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Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo/IV

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IV

A religião e a lenda


Se eram estas as idéas scientificas predominantes no principio do seculo XV, é importante saber-se se a religião as acceitava. Era tão poderoso o dogma nos espiritos medievaes que a condemnação de uns certos principios pela auctoridade ecclesiastica bastava para que a grande maioria os suppozesse completamente falsos. Espiritos independentes como os tem havido sempre protestavam contra a condemnação da sciencia pela fé; mas protestavam timidamente, e nós veremos que nos pontos mais capitaes a fé estava completamente de accordo com a sciencia, de fórma que uma e outra fechavam deante das tentativas dos navegadores o mar mysterioso, que a audacia portugueza conseguiu devassar. O principio assente era a impossibilidade de se franquear a zona torrida, mas poucos homens de sciencia punham em duvida que para além da zona torrida existisse outra zona temperada semelhante á do norte, e onde fosse possivel a vida da raça humana. Contra este ponto é que o dogma protestava.

Era inultrapassavel a zona torrida, não a tinham podido franquear os discipulos de Christo, portanto a palavra divina de redempção promettida a todos os que tivessem fé não podia chegar a esses povos que Deus esquecera, o que era completamente absurdo.[1]Se a humanidade toda descendia de Adão, como é que viera ao mundo essa raça humana? Tivera outro Adão como alguns sustentaram que tinha outro sol e outras estrellas?[2] Tudo isso era incompativel com a verdade suprema expressa na Biblia. E demais, se Deus dividira a terra depois do diluvio entre os tres filhos de Noé, se déra a Sem a Asia, a Japhet a Europa, e a Cham a Africa, qual fôra o desconhecido filho de Noé que recebera da Providencia a terra antichthona?[3] Encontrára-se em parte uma solução para essa dificuldade. Reconhecia-se a existencia da terra antichthona, mas suppunha-se que fôra a habitação da raça humana antes do diluvio. Alli ficava o Paraizo, e alli vagueando em torno da deliciosa habitação para sempre defeza vivera a humanidade criminosa os seus primeiros annos. Na arca de Noé salvara-se uma fraca reliquia d’essa gente condemnada. A arca boiara sobre as aguas e viera poisar emfim no monte Ararat. Nunca mais o homem tornaria a ver a sua antiga patria[4].

Assim Cosmas suppunha um mar immenso coberto de trevas, porque o sol só illuminava a terra, e formando quatro golphos, o Mediterraneo, o mar Vermelho, o golpho Persico e o mar Caspio; para além d’esse immenso mar a terra antichthona, e n’ella o Paraizo[5].

Outros, porém, não se podiam resignar a estar para sempre separados do Paraizo, e collocavam-n’o no extremo Oriente, no sitio onde, ao que diziam, principia o mundo. Esses baseavam-se na phrase do Genesis, que diz que «Deus plantou no Oriente um jardim delicioso». Para além da India, dizia Santo Avito, fica o Paraizo, cercado por barreiras que o homem não pode transpôr. É a theoria adoptada por S. Basilio, Psellus, Philostorgo, Isidoro de Sevilha, Bedo o Veneravel, geographo de Ravenna, Raban Mauro, Hugo de Saint-Victor, Jacques de Vitry, Honoré d’Autun, Gervais, Vicente de Beauvais, Joinville, Jourdain de Sévérac, Omons, que ainda suppunha que lá estava o anjo da espada chammejante, Ranulpho Hydgen, Dati, Bartholomeu Anglicus, Brunetto Latini, Dante, etc. Uns suppunham-n’o erguido n’uma alta montanha, outros n’uma ilha. E em torno d’esta idéa dogmatica ferviam as lendas.

Do Paraizo, dizia-se, saíam quatro grandes rios: o Nilo, o Ganges, o Tigre e o Euphrates. Era necessario, porém, explicar-se como é que estes rios appareciam tão longe da sua celeste origem, e sobretudo como é que o Nilo apparecia na Africa, tendo nascido na Asia. A explicação era a da corrente subterranea, e submarina tambem com relação ao Nilo, quando a supposição de um mar mediterraneo, que trazia comsigo a união da Asia com a Africa, não tornava dispensavel esta conjectura[6].

Esta opinião religiosa perdurou largo tempo no espirito dos homens ainda depois das grandes descobertas. Colombo, cuja alma enthusiastica se deixava invadir facilmente pelas seducções do mysticismo, e que tinha a fé ardente que foi um dos principaes elementos do seu triumpho, nutria a secreta esperança de chegar a esse Paraizo cubiçado, como contava encontrar n’esse Cathay maravilhoso os capitaes indispensaveis para a reconquista do sepulchro de Christo. Era logica a sua esperança. Se elle, partindo do Occidente, esperava chegar ao extremo Oriente, se no extremo Oriente estava o jardim de delicias em que Deus collocara os nossos primeiros paes, como podia duvidar de que o encontraria? Quando na sua terceira viagem chegou á bocca do Orenoque imaginou ter finalmente chegado ao Paraizo terrestre, não pela formosura das paizagens e pela abundancia da vegetação, mas porque, vendo a torrente das aguas do grande rio, suppoz que era um dos que borbulhavam da elevada montanha do Paraizo terrestre[7]. Christovão Colombo não admittia absolutamente a esphericidade da terra. Como varios outros geographos da edade média, que lhe tinham dado uns a fórma ovoide, outros a fórma de um cone ou de um pião[8], Christovão Colombo suppunha que ella teria a fórma de uma pera, e que junto do pé é que estava exactamente o Paraizo[9].

Tambem a esphericidade da terra era absolutamente contradictada pelos Santos Padres, que lhe davam a fórma de um quadrado ou de um parallelogrammo, fórma emfim que se assemelhasse á do Tabernaculo de Moysés. Desdenhando a idéa scientifica oriunda dos Gregos, e sustentada pelos Arabes, vindo talvez para uns e para outros dos orientaes, de que o centro do mundo era Aryn, d’onde se principiavam a contar as latitudes e longitudes, que ficava exactamente a 90° de cada um dos pontos cardeaes, ponto geographico que foi muitas vezes representado pelos cartographos como uma cidade maravilhosa, com um castello, em que habitava um mysterioso soberano, os Padres da Egreja reclamavam para Jerusalem a honra de ser ella o centro da terra, ou pelo menos o centro da terra habitada, quando se imaginava que o resto do mundo estava coberto pelas aguas desde o diluvio.

Finalmente para apresentarmos no seu conjuncto as idéas geographicas affirmadas dogmaticamente pela religião, fallaremos ainda, posto que não interesse a questão dos descobrimentos maritimos, na existencia para o norte das terras de Gog e de Magog. Eram os paizes ao norte da Asia, n’essa região desconhecida em que tambem pullulavam as fabulas, porque era a que se approximava das zonas glaciaes inhabitaveis. Ahi, dizia-se, habitavam os filhos de Caim[10], povos que tinham escapado, ao que parece, do diluvio, não por traz da barreira insuperavel da zona torrida, mas encostando-se ás gelidas barreiras dos polos. Irrompiam ás vezes em incursões ferozes, até que Alexandre o Magno, na sua grande expedição, que ficou legendaria, levantou a grande muralha que poz termo ás suas arremettidas[11]. Disse-se depois que aquellas dez tribus de Israel, que não voltaram do captiveiro da Babylonia, n’essa região mysteriosa ficaram internadas, como depois se disse, quando se descobriu a America e alli se encontrou uma raça de homens desconhecida, que eram ainda as dez tribus de Israel que se tinham perdido n’essas regiões que o Atlantico por tanto tempo escondera detraz da cortina das suas vagas[12].

Assim a fé religiosa, se contradictou n’alguns pontos importantissimos as affirmações scientificas, cerrou ainda mais as portas do mare clausum. O homem não podia chegar á zona torrida, era esse o ponto capital, que a um tempo sustentavam os homens da sciencia e os homens da orthodoxia. Assim que d’ella se approximavam o mar começava a escandecer-se, a terra inflammava-se, montes ardentes reflectiam as suas chammas nas aguas, e monstros extranhos que o calor fazia brotar, plantas extraordinarias que só podiam florescer n’essa monstruosa estufa, começavam a apparecer n’essas terras extranhas. Assim, para o norte, apenas se chegava ás regiões onde soprava um vento glacial, outros monstros appareciam, e os povos ferocissimos de Gog e Magog só esperavam que um audacioso rompesse a muralha de Alexandre que os refreiava para cairem de novo sobre o mundo, entregue assim nas garras de Satanaz.

No centro da terra habitada, que tinha a fórma quadrilateral, erguia-se Jerusalem; no extremo Oriente erguia-se o Paraizo defezo aos homens, e d’onde saíam os grandes rios do Oriente, trazendo ainda nas suas aguas o nateiro fecundante que ia dar como que uns reflexos da vegetação paradisiaca ás terras que atravessava.

Em torno do dogma como em torno da sciencia nasciam então as lendas. Deante do dogma inclinavam-se todos, deante da sciencia inclinavam-se os illustrados, deante da lenda refugiam os ignorantes, e uns e outros paravam deante d’esse mar que tantos mysterios encerrava.

Classificamos propriamente como legendarias as supposições que não tinham a minima base scientifica ou que não repousavam no dogma. Assim a terra velada de Theopompo não era senão a terra incognita de Ptolomeu; mas, suppondo o auctor grego que os homens que a habitavam eram de uma estatura duas vezes maior que a dos do mundo conhecido, perdia-se completamente nas regiões da phantasia, porque não havia, como para a humanidade monstruosa das regiões tropicaes, as razões do clima. Percebe-se, por exemplo, que a necessidade continuada de se resguardarem contra os ardores de um sol terrivel fosse, atravez de gerações successivas, desenvolvendo cada vez mais os orgãos com que o homem se podia proteger, mas n’esse clima perfeitamente semelhante ao nosso nenhum motivo havia para que se suppozesse que duplicava a estatura humana. E comtudo essa lenda actuava fortemente no espirito dos navegadores, e assim se explica a formação da lenda dos Patagonios.

Legendarias eram tambem as ilhas do Oiro e da Prata, que apparecem nos mappas da edade média e que vão fugindo para regiões mais distantes á medida que vae sendo conhecido o mundo oriental, como succedia tambem ás Hesperides, antigas ilhas de fabulosa riqueza, cujo pomar de pomos de oiro opulentos era guardado por um dragão, como tambem na edade média as montanhas que encerravam thesouros preciosissimos eram guardadas por gryphos e toda a especie de fabulosos animaes. É sempre em ilhas situadas nos mares desconhecidos que se colloca ou a região das riquezas ou a região da bemaventurança. As ilhas Afortunadas ou as ilhas das Hesperides eram para os antigos a patria de todos os sonhos da felicidade suprema. Era nas regiões do Norte, onde parecia que devia reinar comtudo a eterna desolação, que elles collocavam tambem a ideal ventura, phantasiando esse povo dos Hyperboreos eternamente feliz. Passou para a edade média essa tradição, e nos mappas medievaes se vêem para além do mundo conhecido as ilhas onde habitam os Hyperboreos. Nos mares orientaes collocavam-se, como dissemos, as ilhas do Oiro e da Prata, as ilhas dos Homens e das Mulheres, que eram o producto de uma tradição arabe, a ilha do Sol de Pomponio Mela, que não fazia senão dar uma nova fórma ás preoccupações da zona torrida. Quem abordasse á ilha do Sol era immediatamente suffocado pelo ar em braza que alli se respirava[13]. Finalmente, nos mappas da edade média já mais proximos da epocha dos descobrimentos apparece semeado de innumeras ilhas o mar oriental: sete mil dizem as legendas de uns, quatorze mil as de outros. Esse pensamento foi suggerido pelo conhecimento das viagens de Marco Polo e pelas indicações que o viajante veneziano dá ácerca das Maldivas, que se suppozeram existentes no mar oriental. É bem provavel, e o que é certo é que o pensamento da existencia de innumeras ilhas no oriente da India actuou nos sabios do seculo XV, e foi uma das esperanças de Christovão Colombo e um dos pontos de apoio de Toscanelli para a sua theoria da possibilidade da viagem que Colombo emprehendeu, porque, dizia elle, ainda que o continente asiatico estivesse mais longe do que se suppunha, sempre se encontrariam no caminho ilhas que servissem de porto de escala e de arribação[14].

Ah! essas ilhas conjecturaes da edade média como serviram aos historiadores superficiaes para procurar attenuar a gloria dos Portuguezes e a gloria de Colombo! Brotavam das ondas mysteriosas como brota a espuma da vaga que se desfaz nos rochedos. Por aquelle Oceano tenebroso que se estendia para o Occidente, nas ondas do ignoto mar indico, por muito tempo considerado, e ainda no tempo dos primeiros descobrimentos portuguezes, como um mar mediterraneo, pelo mar ignorado do Norte semeava a imaginação dos cartographos quantas ilhas ideara a phantasia antiga, a phantasia dos troubadours ou dos trouvéres e a dos mysticos! Lá appareciam, como dissemos, as ilhas das fabulosas riquezas, a Chrysé, a Argyra, Ophir, que talvez bem se possa classificar entre ellas; as ilhas da tradição homerica, a de Calypso, a de Diomedes, a outra em que se vê ás horas do sol poente a sombra gigante e pensativa de Achilles, as ilhas da tradição celtica, essas ilhas que povoavam a imaginação d’estes marinheiros do occidente, que, erguidos ao pôr do sol nos rochedos da costa, sonhavam em cada miragem do Oceano uma ilha fabulosa, que, batidos pela tempestade, quando andavam á pesca, julgavam escutar no surdo rugido das vagas os lamentos das almas penadas nas ilhas milagrosas, e tudo se contava ao serão quando bramia o vento cá fóra e o mar quebrava com doloridas queixas ou com furioso estrepito nas fragas desnudadas. Tudo ia tambem enriquecer as lendas dos claustros para ornar com esses arrebiques de maravilhoso a existencia piedosa de um santo missionario. Foi assim que S. Brandão teve a sua ilha, onde cantavam as aves do Paraizo, e onde se respirava tão celeste e perduravel perfume que n’elle ficaram para sempre impregnadas as vestes do santo viajante. Era na Irlanda sobretudo que essas lendas brotavam, era ahi que se formavam ao lado da legenda de S. Brandão as de S. Patricio, e de tantos outros navegadores celticos que iam atravez dos mares da phantasia procurar ignotas ilhas.

Já Brekan, o filho do rei Niel, desapparecera nas ondas do mar com cincoenta navios, e só o cadaver do seu cão reapparecerá na praia, já tres filhos de Corra tinham com os seus quatorze companheiros, entre os quaes iam um bispo e um bardo, abordado ás ilhas das Almas, encontrando depois de quarenta dias e quarenta noites a ilha do eterno choro, e a ilha em que fundidores infieis forjavam e fundiam com as carnes rasgadas pelas aguias negras, e outra em que um moleiro moía eternamente farelo por ter roubado os seus freguezes, e outra em que um alquilador, que roubara o cavallo a seu irmão, passava por deante dos olhos assombrados dos viajantes no galope infernal de um cavallo de fogo.

Outros, os famosos navegadores de Iona, tinham chegado á ilha dos Passaros, onde volteiam aves de aureas e de purpureas pennas, regidas por um rei de cabeça de oiro e de azas de prata, que entoam cantos de uma celestial melodia, e a outra onde choram com saudades da patria as doces Irlandezas exiladas mysteriosamente do mundo dos vivos.

Depois ainda é o bardo Myrdhinn que vae com mais nove bardos procurar a ilha Verde, que nunca foi submergida pelas vagas, a ilha dos pomos de oiro, onde no meio de uma aurora perpetua dança um côro eterno de bellos rapazes e de formosas raparigas.

Tudo se condensa, emfim, na lenda de S. Brandão. Esse encontrara a ilha onde os anjos que acompanharam Lucifer, mas não foram inteiramente seus cumplices, cantam os hymnos de esperança, e o aspero rochedo batido pelas vagas, onde Judas é consumido pelo eterno remorso; e emfim a terra promettida aos eleitos, a terra dos bemaventurados.

S. Patricio tambem percorre as solidões do Atlantico. Esse vae, segundo a lenda, quando a quaresma começa, para o seu purgatorio, n’uma ilha de que ninguem se pode approximar, onde ha uma caverna que os maus espiritos habitam, e onde se abrem duas estradas subterraneas, que vão ter uma ao Inferno, outra ao Paraizo. Esta ilha mysteriosa do Purgatorio de S. Patricio, como a ilha abençoada de S. Brandão, é um dos sonhos mais persistentes da edade média, e uma e outra lá apparecem nos mappas medievaes, nos sitios mais diversos, ás vezes applicando-se a ilhas verdadeiras, como acontece com o Purgatorio de S. Patricio, que alguns cartographos collocam na Islandia.

A imaginação celtica é a mais fecunda n’esta creação de terras phantasticas, e não podia deixar de ser assim, não só porque os povos d’essa raça são essencialmente imaginativos e sonhadores, como tambem porque n’essa Irlanda, collocada na extremidade occidental da Europa, a tão pouca distancia da America, aonde tantas vezes deviam chegar, como chegavam aos nossos Açores e á nossa Madeira, plantas e cadaveres de homens de desconhecido aspecto, não podia deixar de pullular a cada instante na alma do povo o pensamento da existencia de ilhas mysteriosas para esse lado, como muitas vezes tambem, quando um pescador mais audacioso se aventurava ao mar alto, quando o vento de leste lhe enfunava as velas, e o mar lhe parecia cantar no seu doce murmurio as suas maravilhosas lendas, elle seguiria caminho do Occidente, durante dias e dias, até que a fome o salteasse, ou até que o continuado panorama das vagas a seguirem-se ás vagas, sem fim, sem termo, fechando o horizonte, os desanimasse afinal[15]. Mas tambem na peninsula hispanica lendas semelhantes se formavam e pelas mesmas causas. Tambem aqui em Portugal sobretudo e no Algarve principalmente os pescadores, ao largarem a costa, sentiriam a tentação de penetrar nos mysterios do Oceano, e aqui tambem á volta, em noites de luar nas esfolhadas, ou no inverno ao lado da chaminé, fallariam, como se as tivessem visto, em ilhas extranhas, na das Sete Cidades, por exemplo, onde se tinham refugiado, quando os Mouros vieram á peninsula, sete bispos christãos com o povo das suas dioceses, proscriptos agora e encantados como as meigas irlandezas exiladas dos navegadores de Iona. E todas estas ilhas phantasticas, Antilia e Sete Cidades, ilha de S. Brandão e Purgatorio de S. Patricio, iam juntar-se ás ilhas conjecturaes dos sabios e ás ilhas tradicionaes da mythologia antiga para formarem esses archipelagos do sonho e da lenda que se desfizeram em fumo quando das aguas surgiram, envoltas no seu manto de verdura, ou na sua armadura de rochedos vulcanicos, palpitantes ainda com o fogo que lhes lavrava nas entranhas, ou carregadas com a immensa e luxuriante cabelleira das intactas florestas, as ilhas reaes e verdadeiras.

Esse sonho das ilhas phantasticas podia não ser senão um estimulo para cavalleiros denodados que não temiam os encantamentos, logo que levavam comsigo as espadas bentas e a cruz do Salvador. Com o coração a bater-lhes um pouco, pallidos de supersticioso terror, mas incitados pelas tentações das sobre-naturaes aventuras, arrojar-se-hiam tanto os celtas da Irlanda como os celtas de Portugal aos mares mysteriosos em demanda das ilhas paradisiacas; outros encontraram tambem no caminho as ilhas infernaes, mas a lenda do mar Tenebroso essa é que deveras regelava o sangue nas veias do mais audacioso. Vinha dos antigos, e mais tambem dos Arabes. Como é que os poetas antigos, ao passo que devaneavam como Seneca no côro da Medéa, que para além do Oceano haveria terra incognita, suppunham que n’esses mares longinquos se perdêra a luz do sol e um manto espesso de trevas se desenrolava sobre as vagas? Como é que o arabe Edrisi, que suppunha que estavam no Atlantico as ilhas da eterna felicidade, suppunha tambem que era o Atlantico o mar tenebroso, onde os navios esbarravam uns nos outros e se despedaçavam em ignorados rochedos? É porque suppunham que, depois do mar Tenebroso, vinha o mar luminoso da India, porque imaginavam exactamente que o mar da India communicava com o mar Tenebroso? Tambem a sciencia não dava fóros de authenticidade ao mar Tenebroso como os dava ás terras incendiadas e ao mar em fogo da zona torrida. Era um dos fundamentos essenciaes da lenda do immenso pélago o ligar-se ainda com as estranhas idéas astronomicas dos que suppunham que para além dos mares tinha o globo um cinto de montanhas, e que detraz d’essas montanhas é que o sol se escondia durante a noite, pertencia a essa classe de phantasias a que pertencem os montes Ripheus e outras visões da desvairada imaginação dos sonhadores da geographia.

Mas ainda os Arabes trouxeram do Oriente um novo elemento legendario. O Oriente é a patria das estatuas encantadas, dos monstros de metal dotados de uma vida phantastica, e a esse mar, por tantas razões defezo, punham como sentinellas immoveis e terriveis as estatuas mysteriosas, como os leões de oiro que nos contos arabes defendem os palacios enfeitiçados. Mas ainda a tudo accrescia uma tradição que se baseava na verdade, e que não era menos desanimadora para os que tentassem romper o mysterio. Era a do mar de Sargaço, que não era desconhecido dos antigos, esse mar que os marinheiros de Colombo encontraram já muito para o occidente, e em que se julgava que as plantas enredadas enleiavam por tal fórma os navios que lhes paralysavam completamente os movimentos.

Essas idéas falsas, derivadas da sciencia mal comprehendida, e que povoavam os espiritos dos marinheiros d’essa epocha, são as mesmas que ainda hoje habitam no cerebro do povo ignorante, apesar da immensa propagação de dados scientificos verdadeiros, obtidos pela experiencia de todos os dias. No seu delicioso livro Sull’Occeano, o grande escriptor italiano Edmundo de Amicis conta-nos o que ouviu a bordo de um paquete que singrava para a America aos passageiros de terceira classe, emigrantes que iam trabalhar no Rio da Prata. Parece-nos estarmos a ouvir as palestras que se travariam entre os marinheiros do seculo XV a bordo das suas esguias caravellas. Apesar dos factos demonstrarem o contrario, ainda suppunham que, ao atravessarem a zona torrida, teriam de atravessar um mar incendiado. Suppunham que veriam claramente a curvatura da terra e o navio descer por ella como um bichinho em volta da superficie de uma laranja. Todos esses terrores pueris dos passageiros que os marinheiros hoje desdenham com um riso sarcastico, eram os que salteiavam o espirito dos seus antepassados nos seculos da edade média, eram esses terrores os que faziam recuar deante dos cabos africanos e deante das solidões do Atlantico os marinheiros que precederam Gil Eanes e que precederam Christovão Colombo, eram ainda os que acompanhavam os descobridores em cada nova exploração, porque só a pouco e pouco é que a luz se foi fazendo, só a pouco e pouco é que se foram desfazendo as idéas falsas da antiguidade substituidas pelos factos verdadeiros, e era necessario que fossem de uma rija tempera os marinheiros que recalcavam no fundo d’alma esses terrores, que fossem denodados espiritos os d’esses commandantes que assim partiam a arcar não só com os pavores da superstição, mas com as affirmações da sciencia e com as determinações da fé, e que fosse emfim um genio verdadeiramente transcendente o d’esse homem quasi divino, que teve a intuição sublime da verdade e a inspiração de um genio creador, que sonhou um mundo aberto inteiramente á luz, um mar sem trévas, a humanidade circulando sem peias em volta da terra seu dominio, e que logrou escrever na face das ondas com a quilha das suas caravelas essa epopéa maravilhosa que elle concebeu em Sagres e que foi a grande epopéa do Renascimento.


Notas

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  1. «Et dien (disent) que illec sont antipodes, c’est-à-dire, gens qui ont leurs pieds contre nos et pour ce qu’ils sont á l’opposite partie de la terre, aussi comme s’ils fussent subz nous et nous soubz eulx. Ceste opinion n’est pas á tenir, et n’est pas bien concordable á notre foy. Car la loy de Jésus Christ a esté preschié par toute la terre habitable; et selon ceste opinion, telles gens n’en auraient oncques ouij parler, ne pourroient estre subgés à l’église de Rome. Pour ce, reprenne saint Augustin ceste erreur ou ceste opinion, lib. XVI «De Civitate Dei» Nicolau d’Oresme, cosmographo francez do seculo XIV, preceptor do rei Carlos V, le Sage. — Manuscripto cosmographico existente na Bibliotheca Nacional de Paris, com o numero 7487, apud. Visconde de Santarem, Essai sur l’histoire de la cosmographie, etc., tom. I, p. 142.
  2. Quoniam nullo modo scriptura ista mentitur, quæ narratis præteritis facit fidem eo quod ejus predicta complentur; nimisque absurdum est, ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem, Oceani immensitate trajecta navigure ac pervenire potuisse, ut etiam illic ex uno primo homine genus institueretur humanum. Lactancio Divinarum institutionum, liv. III, cap. IX.
  3. Qua propter inter illos tunc hominum populos qui per septuaginta duos gentes, et totidem linguas colliguntur, fuisse divisi, quæramus, si possimus invenire, illam in terris peregrinantem civitatem Dei, quæ ad diluvium arcamque perducta est, at que in filiis Noe per eorum benedictiones perseverare monstretur, maxime in maximo qui est appellatus Sem, quando quidem Japhet ita benedictus est, ut in ejusdem fratris sui domibus habitaret. — Ibid.
  4. Cosmas Indicopleustas, Topographia Christã.
  5. Ibid.
  6. Cosmas, Santo Isidoro de Sevilha, Anonymo de Ravenna, Raban Mauro, Honoré d’Autun, Hugo de Saint-Victor, Vicente de Beauvais, Brunetto Latini, Joinville. A noticia do famoso chronista de S. Luiz a respeito do Nilo, transcripta pelo visconde de Santarem no Essai, etc., tom. I, pag. 112, nota 3, não deixa de ser curiosa: «Ici il convient de parler du fleuve qui passe par le pais d’Egypte, et vient du Paradis Terrestre... Quant celui fleuve entre en Egypte il y a gens tous experts et accoustumez, comme vous diriez les pêcheurs des rivières de ce pays-cy qui au soir jettent leurs reyz au fleuve et es rivières; et au matin souvent y trouvent et prennent les espiceries qu’on veut en ces parties de par de ça (dans l’Europe) bien chierement et au pois, comme canelle, gingembre, rubarbe, girofle, lignum, aloes et plusieurs bonnes chouses. Et dit — on pais que ces chouses — lá viennent du Paradis terrestre et que le vent les abat des bonnes arbres, qui sont en Paradis terrestre.»
  7. «Para elle (Colombo) o Paraizo Terrestre correspondia ao castello de Kang — diz dos Persas, e devia achar-se n’um logar elevado e inaccessivel.» — Reinaud Géographie d’Aboulféda, tom. I, pag. 252. «A corrente do Orenoque é tão forte que Diogo de Lepe reconheceu por meio de um escalfador que só se abria no fundo das aguas, no mar defronte da foz de Orenoque, que, n’uma profundidade de oito braças e meia, só as duas primeiras braças do fundo eram de agua salgada, e as outras de agua doce». — Humboldt, Histoire de la géographie, etc., t. I, pag. 314.
  8. Lemos n’um manuscripto cosmographico datando d’essa epocha (seculo VII) «que a terra é da forma de um cone ou de um pião, de forma que a sua superficie vai, segundo esse systema, elevando-se do sul para o norte.» Visconde de Santarem, Essai sur l’histoire de la cosmographie, etc., tom. II.Int. pag. LX. A fórma ovoide era-lhe attribuida pelo philosopho grego Thalés, seguido por alguns geographos da edade média. Posidonius dava-lhe a fórma de uma funda, como Prisciano tambem.
  9. N’uma carta de 1498, publicada por Navarrete, tom. I, pag. 256, compara Colombo a terra com uma pera dividida ao meio, sendo uma parte redonda, e a outra terminada em cone. Esta carta vem tambem nas Select letters of Christopher Columbus, publicadas por Major, pag. 130. (Londres, 1847).
  10. Os geographos arabes consideravam Gog e Magog como filhos de Japhet, devemos accrescentar que era esta a doutrina mais seguida.
  11. É interessante o que diz ácerca d’estes povos o sur Vivien de Saint Martin nas suas Recherches sur les populations primitives et les plus anciennes traditions du Caucase, pag. 40 a 47. (Paris, 1847). M. de Sacy considera a muralha de Alexandre como sendo a noção vaga da muralha da China.
  12. Ha poucos annos ainda se publicou, em Hespanha, um livro do sr. Junquera Origen de los americanos, em que se sustenta essa doutrina. N’ella se baseia um dos romances, e dos menos bons, Oak openings do grande romancista americano Fennimore Cooper.
  13. Mela, III, c. VII. — Solino diz que a terra d’essa ilha está sempre vermelha. — Plinio colloca-a perto da Taprobana. — Hist. Nat. VI, 22.
  14. «Colloquei, diz Toscanelli na carta que escreveu a Colombo e referindo-se ao mappa que mandou ao rei de Portugal, defronte (das costas da Irlanda e da Africa) direito a oeste o principio das Indias com as ilhas e os logares a que poderia abordar.»
  15. Todas estas lendas irlandezas, em abreviada exposição, se podem ver no excellente livro de mr. de Villemarqué La Légende Celtique, especialmente na Introducção e na Lenda de S. Patricio.