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Osmîa/Acto I

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Osmîa
 
Acto I
 

Atrio com columnas, por entre as quaes ſe ve do lado direito o campo dos Romanos, e do eſquerdo os corredores, que conduzem a habitaçaõ das Turdetanas. No fundo ſe vê o boſque conſagrado ao Deos Endovelico com a ſua Ara em fórma de Anta.

 
Scena I.
 
Manlio com ſequito de Capitães Romanos.
 

Manl.ILLUSTRES companheiros, confiar-vos
Bem podeis do meu zelo. Naõ he facil
Que hum Manlio ſacrifique do ſeu cargo
As Leis ſevéras, nem ao proprio ſangue,
Do Pretor a amizade em mim naõ póde
Amortecer o amor, que á Patria devo.
Nem veio Caio Lelio á Luſitania
Para nella murchar, cortar d'hum golpe
As palmas glorioſas, que regáraó
De ſangue e de ſuor ſeus Aſcendentes.
A conſtancia, o valor, a ſuavidade
Seu caracter diſtinguem; fora injuſto
Suppôr delle huma acçao, que o desluſtraſſe.
Se Oſmîa com brandura tem tratado,
Se a deſtingue com honras, ſe pertende
Que á ſua parte fique na partilha,
Eſſa illuſtre mulher, honra dos Luzos;
Se procura adoçar-lhe o rude pezo
Do triſte cativeiro; nem por iſſo
Vos deveis aſſuſtar. Nunca a dureza
Foi propria dos Heroes.. Condemna Roma
Hum cruel proceder; em Galba o viſte.
Sem horrores, ſem ſangue, o Pretor tenta
Domar os Lidiadores Luſitanos
Por quem já tantas vezes declarada
Temos viſto a fortuna caprichóſa.
Hoje o feliz momento ſe apreſenta
De tanto conſeguir; ao meſmo paſſo,
Que já temos por couſa indubitavel
A noticia de Rindaco ſer morto.
Rindaco, eſſe Vetaõ ſoberbo e duro,
Do furor de Mavorte alma abrazada.
Taõ complicada, e ardua conjunctura
Naõ nos deixa temer que o Pretor renda
A's leis do infauſto amor o peito altivo.
Mas o rumor das guardas o annuncia;
Tudo quanto requer a Patria; tudo
Quanto vós deſejais, e eu proprio quero,
Proporei ao Pretor. He moderado
Lelio, bem o ſabeis, porém tem riſco
Irritallo ſem cauſa. Crede, amigos,
Que tudo indagarei ; e ſe encontraſſe
Nelle a vam intençaõ que the ſuppondes,
De levantar taõ alto huma cativa...
Mas naõ; naõ he poſſivel. Disfarçemos,
E eu ſignal vos farei para deixar-nos.

SCENA II.
 
Lelio com guardas, e os ditos. Os Capitães ſe retiraõ quando MANLIO os deſpede.

Lelio QUeſtor, tu - neſte ſitio acompanhado
De taõ nobres guerreiros! Que motivo
Aqui te conduzio? alcanço indicios
D'alguma inquietaçaõ inopinada
Que póde perturbar-vos, quando a gloria
As já ganhadas palmas vos enfeixa?

Manlio. A buſcar-te do campo aqui viemos.

Lelio. Explicai-vos porém fe o cafo pede
Que a votos fe decida, nao he proprio,
Amigos, o lugar. Aquellas Aras
Sao a Deos inimigo confagradas;
Sem culto agora as vemos, e eftes Póvos
D'imprecações nos cobrem de continuo.

Manlio. [1] Senhor, bem póde tudo decidir-fe
Aqui mefmo por ti,ſe me permites
sem rebuço fallar?

Lelio.O amigo falle,
E falle, como ſempre, com franqueza.
Ainda talvez dura o louco intento
De privar-me d'Oſmîa?

Manlio.E qual empenho
Tens tu de conſervar eſſa cativa
Contra o ſentir dos mais? Talvez intentas
Conceder-lhe, Pretor, a liberdade?

Lelio. E ſe o quizeſſe, ha Lei que mo prohiba?

Manlio. Naõ, amigo, as Leis nao to contraſtaõ
Mas ha couſas que as Leis naõ tem coartado,
Que ao praticar-ſe, julgaõ-ſe indecentes.

Lelio. E que indecencia involve dar por livre
Huma eſcrava que he minha ? naõ percebo.

Manlio. Eſſa eſcrava das mais he bem diſtinta.

Lelio. Eis-ahi a razao da minha eſcolha.
E cederia Lelio por liſonja
Ao Senado, que ferros lhe prepára
Eſſa altiva mulher, eſſa Heroîna
D'aſſombro e de reſpeito objecto fummo?
Seu nome a par dos Numes ſe levanta;
Nem fama ſe eſquece de contar-nos
As proezas da grande Turdetana.

Manlio. Ver em ferros Oſmîa he laſtimoſo
Eſpectaculo, amigo, porém Roma
Requer dos vencedores ſacrificios,
Que paga com triunfos.

Lelio. Que triunfos?
Chama-lhe horrores antes. Os clamores
Dos miſeros eſcravos, o rugido
Dos grilhoens, que de rojo os atormentaõ,
A triunfal harmonia deſtemperaõ.
Goze hum peito. ferino de taes honras,
A Lelio baſta havêllas merecido.

Manlio. Mas ou Rindaco he vivo, e a todo o cuſto
Salvalla quererá, ou eſſes Póvos
Se he morto a pediráo; nem eu preſumo
Que Legados por outro fim nos mandem.
Nao deixes eſcapar, Lelio, o momento
Em que a tua Pretura immortalizes.

Lelio. Manlio, tenho ordenado: nem recees
Que de leve ordenaſſe. A' Patria, ao Mundo
Da campanha ſou eu quem ſó reſpondo.
Aquelles que governa ſao mil vezes
Obrigados a couſas, que outros julgaõ
Contrarias á razao; e faõ comtudo
Conformes á mais rigida virtude.

Manlio. Naõ pertendo irritar-te. Os Deoſes queiraõ
Que as medidas nao érres; mas primeiro,
Que me affaſte de ti, ouve-me, e trata
De util fazer, amigo, eſta franqueza.
Suſpeitaõ já os Capitaens no campo,
Que tu amas Oſmîa, e que pertendes
Pizar a ſeu favor Leis e coſtumes:
Porém, Lelio, repara: ſe aſſim foſſe,
Manlio nao ſoffreria que baixezas
Seu amigo fizeſſe. O ſangue, a vida
Darei por te ſalvar d'huma ignominia.
Fiz quanto eſtava em mim por diſſuadillos
Do receio que vaõ me parecia ;
Mas agora vacillo: Reflexiona
Com tempo t'acautela e ſe a piedade
Teu coraçaõ ſoborna, vê que a gloria,
Com grito reforçado, por ti chama.
Deſperta, quebra os laços, e tu meſmo
De ti meſmo triunfa, ſe és Romano. [2]

SCENA III.
Lelio ſó.

Lelio. MAnlio, detem-te, eſcuta. . Naõ me attende.
A rigidez herdada lhe enfurece
O nobre coraçaõ... Ah! vam ſoberba.
Naõ zêlo virtuoſo o faz ſevéro...
Mas as Leis... e que Leis ? que eſtravagancias?
Nacional, Eſtrangeira, eſcrava, ou livre...
Que póde iſſo influir na Natureza?...
Oh! Ceos, e onde me leva a paxaõ crúa
Que eſta alma me devóra? Mil chiméras
Me manda o coraçaõ ao penſamento
Saõ delirios, ſaõ furias... Chara Oſmîa!...
E devo ſer eu meſmo quem te entregue
Aos barbaros caprichos do Senado ?
Naõ, naõ: naõ farei tal... E como ſabe
A trópa que te adoro?.. Já no campo
Talvez conſtou que o Turdetano traje
Pela Romana pompa tem trocado?...
Ou o ſaibaõ ou naõ: E quantas luzes
Deſta ſimples mudança alcançar poſſo?
Veremos ſe as Cohortes s'acoſtumaõ
A ver ſem ſoſſobrar-ſe huma cativa
Com os trajes ornar-ſe das matronas:
Nao he ligeiro o golpe, e fe o tolléraõ,
Que nao poſſo eſperar? O tempo muda.
Os Romanos ſao filhos das Sabinas...
E ſe Rindaco he morto, talvez facil
O reſto ficará... Oh! Ceos!... quem ſabe?..
Lucio vejo acolá, e já Eledia
Devêra apparecer-me: acompanhado
Moderar-me he preciſo, nao perceba
Com quanta impaciencia Eledia eſpero.

 
SCENA IV.
 
LELIO, e LUCIO, que vem da parte contraria ao campo.
 

Lelio. LUcio, tardavas já.

Lucio. Senhor, perdôa.
Virá Eledia: por ella me detive.
Saõ raros, inauditos os coſtumes
Deſtes barbaros Póvos!

Lelio. Quaes tu julgas,
Tao barbaros naõ ſaõ os Turdetanos.
As Sciencias eſtimaõ; Leis reſpeitaõ
De longa antiguidade deduzidas.
A cultura, o Commercio os enriquece;
Saõ ſobrios, ſaõ guerreiros adéſtrados
Nos jógos, nos combates: quantas vezes
Roma, com proprio damno, o tem provado?
Sós eſtamos aqui: poſſo affirmar-te
Que nelles mil virtudes reconheço.
Inda as meſmas mulheres, das Romanas
Bem podem com razao ſer invejadas.

Lucio. Invejadas! Senhor, zombando o dizes.

Lelio. Naõ zombo, amigo; as Luſitanas vejo
Em valor, em deſtreza, em ſoffrimento
Iguaes ao noſſo ſexo, ſem que percaõ
As delicadas graças do ſemblante.
Pelo contrario, as noſſas de prazeres
E de fauſto ſómente s'alimentaõ.
Quanto naõ tem a fama já contado
Da valeroſa Oſmîa? ſe ſoubeſſes...

Lucio.Perdoa-me, Pretor, ſe t' interrompo.
Quando fallas d'Oſmîa a quem te eſcuta,[3]
Parece que imaginas achar nella
Huma nova Bellona.

Lelio. E ſem defculpa
Eſſa grande illuſaõ, Lucio, naõ fora.
Diſputou no combate, Oſmîa, o paſſo
Aos mais animoſos dos Romanos.
Quantos victimas foraõ de ſeu braço!
Na força do conflicto mais s'anima;
E quando os noſſos, de tropel, a cercaõ,
Nao volta contra ſi o meſmo ferro
Que no ſangue Romano ſe enſopára?
Eu felizmente o golpe lhe deſvio.
Relucta, mas debalde: imperioſa
Obſerva-me hum momento, e rende a eſpada.
Cêdo ao deſtino (diſſe) porém treme.
Vivo, e Rindaco vive...

Lucio. Sim; mas céde [4]
O ferro, a Heroína, e com ſeus Póvos
Cativa agora a tens.

Lelio. Tu naõ ignoras
Que a victoria nem ſempre favorece
A quem trabalha mais por alcançalla;
E ſe hoje nos brindou, mais á ſilada
Lucio, a devemos, do que á valentia.

Lucio. Queres talvez dizer que menos fortes,
Que eſſes barbaros, ſomos os Romanos?
Tanto louvor nao ſei que me annuncia!

Lelio. Outra couſa naõ póde annunciar-te
Mais que a juſtiça que à virtude cumpre.
Socega-te; [5] deſcança. Sou Romano.
Mas Eledia que faz? porque naõ chega?
Por ella te mandei. Oſmîa a pede:
Ouvilla quero eu meſmo, e examinalla.

Lucio. Eledia, ao que diz Probo, he perſonagem
Entre os ſeus com juſtiça reſpeitada.
Mas [6] he ella que vem: Senhor, repara
Com que eſtranha altivez os paſſos move!

 
SCENA V.
 
LELIO, LUCIO, e ELEDIA com cadêas, conduzida por hum guarda.
 

Eledia. O Pretor dos Romanos naõ recêa [7]
Envilecer-ſe, pondo n'uma eſcrava
Os olhos vencedores?

Lucio. Que ſoberba!

Lelio. [8] O Pretor dos Romanos ſe pratica
O direito da Guerra: ſe apriziona
Eſtes barbaros Póvos, que rebeldes
Saõ ás Aguias Latinas, nem por iſſo
No coraçaõ ſuffoca os movimentos
Da ſuave clemencia.

Eledia. Sim: a prova,
Infelices eſcravas! nós a damos,
Se hum rigido coſtume des d'o berço
Nos-naõ tivera affeitas ao trabalho,
Houveramos cedido ao duro pezo
Da tua tirannia. Amontoadas
Qual encerrada grei, alli nos deixas
Gaſtar os triſtes dias ocióſos.
Nem ao menos conſentes que o conforte
Alente a triſte Eſpoſa. As mãis ignoraõ
S'inda os filhos reſpirao: qualquer ſoffre
Sobre o mal que ſupporta o dano extremo
Que nos outros reccia. Nada ignoras:
Mas o Heróe dos Romanos naõ ſuffoca
A clemencia no peito. Deos! e ſoffres [9]
Que eſtes Póvos affim ſejaõ tratados!
Eſtes Póvos que ornáraõ tantas vezes
De feſtoens eſſas Aras, onde hum tempo
Das victimas fumava com frequencia
O ſangue a teus furores conſagrado !
Sim (cruel) [10] Eſtes Póvos hum Deos honraõ..
Hum Deos que vingar ſabe. Inda nos reſta
Em Rindaco hum ſocorro... tremer deves.

Lucio.Hum ferino furor tem no ſemblante.

Lelio. Eu te perdo-o, Eledia, taes inſultos:
A tua dôr merece, que os deſculpe.
E já que de cruel me criminaſte,
Aqui meſmo vou dar-te hum teſtemunho
D'inflexiveis naõ ſermos os Romanos,
Eſſas cadeas, Lucio, ſe dezátem [11]
E a teu cargo commeto deſd'agora
Vigiar no bom trato das cativas.
Franco te fica, Eledia, eſte recinto ;
Quanto poſſo te cedo, e tu prudente
Qual a dadiva ſeja conſidéra.

Eledia. [12] Que dadiva, Pretor! pois imaginas
Que Eledia desfrutar quer melhor ſorte,
Que o reſto das afflictas Turdetanas?
Quando em ferros Oſmîa conſidero
Quando a minha Naçaõ bramir eſcuto
Vagarei neſtes Atrios ocióſa
Qual folha errante qu'inda o vento agita ?
Naõ imagines tal: inda algum dia
Tu livre me verás... mas á virtude
D'outra maõ deverei a liberdade,
E Rindaco ſerá...

Lucio. [13] Que! naõ reparas
Como acumula inſulto ſobre inſulto ?
A' prizao que apetece a reſtitue [14]
Ao bem que deſeſtima dará preço.

Eledia. [15] Confunde-te (malvado) aos ferros torno.

Lelio. Eledia generoſa, [16] os ferros larga:
Eu debalde naõ fallo e tu [17] reſpeita
A quem o meu favor diſtinguir ſabe.
Vai Lucio, e reverente infórma Oſmîa De Eledia ter chegado.

Eledia. Ceos! que eſcuto?

Lelio. Ella decidirá ſe a quer comſigo. [18]

 
SCENA VI.
 
ELEDIA, e o PRETOR.

Eledia. COmo póde caber tanta virtude
No peito de hum Romano!

Lelio. Eſcuta Eledia,
Virá Oſmîa em breve e quando a vires
A meu favor entaõ fallará tudo.
Dize-lhe que foi Rindaco buſcado;
Mas debalde atéqui: Nenhum veſtigio
Se pôde deſcubrir. Aſſaz me afflige
Da ſua acerba dôr a imagem crúa.
Tu procura adoçar-lha, e de mim fia
O cuidar de tal modo em ſocegalla.
Que naõ poſſa da ſorte lamentar-ſe. [19]

 
SCENA VII.
 
ELEDIA ſó.
 

Eledia. Tudo o que vejo, tudo quanto eſcuto
Ora abſorta me deixa, ora abiſmada!.
E que eſtranha incerteza!... Oh! Ceos! noticias
Nem veſtigios de Rindacoſe encontraõ!
Endovelico Deos, e por quaes crimes
De teu braço o poder nos deſampara ?
Faltàmos nós jámais em tributar-te
As victimas, os cultos reſpeitoſos ?
Se do impavido Rindaco privados
Por teu furor nos vemos, ah! piedoſo.
Noſſa extrema ruina ao longe affaſta!
Oſmîa nos defende; o ſangue illuſtre
De noſſos Capitaens no ſeu conſerva!
Oh! como em flor (Eſpoſa laſtimada!)
Noſſa longa eſperança o fado arranca!
Como de ti veremos naſcer filhos,
Que a gloria nos reſtaurem como eu meſma
Te darei à noticia? Eu! que em meus braços
Teus dias recolhi, quando implacavel
A morte te privou da mãi querida.
Eu que ſevéra á viſta de meus olhos
Teus brincos infantís fiz tantas vezes
Que enſaios foſſem do futuro esforço...
Se conſultar os Deoſes permettido
Hoje me foſſe ao menos!... mas cativa
Longe de mim s'agita o furor ſacro...
Sinto rumor... Oh! Ceos! ao peito as forças
Recolher procuremos: Nãõ me veja
No ſemblante ſignaes do mal acérbo. [20]

 
SCENA VIII.
 
ELEDIA, e LUCIO conduzindo OSMÎA, que vem em traje Romano. [21]
 

Oſmîa. [22] QUe differença ! Oh! Ceos ! e que improviſo
Rubor me cobre o roſto... Eledia amiga...

Eledia. Suſpirada Princeza... [23] mas que vejo?...
Engano-me talvez?

Oſmîa. [24] Naõ; naõ te enganas,
A tua trifte Oſmîa tens preſente.

Eledia. E nao ha huma cova, hum novo abiſmo
Onde Eledia s'eſconda? Agora vejo
Porque os Deoſes aſſim nos deſemparaõ.

Oſmîa. Cara Eledia, primeiro que te indignes,
De mim tem compaixaõ. Ah! do conforte
Se algumas novas trazes, deſejalias
Nao me faças mais tempo. Taõ horrivel,
Taõ digna de deſprezo, como julgas,
Oſmîa nao ſerá; ſe tudo ouvires.

Eledia. Quaes novas? qual conforte?... que direito,
Romana, podes ter para inquirir-me?
A teus prazeres torna: em paz me deixa.

Oſmîa. Eu Romana!... Eu!... prazeres!... rodeada
D'acerbas amarguras! Ah! piedade
Tem de minha afflicçaõ. Fazer inutil
Naõ queiras o ſocorro que em ti buſco.

Eledia. Pois tu és quem me buſcas ?

Oſmîa. Eu amiga;
De mil, e mil anguſtias opprimida, <brAo Romano roguei que te fizeſſe
Para aqui conduzir. O teu conſelho
A tua virtuoſa auſteridade,
E mil outros motivos, que diſſera,
Se o furor que em ti vejo naõ truncaſſe
Na garganta as palavras, me fizeraõ
Humilhar a pedir. Eu!.. que mandava,
Eu!.. que fui atégora obedecida.

Eledia. Quem ſe humilha a pedir franquea o paſſo
A que ſempre a ſoberba Leis lhe imponha.

Oſmîa. Mas ſe virtude obriga a que preſcinda,
Da nativa altivez...

Eledia. E que virtude
He capaz d'influir huma baxeza?
Quando em ferros curvadas ſe laſtimaõ
As tuas companheiras, tu t'empregas
Em prender roupas, e eſtudar adornos?

Oſmîa. [25] Que terrivel infania te poſſue!
Teu furor te conduz arrebatada
A julgar-me indefeza. O fauſto, o traje,
Que affaz me deſagrada, e te horroriza,
Hoje meſmo o veſti a vez primeira;
A ultima ſerá. Eu deſta pena
(Naõ leve) que m'oprime, hum nobre premio
Eſperei conſeguir: de ti depende.

Eledia. [26] Virtuofa te moftra, e verás como
Eledia te focorre.

Oſmîa. [27]Bem podéra
D'altivez increpar-te. Eſcravas ambas
Na verdade nos vemos; mas tu meſma
Que ſou tua Princeza reconheces.
Igualou-nos a ſorte, tens deſculpa,
Se excedeſtes os termos. Nem me eſqueço
Do que devo a teu zêlo infatigavel.
Arte, esforço, virtude, o proprio mando
Como dadivas tuas reconheço.
Tu foſte aquella, que entre mil guerreiros
(Qual outra Mãi prudente) me eſcolheſte
Rindaco por Eſpoſo: reſpeitei-te
Em tao ſevéra eſcolha; à mão d'Eſpoſa
A Rindaco entreguei, ſacrificando
O meu proprio ſocego ao deſſes Póvos,
Que meu conſorcio unîa. Começava
Meu brando coraçao a coſtumar-ſe
Aos duros laços do conſorte altivo,
E a benigna virtude hum véo lançava
Sobre tantas e tantas aſperezas
Ao genio meu contrarias.

Eledia. Corta o fado
Tao formoſa uniao, que d'improviſo
Lelio nos aſſaltou. Correo-ſe ás armas ;
Mas ſem fórma, ſem ordem. O tumulto
De ti me ſeparou, nem ſei que paſſos
Os de Rindaco foraõ, que as Cohortes
De nós s'apoderáraõ por maneira
Que o ceder foi preciſo, mas pagáraõ
Com mil vidas o noſſo cativeiro.

Oſmîa. Eu de longe te vi fazer paſmoſos
Eſtragos no inimigo, e teus esforços
D'Emulaçaõ, d'exemplo me ſerviraõ.
Por longo tempo do conſorte ao lado
Suſtentei o combate; mas ſabendo
Que os noſſos afrouxavaõ de outra parte,
Me diffe o Eſpoſo entao «Suſtenta Ofmia
Com teu valor e exemplo eſte partido,
Em quanto eu corro áquelle
» Parte, e logo
Deſaparece, entrando nas Cohortes
Como raio que as nuvens deſpedaça.
Reforçaõ-ſe os contrarios: dóbro os golpes;
Porém poucos me ſeguem. Nas inſignias
Reconheço o Pretor, e fatigada,
A' viſta do perigo me reſolvo
A livrar-me co'a morte dos horrores
Do duro cativeiro. Eſtranha força
Me impede: era o Pretor, que o já ſeguro
Ferro cortez e forte me demanda.
Cêdo, bem que ameaço naõ s'offende;
Antes huma centuria entao deſtáca,
A fim de que ſegura m'acompanhe
A eſte meſmo Alcaçar onde tudo
Se move a meus acenos.

Eledia. Eſtremeço
A cada novo termo que te eſcuto.

Oſmîa. Contar-te por miudo os lances todos
De ſeu genio cortez, e generoſo
Fôra coſumir tempo inutilmente.
Eu ſevéra huma vez, outra groſſeira
Deſprezo n'apparencia inda as virtudes
Que dentro n'alma reſpeitoſa admiro,
Só de Rindaco fallo, ſó pertendo
Unir-me ás prizioneiras, e com ellas
Correr o damno que lhes coube em forte.

Eledia. Oh! generoſa! oh! digna d'outro fado!

Oſmia. Naõ podendo porém deſcubrir meio
De ſaber do conſorte, em tal aperto
Deſcorri que empregar devia o mesmo
Inimigo da Patria em favor della.
Roguei-lhe pois...

Eledia. Que foſſe procurado
Rindaco pelo campo.

Oſmîa. E como o ſabes?

Eledia. Ha pouco Lelio tinha-me incumbido
Dizer-te que foi Rindaco buſcado ;
Porém de balde!

Oſmía. Ah! que de todo inutil
Eſte traje naõ he. Foi eſte o preço
De te ver, cara Eledia, e de alcançar-te
Por minha companheira em quanto o Fado
Do conſorte animoſo me ſepára.

Eledia. Pois intentaõ que os trajes Luſitanos [28]
Troques por eſſa pompa vergonhoſa?
Ah! Princeza infeliz! devêras antes
Deixar-te perecer ao deſamparo.

Oſmîa. Devêra, Eledia, s'um groſſeiro ſprito
De rigor contra mim ſeu braço armaſſe
Mas outros ſao os malles que me aſſuſtaõ.
Naõ perde o Pretor meio d'obrigar-me;
Porém taes ſaõ os modos, que a prudencia
Mil vezes do que teme s'arrepende.
Naõ he taõ facil, naõ, como tu julgas
Sahir do labyrinto em que me vejo.
Compadeſſe-te, amiga, e nao te affaſtes
De mim hum ſó momento.

Eledia. Mas que riſco
Pódes tu recear? ardor, esforço
Naõ te faltou jámais: Por fim, hum ferro
Naõ te pode livrar de taes receios?

Oſmîa. A vida que reſpiro naõ he minha:
Talvez della inda Rindaco preciſe;
Nao devo conſervar-lha?

Eledia. Sim; mas pague
O Pretor com a ſua tanto inſulto.

Oſmîa. Quando elle me inſultaſſe livre fora;
Porém quando me obriga, de cautella,
Naõ de ira, neceſſito.

Eledia. De que parte
Te veio tanta aſtucia?

Oſmîa.O meu perigo
Reflexiva, e prudente me tem feito.
Se ſouberas os vivos ſobreſaltos,
As anguſtias que tenho padecido...

Eledia. Por nimia frouxidaõ: Oſmîa, eu temo...
Eu tremo...

Oſmîa. Baſta Eledia, e pois naõ ſabes
Mais nada que bramir enfurecida,
Deixemos vans contendas. Hum ſó ponto
Importa inveſtigar. A todo o cuſto
He preciſo ſaber qual ſeja a ſorte
De Rindaco infeliz. Vamos, que os Deoſes
Por mim combateráõ.

Eledia. Sim, ſe a virtude
Conſtante ſuſtentares no teu peito. [29]

 
FIM DO ACTO I.

  1. Deſpede os Capitães
  2. Parte Manlio.
  3. Com ironia.
  4. Como aſſima, e aſſm meſmo, ao que logo reſponde
  5. Pondo-lhe com emphaze a maõ no braço.
  6. Olhando para o fundo do Theatro da parte eſquerda.
  7. Com Emphaze altivo.
  8. Moderado e ſevéro.
  9. Volta-ſe para a Anta, e exclama com vehemencia.
  10. Com arrogancia.
  11. Lucio dezata as cadêas, e as conſerva na maõ.
  12. Com altivez
  13. Para o Pretor.
  14. Moſtrando as cadêas.
  15. Com furor, lançando maõ das cadêas que Lucio lhe larga.
  16. Tira-lhe as cadêas, e as dá a hum dos guardas.
  17. A Lucio com ſeveridade.
  18. Parte Lucio por hum dos corredores mais proximos á boca do Theatro.
  19. Parte.
  20. Affaſta-ſe para o fundo do Theatro enxugando o pranto, e ſem dar attençaõ ao que ſe paſſa, ſó volta quando Oſmîa a chama.
  21. Lucio entrando no Theatro com Oſmîa, lhe moſtra Eledia, e parte para o campo.
  22. Oſmîa dando alguns paſſos no Theatro, fica obſervando Eledia, e depois de combinar os trajes, s'apreſſa para abraçalla.
  23. Voltando com ternura, fica ſuſpenſa, como que deſconhece Oſmîa.
  24. Oſmîa com brandura. Eledia ſempre com indignaçaõ, e altivez.
  25. Com afflicçaõ.
  26. Com altivez.
  27. Com ſeveridade.
  28. Com vehemencia.
  29. Partem.