethierry, phenomeno aliás frequente, Deos eclypsava-se. Isto acontece a quem imagina um Deos bonachão.

Não havia para Lethierry, no estado a que chegára, mais que uma visão pura, o sorriso de Deruchette. Fora desse sorriso, tudo era negro.

Desde algum tempo, sem duvida por causa da perda da Durande, cujo choque ella sentia, tornou-se raro o delicioso riso de Deruchette. Parecia preoccupado. Extinguia-se-lhe a gentileza de passaro e de criança. Já ninguem a via, ao tiro de peça da manhã, fazer uma cortezia e dizer ao sol: «bum!... jour!... queira entrar.» Tinha ás vezes um ar sério, cousa triste naquella doce creatura. Entretanto fazia esforço para rir a mess Lethierry, e para distrahil-o, mas a sua alegria apagava-se dia a dia, e cobria-se de poeira, como a aza de uma borboleta que um alfinete atravessou. Accrescentemos que, seja porque a tristeza do tio a fizesse triste, e ha dôres de reflexo, seja por outras razões, ella parecia agora inclinar-se muito para a religião. No tempo do antigo cura, Jaquemin Herodes, ella ia apenas quatro vezes á igreja. Agora era muito assidua. Não faltava a officio algum, nem aos domingos, nem ás quintas-feiras. As almas piedosas da parochia viam com satisfação esta emenda. Porquanto, é uma grande ventura para uma moça, que corre tantos perigos entre os homens, voltar-se para Deos.

Ao menos isto faz com que os paes fiquem tranquillos a respeito de namoricos.

De noite, sempre que o tempo permittia, passeava no jardim, uma ou duas horas. Andava quasi tão pensativa com mess Lethierry, e sempre só. Deruchette deitava-se por ultimo. Mas isto não impedia que Graça e Doce não a perdessem de vista, por esse instincto de espionar que anda ligado á domesticidade; espionar desenfada de servir.

Quanto a mess Lethierry, no estado obscurecido em que se achava o seu espirito, não percebia essas pequenas alterações nos habitos de Deruchette. Demais, elle não nascera aio. Nem mesmo notava a pontualidade de Deruchette aos officios da parochia. Tenaz no seu preconceito contra as cousas e os homens do clero, teria visto sem prazer essas frequencias á igreja.

Não é que a sua situação moral não estivesse em caminho de modificar-se. O pesar é nuvem e muda de forma.

As almas robustas, como dissemos, são ás vezes, em certas desgraças, distituidas quasi, mas não de todo. Os caracteres viris, taes como Lethierry, reagem n’um tempo dado. O desespero tem grãos ascendentes. Do acabrunhamento sobe-se ao abatimento, do abatimento á afflição, da afllição á melancolia. A melancolia é um crepusculo. Ahi o soffrimento funde-se em sombria alegria.

A melancolia é a ventura de ser triste.

Essas attenuações elegiacas não eram feitas para Lethierry; nem a natureza do seu temperamento, nem o genero da sua desgraça, comportavam essas variações. Sómente, no momento em que o encontramos, a scisma do seu primeiro desespero tendia a dissipar-se; sem estar menos triste, Lethierry estava menos inerte; continuava a estar sombrio, mas já não estava amortecido; voltava-lhe uma certa percepção dos factos e dos acontecimentos; e começava a sentir alguma cousa desse phenomeno que se poderia chamar a entrada na realidade.

Assim que, de dia, na sala baixa, não escutava as palavras, mas ouvia-as. Graça veio uma manhã triumphante dizer a Deruchette que mess Lethierry rasgára o envolucro do seu jornal.

Esta meia aceitação da realidade é em si um bom symptoma. É a convalescença. As grandes desgraças aturdem. Sahe-se do aturdimento por aquelle modo. Mas essa melhora parece ao principio um aggravo. O estado do sonho anterior embotava a dôr; antes via-se turvo, sentia-se pouco; agora a vista é clara, não se escapa a cousa alguma, sangra-se por tudo. Aviva-se a chaga. A dôr accentua-se com todos os pormenores que se vêem. Revê-se tudo na memoria. Achar tudo, é lamentar tudo. Ha nesta volta á realidade todas as provas amargas. Fica-se melhor e peior. É o que Lethierry sentia. Soffria mais distinctamente.

O que trouxera mess Lethierry ao sentimento da realidade, foi um abalo.

Digamos qual foi elle.

Uma tarde, a 15 ou 20 de Abril, ouvio-se na porta da sala baixa as duas pancadas que annunciavam o correio. Doce abrio a porta. Era uma carta.

Vinha do mar a carta. Era dirigida a mess Lethieny. Trazia o sello de Lisboa.

Doce levou a carta a mess Lethierry que estava fechado no quarto. Elle pegou na carta, pôl-a machinalmente na mesa, e nem olhou.

A carta ficou alli uma boa semana sem ser aberta.

Aconteceu, porém, que uma manhã Doce disse a mess Lethierry:

— Devo tirar a poeira de que está cheia a carta?

Lethierry pareceu accordar.

— Sim, disse elle.

E abrio a carta.

Leu isto:

«No mar, 10 de Março.

«Mess Lethierry, de Saint-Sampson.

«Receberá o senhor com prazer noticias minhas.

«Estou no Tamaulipas, em viagem para não voltar. Ha na equipagem um marujo, Ahier-Tostevin, de Guernesey, que ha de voltar ahi, e que lhe ha de contar alguma cousa. Aproveito o encontro do navio Hernan Cortez, com destino a Lisboa, para mandar-lhe esta carta.

«Espante-se. Sou um homem honesto.

«Tão honesto como o Sr. Clubin.

«Devo crer que já sabe o que aconteceu; comtudo não será máo que lhe lembre o caso.

«Eil-o:

«Restitui-lhe os seus capitaes.

«Tomei-lhe emprestados, um pouco incorrectamente, cincoenta mil francos. Antes de deixar Saint-Malo, entreguei, para o senhor, ao seu homem de confiança, o Sr. Clubin, tres notas do banco de mil libras cada uma, o que faz setenta e cinco mil francos. Creio que ha de achar esse reembolso sufficiente.

«O Sr. Clubin tratou dos seus interesses, e recebeu o seu dinheiro com energia. Parece-me um homem zeloso; é por isso que o advirto.

«O seu homem de confiança,

«Rantaine.»

«Post-scriptum.—O Sr. Clubin tinha um revolver, e foi por isso que não tive recibo.»

Tocai um torpedo, tocai uma garrafa de Leyde carregada, e sentireis o mesmo que sentio mess Lethierry lendo esta carta.

Debaixo daquella sobrecarta, naquella folha de papel dobrada em quatro, a que, no primeiro momento, dera pouca attenção, havia uma commoção.

Lethierry reconheceu a letra, reconheceu a assignatura. Quanto ao facto, nada comprehendeu ao principio.

A commoção foi tal que lhe poz, por assim dizer, o espirito em pé.

O phenomeno dos setenta e cinco mil francos que Rantaine confiára a Clubin, era um enigma, e era por isso o lado util do abalo, visto que obrigava Lethierry a reflectir. Fazer uma conjectura, é para o pensamento uma occupação sã. Accorda, o raciocinio, convoca-se a logica.

Desde algum tempo, a opinião publica de Guernesey occupava-se em julgar Clubin, o honrado homem que por tantos annos foi unanimemente admittido na circulação da estima. Interrogavam-se uns aos outros, duvidava-se, apostava-se pró e contra. Appareceram singulares esclarecimentos. Clubin começava a apparecer em toda a luz, isto é, tornava-se negro.

Houve em Saint-Malo uma devassa judiciaria para saber onde parava o guarda-costa 619. A perspicacia legal enganara-se, o que lhe acontece muitas vezes. Partia da supposição de que o guarda-costa fôra attrahido por Zuella e embarcado no Tamaulipas para o Chile. Esta hypothese engenhosa trouxe comsigo muitas aberrações. A myopia da justiça não chegou a vêr Rantaine. Mas no decurso da pesquiza os magistrados descobriram outros rastos; complicara-se o negocio que já era obscuro. Clubin entrava no enigma. Havia uma coincidencia, alguma relação talvez, entre a partida do Tamaulipas e a perda da Durande. Na taverna da porta Dinan, onde Clubin acreditava não ser conhecido, foi conhecido; o taverneiro fallou; Clubin tinha comprado uma garrafa de aguardente. Para quem? O armeiro da rua Saint-Vicent tambem fallou; Clubin comprára um revolver. Contra quem? O dono da hospedaria João tambem fallou; Clubin costumava a ter ausencias inexplicaveis. O capitão Gestrais Gaboreau tambem fallou; Clubin quiz partir, apezar de avisado e sabendo que devia haver nevoeiro. A tripolação da Durande tambem fallou. O carregamento era falho e mal arranjado, negligencia facil de comprehender, se o capitão quer perder o navio. Tambem fallou o passageiro guernesiano; Clubin cuidou ter naufragado nos Hanois. Tambem fallou a gente do Torteval; Clubin foi alli alguns dias antes do naufragio e dirigio-se para Plainmont, vizinho dos Hanois. Levava uma mala, e não voltou com ella. Igualmente fallaram os furta-ninhos; a historia delles parecia prender-se ao desapparecimento de Clubin, comtanto que em vez de almas de outro mundo, fossem contrabandistas. Finalmente a propria casa mal assombrada de Plaimont fallou; algumas pessoas, resolvidas a se esclarecerem, tinham-na escalado, e o que acharam dentro? Exactamente a mala de Clubin.

Os magistrados de Torteval apprehenderam a mala e abriram-na. Continha provisões de bocca, um oculo, um chronometro, roupas de homem, e roupa branca marcada com as iniciaes de Clubin. Tudo isso, nas conversas de Saint-Malo e Guernesey, ia-se accumulando, e já roçava pela fraude. Comparavara-se symptomas confusos; averiguava-se o desdem singular pelos conselhos, a affronta do nevoeiro, a negligencia na arrumação das cargas, a garrafa d’aguardente, o timoneiro ébrio, a substituição do capitão ao timoneiro, o movimento do leme, ao menos desastrado. O heroismo em ficar no navio tornava-se velhacaria. Demais, Clubin enganou-se no escolho. Addmittida a intenção de fraude, comprehendeu-se a escolha dos Hanois, a facilidade de nadar para a costa, e a residencia na casa mal assombrada até chegar a occasião de fugir. A mala acabava a demonstração. Qual o élo que prendia esta aventura á do guarda-costa, ainda não se tinha descoberto. Adivinhava-se uma correlação; nada mais. Entrevia-se, quanto a esse homem, o guarda-costa 619, um drama tragico. Clubin talvez não representasse nelle, mas descobriam-no nos bastidores.

Nem tudo se explicava pela fraude. Havia um revolver sem emprego. O revolver entrou talvez no caso do guarda.

O faro do povo é fino e acertado. O instincto publico é habil nestas restaurações da verdade feitas de pedaços soltos. Sómente, nesses factos, de que resultava uma fraude verosimil, haviam sérias incertezas.

Tudo concordava; mas não havia base.

Não se perde um navio pelo gosto de perdel-o. Não se correm os riscos do nevoeiro, do escolho, do nadar, do refugio, e da fuga, sem um interesse. Qual seria o interesse de Clubin?

Via-se o acto, não se via o motivo.

Dahi vinha a duvida a muitos espiritos. Onde não ha motivo, parece que não ha acto.

A lacuna era grave.

Ora a carta de Rantaine vinha preencher a lacuna.

A carta dava o motivo de Clubin. Queria roubar setenta e cinco mil francos.

Rantaine era o Deus ex machina. Descia das nuvens com uma vela na mão.

A carta era o esclarecimento final.

Explicava tudo essa carta, e demais a mais annunciava uma testemunha, Ahier-Tostevin.

Cousa decisiva, sabia-se agora o emprego do revolver. Rantaine estava incontestavelmente informado de tudo. A sua carta fazia tocar tudo com o dedo.

Nenhuma attenuante possivel na malvadeza de Clubin. Premeditára o naufragio, e a prova era a mala levada para a casa Plainmont. E suppondoo innocente, admittindo o naufragio fortuito, não devia elle, no ultimo momento, decidido ao sacrificio, entregar os setenta e cinco mil francos aos homens que se salvaram na chalupa? Era evidente. Mas que era feito de Clubin? Foi provavelmente victima do seu erro. Pereceu sem duvida no escolho Douvres.

O andaime de conjecturas, todas conformes, na realidade, occupou durante muitos dias o espirito de mess Lethierry. A carta de Rantaine teve a utilidade de obrigal-o a pensar. Teve um primeiro abalo de sorpreza, depois fez esforço de reflectir. Fez outro esforço mais difficil ainda para informar-se. Acceitou e procurou mesmo as conversas. No fim de oito dias tornou-se pratico até certo ponto; o espirito fortaleceu-se e quasi ficou curado. Sahio do estado turvo.

A carta de Rantaine, admittindo que mess Lethierry tivesse algum dia a esperança do reembolso, fez desapparecer a ultima probabilidade.

Á catastrophe da Durande ajuntava-se o naufragio dos setenta e cinco mil francos. A carta empossava-o do dinheiro tanto quanto lhe bastava para sentir a perda. Mostrava-lhe o fundo da ruina.

Dahi veio um soffrimento novo, e agudissimo, que já indicámos. Começou, cousa que ha dous mezes não fazia, a preoccupar-se com a casa, do que havia, e que reformas devia fazer. Tédio eriçado de mil pontas, quasi peior que o desespero. Odiosa cousa é supportar a desgraça por miudo, disputar passo a passo ao facto realisado o terreno que elle vem tomar. Acceita-se a massa do infortunio, a poeira não. O conjuncto acabrunha, o pormenor tortura. Ha pouco a catastrophe fulminava, agora mortifica.

Essa é a humilhação aggravante do infortunio. É uma segunda annullação que vem ajuntar-se á primeira, e feia. Desce-se um degráo no nada. Depois do sudario, o andrajo.

Nada mais triste do que pensar em decahir.

Parece simples estar arruinado. Golpe violento; brutalidade da sorte; é a catastrophe uma vez por todas. Seja. Aceita-se. Tudo está acabado. Fica-se arruinado. Está dito, morreu. Qual! vive-se. É o que no dia seguinte começa-se a sentir. Porque? Por alfinetadas. Passa um homem sem tirar o chapéo, chovem as contas das lojas, ri-se um inimigo. Ri-se talvez do ultimo trocadilho de Arnal, mas é o mesmo, o trocadilho pareceu-lhe mais engraçado, exactamente por que estás pobre. Lês a tua decadencia até nos olhares indifferentes; as pessoas que jantavam em tua casa, acham demasiado os tres pratos da tua mesa; os teus defeitos saltam aos olhos de todos; as ingratidões, não tendo que esperar mais nada, tiram a mascara; todos os imbecis predisseram o que te acontece; os máos dilaceram-te, os peiores lamentam-te. E mais cem pormenores mesquinhos. A nausea succede ás lagrimas. Bebeis vinho, beberás cidra. Duas criadas! Uma seria de mais. Devia-se despedir esta, sobrecarregar aquella. Ha flôres de mais no jardim; planta antes batatas. Davas flôres aos amigos, vende-as agora no mercado. Quanto aos pobres, já não deves pensar nelles; também não és pobre? As toilettes, questão pungente. Diminuir uma fita a uma mulher, que supplicio! Recusar o enfeite, a quem te dá a belleza! Ter ares do avarento! Talvez que ella te diga:—Pois que! tiraste as flôres do meu jardim, e agora as tiras do meu chapéo!—Ai triste! condemnal-a aos vestidos velhos! A mesa de familia é silenciosa. Parece-te que te querem mal. Os rostos amados parecem preoccupados. Eis o que é a decadencia. Cumpre-te morrer todos os dias. Cahir, não é nada, é a fornalha. Decahir, é o fogo lento.

A quéda é Waterloo; a decadencia é Santa Helena. A sorte, encarnada em Wellington, tem ainda alguma dignidade; mas quando se faz Hudson Lowe, que vilania! O destino torna-se um bigorrilhas. Vê-se o homem de Campo-Formio querelando por um par de meias de seda. Agorentou-se a Inglaterra, agorentando Napoleão.

Essas duas phases, Waterloo e Santa Helena, reduzidas ás proporções burguezas, todos as atravessam.

Na noite de que fallámos e que era uma das primeiras noites de Maio, Lethierry deixando Deruchette passear ao luar, no jardim, deitou-se mais triste que nunca.

Rolavam-lhe no espirito todas essas minucias mesquinhas e desagradaveis, complicações de fortunas ardidas, todas essas preoccupações de terceira ordem, que começam por ser insipidas e acabam lugubres. Triste accumulação de miserias. Mess Lethierry sentia a sua queda irremediavel. Que devia fazer agora? Que seria delle? Que sacrificios devia impôr a Deruchette. Quem devia despedir, Doce ou Graça? Venderia a casa? Seria obrigado a abandonar a ilha? Não ser cousa alguma onde se foi tudo, é uma decadencia insuportavel.

E pensar que estava acabado! Recordar as viagens de França ao archipelago, a partida ás terças-feiras, a chegada ás sextas, a chusma no cáes, aquelles grandes carregamentos, aquella industria, aquella prosperidade, aquella navegação directa e altiva, aquella machina sugeita á vontade do homem, aquella caldeira omnipotente aquelle fumo, aquella realidade! O vapor é a bussola completa; a bussola indica o caminho, o vapor segue por elle. Uma propõe, a outra executa. Onde estava agora a sua Durande, aquella magnifica e soberana Durande, aquella senhora do mar, aquella rainha que o fazia rei? Ter sido o homem idéa, o homem triumpho, o homem revolução! e renunciar! abdicar! Não existir! fazer rir aos outros! ser um sacco onde já houve alguma cousa! Ser o passado quem foi o futuro! merecer a compaixão altiva dos idiotas! ver triumphar a rotina, a obstinação, o rammerrão, o egoismo, a ignorancia! ver começar outra vez as viagens dos cutters gothicos sacudidos pela vaga! ver a antigualha rejuvenecer! perder a vida! perder a luz e soffrer o eclypse! Ah! como era bello vêr sobre as vagas aquelle cano orgulhoso, aquelle prodigioso cylindro, aquelle pilar de um capitel de fumo, aquella columna maior que a de Vendome, porque havendo nesta apenas um homem, ostentava-se naquella o progresso! O oceano está por baixo; era a certeza em pleno mar. Vio-se aquillo, naquella pequena ilha, naquelle pequeno porto, naquelle pequeno Saint-Sampson? Sim, vio-se! Pois que! vio-se e não se verá mais!

Toda este obsessão da saudade mortificava Lethierry. Ha soluços no pensamento. Talvez nunca sentisse mais amargamente a sua perda. Depois de taes excessos agudos costuma vir um entorpecimento. Debaixo desse peso de tristeza Lethierry adormeceu.

Ficou cerca de duas horas com as palpebras fechadas, dormindo pouco, sonhando muito, febril. Esses torpores cobrem um obscuro e fatigante trabalho do cerebro. Pela meia noite, um pouco antes, ou um pouco depois, Lethierry sacudio o adormecimento. Acordou, abrio os olhos, a janella estava em frente á maca, vio uma cousa extraordinaria.

Havia uma forma diante da janella. Forma inaudita. O cano de um vapor.

Mess Lethierry levantou-se de um salto. A maca oscilou, como se fosse abalada pela tempestade. Lethierry olhou. Havia na janella uma visão. O porto illuminado pela lua reflectia-se nos vidros, e no meio do luar, e, proxima á casa, surgia uma soberba forma recta, redonda e negra.

Era um tubo de machina.

Lethierry precipitou-se para fora da maca, correu á janella, levantou a vidraça, inclinou-se e reconheceu.

O cano da Durande estava diante delle.

Estava no lugar do costume.

As quatro correntes prendiam o cano á borda de um barco dentro do qual distinguia-se uma massa de fórma complicada.

Lethierry recuou, voltou as costas á janella e cahio assentado na maca.

Voltou-se outra vez e vio a mesma visão.

Um momento depois, apenas o espaço de um relampago, estava elle no cáes com uma lanterna na mão.

Á velha argola onde se prendia a Durande estava amarrada uma barca trazendo um pouco á ré um vulto massiço donde sahia o cano que ficava em frente á janella. A prôa da barca prolongava-se além do canto da parede da casa e encostada ao cáes.

Não havia ninguem na barca.

A barca tinha uma forma especial, conhecida por todos em Guernesey; era a pança.

Lethierry pulou deutro. Correu á massa que ficava alem do mastro. Era a machina.

Era ella, inteira completa, intacta, sentada sobre o fundo de metal; a caldeira estava com todas as peças; a arvore das rodas estava arranjada e amarrada perto da caldeira; a bomba estava no seu lugar; nada faltava.

Lethierry examinou a machina.

A lanterna e a lua ajudaram-lhe o exame.

Passou em revista todo o machinismo.

Vio as duas caixas que estavam ao pé. Olhou para a arvore das rodas.

Foi ao camarote; estava vasio.

Voltou á machina e apalpou-a. Metteu a cabeça na caldeira. Ajoelhou-se para ver dentro.

Collocou na caldeira a lanterna que illuminava todo o mechanismo e produzia o effeito de uma machina acesa.

Depois deu uma gargalhada, e levantando-se, com o olhar fixo na machina e os braços estendidos para o cano, gritou: soccorro!

O sino do porto ficava perto. Lethierry correu a elle, segurou a corda, e começou a sacudir o sino impetuosamente.