Saltar para o conteúdo

Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo/II

Wikisource, a biblioteca livre

II

Causas de erro para a historia da solução dos problemas


Para podermos seguir passo a passo a marcha dos descobrimentos, para vermos como pouco a pouco se foi correndo a cortina que escondia aos olhos dos homens da nossa raça metade do mundo conhecido, é necessario a cada instante abstrahirmos dos nossos conhecimentos actuaes, para nos collocarmos no ponto de vista em que os homens de eras anteriores se collocavam em virtude do que elles então sabiam. A falta d’essa correcção indispensavel arrasta muitos escriptores notaveis a erros grosseiros, que muitas vezes lhes escapam exactamente por não terem o cuidado constante de applicarem essa correcção ás tradições que dos tempos passados lhes vem. O proprio Humboldt, que frequentemente observa quanto é funesto esse erro, a esse erro cede só porque uma vez se esqueceu de verificar qual era a região que nos principios do seculo XV era conhecida pelo nome de Guiné. Se reparasse que a Guiné de Bethencourt ficava comprehendida entre o cabo Cantim e o Bojador não acceitaria a pretenção franceza de terem chegado os Normandos de Dieppe e o proprio Bethencourt a essa Guiné tropical que já muito para além fica do Cabo Bojador. Pois é elle comtudo que nota como é fallaz a denominação de India dada pelos antigos a varias regiões, visto que muitas vezes comprehendia as regiões meridionaes da Asia, a parte da Asia que chegava ao mar Vermelho, e ainda o extremo Oriente. Marco Polo designava tres Indias, havia a India exterior e a India inferior, a India superior que era a parte mais oriental da Asia etc.[1]Pois ainda hoje frequentemente se espantam homens instruidos não de que Colombo julgasse ter encontrado a Asia, mas de que imaginasse ter encontrado a India, arrastados pela tendencia natural de vermos com os nossos olhos de agora a geographia dos outros tempos; e de suppôrmos que a India não podia ser no seculo XV senão a que nós hoje conhecemos e como tal designamos.

Quantas vezes mudou no decorrer dos tempos a posição geographica de varias terras, a que attribuimos a sua posição actual, logo que lhes encontramos em mappas antigos os nomes! Quantas terras differentes receberam o mesmo nome que de umas a outras foi passando, segundo as conjecturas dos geographos! As ilhas Afortunadas, como a ilha fluctuante de Delos, foram sempre navegando para o occidente, até que a geographia positiva as fixou nas Canarias, arrancando-lhes o véo da lenda em que os antigos as envolviam. Estiveram primeiro no grande Oasis no Egypto, passaram depois para o sul da Cyrenaica, depois ainda para defronte do rio Lukkos, quer dizer, quasi pegadas com a costa marroquina, e só depois para o ponto em que estão as Canarias.[2] A quantas ilhas se applicou o nome de Taprobana, que nós affirmamos hoje que era Ceylão, quando muitas vezes a sua posição corresponde á de Sumatra, e quando outras vezes a collocava a geographia conjectural dos antigos no oriente das Indias![3]A que peninsulas tão diversas se attribuiu o nome de Aurea Chersoneso que arbitrariamente suppomos agora que correspondia á peninsula de Malaca![4] Como é perfeitamente conjectural, apezar dos argumentos de alguma força apresentados por Mr. d’Anville, a identificação de Sofala com Ophir![5] Como ainda se illudem hoje os mais serios investigadores com o nome de Ethiopia, que intentam applicar ao paiz que hoje consideramos como tal, quando a Ethiopia, na supposição dos antigos, abrangia toda a parte meridional da Africa e vinha ligar-se com a costa marroquina![6]Como poderiamos nunca ter fé n’essas identificações, se vemos que os antigos e os Arabes, e os povos da edade média davam á India uma fórma completamente phantastica, suppunham que o mar das Indias era um mar mediterraneo, approximavam assim a costa asiatica da costa africana, como a costa africana está proxima da Europa no Mediterraneo europeu, sendo por conseguinte tão possivel que ficasse Ophir na Africa como na India!

Depois que enorme cautella é ainda necessaria para o exame dos antigos mappas, onde a phantasia se dava largas, e onde se misturavam com alguns factos positivos todas as conjecturas que formava ou a imaginação ou o espirito reflexivo d’aquelles que os traçavam! Como é ridiculo para quem conhece o espirito que presidia á elaboração dos mappas ouvir escriptores serios fallarem com muita gravidade no famoso mappa trazido pelo infante D. Pedro das suas viagens, e onde estão traçados o cabo da Boa Esperança e até o estreito de Magalhães! Não sabem esses escriptores que, até depois de feitos os descobrimentos, a phantasia dos cartographos não se contentava com os factos positivos narrados pelos navegadores e continuava a ampliar por sua conta o mundo conhecido! Os proprios navegadores ás vezes contribuiam para illudir os cartographos. Christovão Colombo, ao tocar na ilha de Cuba, julgou ter chegado a terra firme e tanto d’isso se convenceu que fez jurar aos seus tripulantes que fôra n’um continente que tinham effectivamente tocado![7] Pedro Alvares Cabral tomou o Brazil por uma grande ilha. Em mappas muito posteriores aos descobrimentos americanos, feitos já depois de Vasco Balboa ter encontrado o Pacifico, collocou-se no sitio em que está o isthmo de Panamá[8] um estreito que punha em communicação os dois mares. Mas isso não impediu os que se enlevam na demolição de glorias estabelecidas de sustentar que o infante D. Henrique tinha mappas que até lhe mostravam onde era o cabo da Boa Esperança, que Colombo levava comsigo mappas que lhe davam o traçado da America, que Fernão de Magalhães n’um globo de Martim de Behaim vira traçado o estreito famoso que hoje tem o seu nome, e que Pedro Alvares tinha um mappa tambem que lhe designava o sitio em que encontrou o Brazil! Puerís tentativas! Quantas vezes effectivamente n’esses mappas conjecturaes podia fazer o acaso que coincidisse com a descoberta a ilha ou a terra phantasiada pela imaginação dos cartographos; mas logo o formigar dos erros perfeitamente incompativeis com o imaginario descobrimento prova exuberantemente que só em coincidencias fortuitas e insignificantes elle se poderia basear.

O que melhor pode mostrar como faltava completamente aos antigos o conhecimento da terra, para além dos estreitos limites em que se concentraram as civilisações do Oriente e a civilisação greco-romana, está na variedade dos systemas com que se procurava explicar a fórma do mundo. A sciencia não caminhava com passo seguro, juntando ao thesouro das idéas conquistadas cada idéa nova que ia sendo adquirida. Como todas as explicações eram conjecturaes, cada nova theoria provava apenas a argucia e o engenho do espirito que a concebia, mas estava sujeita á discussão e á contradicção como todas as soluções que não assentam em factos positivos e incontestaveis. Pode dizer-se que a idéa da esphericidade da terra triumphou na antiguidade, mas pode dizer-se que triumphou porque a sustentavam os mais esclarecidos espiritos, não porque todos a reconhecessem, e porque não houvesse tambem homens de primeira plana que absolutamente a negassem. Sustentou-a Ptolomeu, mas contestou-a vivamente Plutarcho.[9] A theoria de ser a terra um disco cercado pelo rio Oceano, que é a theoria homerica, essa desappareceu é certo, porque a observação dos phenomenos celestes mostrou de um modo evidente quanto era absurda, porque se via bem que não era possivel que o sol se sumisse no occidente, e voltasse depois pelo mesmo caminho e em segredo de noite para reapparecer no Oriente, porque o movimento apparente do céo não podia explicar-se senão allegando-se que os corpos celestes n’uma parte da sua marcha passavam por debaixo da terra, para reapparecerem no sitio opposto áquelle por onde se tinham sumido. Então sim, então a idéa de que a terra assentava em bases solidas, tendo por cima de si o céo estrellado, desappareceu completamente, e a primeira conquista da sciencia foi a que suspendeu a terra no espaço, embora fizesse d’ella ainda o centro da creação, embora suppozesse que tudo se fizera no Universo em sua honra, que em torno d’ella giravam no immenso espaço em varias espheras concentricas os orbes luminosos que entoavam a harmonia, que Platão julgava escutar n’um arrobamento infinito, e que espalhavam nos intermundios a chamma ora intensa como a do sol, ora meiga como a da lua, ora palpitante e suavissima como a das estrellas, das corôas resplandecentes com que a Divindade as cingiu.

Mas com relação á fórma da terra que diversidade de opiniões! Pomponio Mela considerava a terra chata como a suppunham os Hebreus, como a suppozeram depois os Padres da Egreja, e entre elles Santo Agostinho, Lactancio, S. Justino martyr; Ephoro dava-lhe a fórma de um quadrilongo, Cicero, no famoso Sonho de Scipião, acceitava as doutrinas dos geographos mais notaveis, considerava-a espherica, e essa opinião foi seguida por Macrobio, que tambem dava, como Cicero, á parte habitada a fórma de uma chlamyde. Entre os sabios que sustentavam na antiguidade o principio de que a terra era espherica, avulta o grande nome do geographo antigo Ptolomeu. Outros porém baseiam-se na doutrina de Thalés, suppõem a terra ovoide, e Posidonius suppõe que essa ellipse estreita que constitue a terra termina em duas pontas agudissimas.[10] Apezar d’essas differenças porém, a opinião da esphericidade da terra é a que predomina entre os antigos, é a que tem a seu favor a enorme authoridade de Ptolomeu e de Platão e de Aristoteles e de Eratosthenes e de Hipparcho e de Cicero e de Strabão, a que é preconisada pela escola de Alexandria e que adquire por conseguinte um verdadeiro valor scientifico, mas a religião christã intervem no debate, e a theoria dos antigos é considerada como heterodoxa pelos Santos Padres. A terra tem a fórma de tabernaculo, a existencia dos antipodas é condemnada como absolutamente contraria á logica divina, e esta opinião tão respeitada, tão importante introduz immediatamente a confusão nos espiritos da edade média. O conhecimento da sciencia arabe traz ainda um novo elemento de complicação. Na sciencia oriental sente-se de um modo accentuadissimo o reflexo da tradição grega. Ptolomeu e Aristoteles teem ferventes discipulos nos sabios orientaes, que podem esfumar as suas doutrinas no vago do seu maravilhoso, mas que no fundo as acceitam e as applaudem. E assim vamos encontrar por toda a edade média a velha theoria grega reforçada agora pela adhesão arabe em lucta com as prescripções christãs. Não se pode apagar n’esses espiritos medievaes, que tinham pelo saber da antiguidade um supersticioso respeito, a influencia de Ptolomeu, mas deante da voz auctorisada dos Santos Padres tudo se inclina e emmudece. Então vamos encontrar os cartographos da edade média empenhados na improba tarefa, que tantas vezes se tem repetido, de procurarem conciliar as doutrinas da Egreja com a tradição da sciencia. Apparece-nos muitas vezes a terra como um quadrado inscripto n’um circulo, e, ao passo que o systema das espheras applicado ao systema cosmographico encontra nos espiritos da meia edade um verdadeiro engodo, a terra fixa no meio do universo espherico mantem a fórma especial que os Santos Padres decretaram que tivesse.[11] Durante largos seculos pairou sobre a humanidade a duvida mais profunda ácerca da fórma do planeta que ella habita. Se alguns sabios entrevêem a verdade, e a sustentam e a defendem, é simplesmente pelas deducções que tiram dos seus calculos e das suas observações astronomicas, não pelo conhecimento directo que possam ter do planeta. Por isso tambem a orthodoxia triumpha, embora as razões em que se funda não sejam bastante poderosas contra o raciocinio dos philosophos, mas, apezar da fraqueza da argumentação, a fé supera sempre facilmente as theorias conjecturaes dos seus adversarios. É por isso que ella ainda hoje é sempre victoriosa na sua lucta contra os systemas philosophicos adversos. Ella dá uma certeza sem fundamento que não seja a auctoridade respeitada da tradição e da crença, os outros oppõem-lhe theorias mais ou menos verosimeis, mas todas baseadas em simples conjecturas. No dia em que o materialismo conseguir fazer palpar o principio vital, ainda hoje incoercivel, e que se representa por esse nome fascinador da alma dotada de immortalidade, o espiritualismo cahiu para não mais se levantar. Emquanto a demonstração da redondeza da terra e da existencia dos antipodas não sahiu do dominio conjectural, a fé que oppunha a essas vagas theorias uma affirmação baseada em tradicções tão conjecturaes como os raciocinios adversos mas aferradas ao espirito humano pelas raizes potentissimas da tradição, os Santos Padres triumphavam. Veiu um dia, porém, em que um pequeno povo debruçado sobre os mysterios do Oceano resolveu sondal-os e quebrar as barreiras que separavam do mundo conhecido essa região enigmatica, transpôr o que lhe diziam que era inultrapassavel, chegar ás regiões defezas, arrombar as portas fechadas pela triplice chave da sciencia, da fé e da lenda, e o que dezenas de seculos não tinham conseguido conseguiu-o meio seculo apenas. Então a sciencia não parou, não retrocedeu, não se contradisse, não se perdeu em conjecturas. Cada facto que se adquiria era uma confirmação de uma theoria contestada, ou a revelação de uma theoria nova. A fé cedeu deante da evidencia. Quando os marinheiros portuguezes entraram na zona torrida, cahiu por terra a idéa consagrada da impossibilidade d’alli se viver, quando entraram na zona temperada do sul, desappareceu, substituida pela real, a terra antichthona, e a Egreja teve de acceitar os antipodas; quando Colombo transpoz o Oceano occidental, a idéa da immensidade dos mares perdeu-se para sempre; quando Fernão de Magalhães passou do Atlantico ao Pacifico, e quando o seu ultimo navio veiu fundear n’um porto da peninsula hispanica depois de ter dado volta completa ao mundo, não teve mais contradictores nem descrentes a theoria da esphericidade da terra. O quadrado dos Santos Padres cahiu desfeito pelas cargas repetidas d’esses cavalleiros do Oceano.

Não é já só, porém, com as phantasias orthodoxas, nem com os devaneios dos sonhadores scientificos, que a terra depois de explorada audaciosamente se torna incompativel. O proprio systema scientifico de Ptolomeu, essa gloria da antiguidade greco-romana, estala não podendo conter em si o mundo tal como foi estudado e descoberto. O systema de Copernico restitue ao sol a sua magestade e a sua humildade á terra. Se não era o sol que percorria lentamente o zodiaco, illuminando no mais alto do seu curso com a sua luz fecundante a terra privilegiada, e queimando quando se abaixava a terra condemnada e maldita, se a zona torrida não era um inferno sempre em chammas, nem nas suas proximidades pullulavam os monstros como os Cerbéros d’esse Tartaro, como as viagens portuguezas amplamente demonstravam, que motivo havia para se suppôr que o Sol não era senão o instrumento das bençãos ou das maldições de Deus sobre a Terra, e porque não seria antes a Terra que adejaria no espaço, irmã d’esses numerosos planetas que no céo resplandeciam, atomo no meio d’essa immensidade de atomos, bago d’essa poeira de luz dispersa no firmamento, e posta em movimento pelo sopro mysterioso da grande attracção universal? E a Copernico succediam Képler e Newton, e as leis do Universo iam-se coordenando n’um Codigo formulado pela sciencia, não ao acaso das conjecturas, mas segundo as indicações positivas dos factos. E assim foi que a audacia portugueza transformou completamente a sciencia humana, e iniciou esta epocha portentosa que dura ha quatro seculos apenas, e que deu mais á humanidade que as dezenas de seculos da historia conhecida que a precederam. E assim é que, se a Colombo cabe a indisputavel gloria de ter destruido a fabula que tornava inaccessiveis as terras do occidente, ao infante D. Henrique mais do que a nenhum outro cabe a gloria immensa de ter affrontado a sciencia, a fé e a lenda para fazer da sciencia conjectural uma sciencia positiva, da fé que amesquinhava a humanidade a fé que a ampliou, da lenda que acovardava a alma humana a epopéa que a enalteceu.

Foi grande Colombo, grande Vasco da Gama, e grande Magalhães! Formam um grupo de heroes os audazes marinheiros que desde Gil Eanes até Bartholomeu Dias, desde Pinzon até Queiroz, sulcaram todos os mares, e affrontaram todas as tempestades, compõem uma phalange benemerita os missionarios da sciencia, que, desde João Fernandes o humilde iniciador da exploração scientifica do continente africano até aos modernos sabios viajantes, se internaram nos sertões affrontando os povos barbaros, como formam uma legião sagrada os missionarios da fé que não recúaram deante dos mais horridos perigos para levarem a regiões ignotas a palavra divina, mas o genio iniciador, que tornou possiveis todos estes feitos, e concebiveis essas audacias, foi o pensativo infante, que accendeu com as suas mãos intrepidas, entre os motejos da sciencia, os anathemas da Egreja e os gritos pavidos da superstição, esse pharol glorioso que projectou de Sagres sobre o vasto Oceano, por cima das suas ondas tenebrosas, a luz radiosa e serena que foi a verdadeira aurora da civilisação moderna.


Notas

[editar]
  1. Ácerca das tres Indias, e das differentes denominações com que apparecem na edade média, veja-se sobretudo o magnifico Essai sur l’histoire de la cosmographie et de la cartographie pendant le moyen-âge, etc., pelo visconde de Santarem, tom. I, pag. 136, 251, 182, 394, tom. II, pag. XXXVIII, 189, 223, tom. III, pag. 28, 420, 346, 371, 161, 199, 217, 274, 161, 240, 442, 360, 370, 195. (Paris, 1849). Os nomes das differentes Indias são variadissimos, Barbara, Deserta, Primeira, Segunda e Terceiro, Magna e Parva, Superior, Inferior e Exterior, Intra Gangem, Ultima, Arenosa, etc. Sabendo-se o que eram estas differentes Indias, como abrangiam a Tartaria, a Arabia, a China, e até a Ethiopia, espantar-se-ha menos o leitor de que os Portuguezes procurassem na Africa o Prestes João das Indias. Essa lenda tambem mudou de local como o nome de Guiné e a designação de Ethiopia, mas pode-se dizer que nunca saíu de alguma d’essas Indias.
  2. Gosselin Recherches sur la géographie systématique des anciens, tom. I, pag. 140. É firmando-se na auctoridade de Herodoto que este sabio affirma que o grande Oasis do Egypto tinha outr’ora o nome de ilha dos Bemaventurados.
  3. O mappa-mundi de 1417, conservado no palacio Pitti, por exemplo, indica duas Taprobanas, Ceylão e Sumatra. Quando não era Sumatra exclusivamente Taprobana, era a uma das duas ilhas que esse nome se dava. D. João de Castro no prologo do seu Roteiro de Lisboa a Goa, quando falla a El-Rei de Portugal nos dominios que tem, diz: «como Taprobana que os antigos criam ser outro mundo nouo, reconhece seu alto nome e lhe paga pareas» e accrescenta em nota: «Taprobana é agora chamada Samatra» a pag. 14. A essa Taprobana tambem se refere evidentemente Camões no seu famoso verso:

    Passaram inda além da Taprobana

    Tendo no tempo de Camões chegado os Portuguezes já ao Japão, era bem natural que, havendo a Taprobana-Ceylão e a Taprobana-Sumatra a esta ultima se referisse o grande poeta indicando o limite ultrapassado pelos Portuguezes. O famoso mappa da cathedral do Hereford colloca a Taprobana defronte do golpho Arabico. Prisciano no seu poema geographico põe a Taprobana no mar oriental juntamente com a ilha phantastica do Ouro. No tratado De moribus brachmanorum que se attribue a S.ᵗᵒ Ambrosio citado por Klaproth na sua Lettre sur la boussole, pag. 53, põe-se a Taprobana em Ceylão, ilha que tem magnetes que attrahem os navios que teem pregos de ferro e não os deixa mover. N’alguns mappas da edade média põe-se a Taprobana deante da bocca do Ganges
  4. A Aurea Chersoneso de Ptolomeu e de Marino de Tyro corresponde sem duvida á peninsula de Malaca, mas o mappa de La Salle por exemplo colloca a Aurea Chersoneso no Indostão.
  5. Mémoire sur le pays d’Ophir, oú les flottes de Salomon alloient chercher de l’or, nas Mémoires de littérature de l’Académie royale des inscriptions et belles-lettres, tom. XXX, pag. 83 a 93, (Paris, 1764). Este paiz de Ophir tem uma terrivel parecença com as ilhas de Chryse e de Argyra, e do Sol e dos Homens e das Mulheres que apparecem nos mappas conjecturaes. N’alguns mappas Ophir tambem apparece como ilha. Querer determinal-o não será querer tomar muito ao pé da letra as indicações vagas da Biblia?
  6. A idéa adoptada na edade média, que vinha da antiguidade e que durou até ao seculo XVI, é a das duas Ethiopias de Homero, a que fica entre os dois Nilos, e a que se liga com os Mauritanos. S. João Damasceno, dividindo os habitantes da terra segundo as areas dos ventos, dizia: «Ad Africum Ethiopes et occidentales Mauri, ad Favonium Herculis columnæ, etc.» De fide orthodoxa, tom. I, pag. 69. Apud Visconde de Santarem Essai sur l’histoire de la cosmographie, etc., tom. I, pag. 32. Assim é corrente que a baixa Ethiopia começa para os escriptores medievaes nas proximidades da Mauritania, quer dizer, pega com a Guiné primitiva, com a Guiné de Bethencourt. O titulo dos reis de Portugal mostra bem que Ethiopia quer dizer simplesmente Africa. Assim diz o titulo: Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’além-mar em Africa... (Este Algarve na Africa era Ceuta e Tanger, etc.) senhor de Guiné (no sentido que esta palavra tomou depois dos descobrimentos) da conquista navegação e commercio da Ethiopia (Africa meridional e oriental) Arabia, Persia e India (tambem na significação da meia-edade, abrangendo a Asia Oriental). É curioso que um escriptor moderno, de grande merecimento, transcrevendo um trecho de um escriptor já do seculo XVII, em que se diz que um navio que ia para a Ethiopia foi levado pelas correntes para o Brazil, com isso muito se espanta. Não se lembra que a região da Ethiopia comprehendia até a Africa occidental que ficava para além da Guiné.
  7. Na primeira viagem, Colombo, chegando a Cuba, disse: Es cierto que esta es la Tierra-Firme, Diario de 1 de novembro. Na segunda viagem confirmou essa opinião, e fel-a jurar solemnemente pelos marinheiros a 12 de junho de 1494. Humboldt Histoire de la géographie du Nouveau Continent, tom. I, pag. 310, nota.
  8. Vejam-se no principio do segundo volume do magnifico livro de Humboldt as indicações relativas aos mappas d’esse tempo que separavam umas das outras as diversas porções da America.
  9. No seu tratado publicado em latim na edição Reich com o titulo De facie in orbe Lunæ, tom. IX, pag. 923.
  10. Sobre as differentes theorias relativas á fórma da terra veja-se o Essai sur l’histoire de la cosmographie, etc., tom. I, pag. 14, 223, 410, tom. II, pag. XV, XVII, 32, 252, 258, 10, LIX a LXI, 18, 26, 35, 94, 107, 215, etc., etc., tom. III, pag. 81, 102, 212, 223, 460, 499, etc.
  11. Santo Agostinho, S. João Chrysostomo, Lactancio, preconisaram a theoria da terra quadrada declarando-a conforme com o Evangelho, os mappas medievaes como o de Cosmas Indicopleustas do seculo VI, Gervais de Tilbury do seculo XIII, Nicolau d’Oresme do seculo XIV, Guilherme Fillastre do seculo XV. Umas vezes inscreviam-n’a no circulo formado pelos mares, outras vezes pelo contrario, a terra em si é redonda, mas a figura que está inscripta é quadrada.