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Página:A Maravilhosa Vida de Santos=Dumont.pdf/64

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Experimentamos assim, e por um instante, a singular sensação de estarmos suspensos no vácuo, sem nenhuma sustentação, como se houvéssemos perdido nossa ultima grama de gravidade e nos achássemos prisioneiros do nada opaco.

Após alguns minutos de uma queda que amortecemos soltando lastro, vimo-nos abaixo das nuvens, a uma distancia de cerca de 300 metros do solo. Uma aldeia fugia abaixo de nós. Localizamos o ponto e comparamos nossa carta com a imensa carta natural que a vista lobrigava. Foi-nos fácil identificar as estradas, os caminhos de ferro, as aldeias, os bosques. Tudo isso avançava para o horizonte com a rapidez do vento.

A nuvem que provocara a nossa descida era prenuncio de uma mudança de tempo. Pequenas rajadas começavam a impelir o balão da direita para a esquerda e de cima para baixo. De espaço a espaço o “guide-rope” — uma grande corda de uns 100 metros de comprido, que flutuava fora da barquinha, — tocava no chão. A barquinha não tardou por sua vez a roçar as copas das árvores.

O que se denomina fazer o “guide-rope” apresentou-se-me assim em condiçõess particularmente instrutivas. Tínhamos ao alcance da mão um saco de lastro: se um obstáculo qualquer se apresentasse no caminho soltávamos alguns punhados de areia; o balão subiria um pouco e a dificuldade seria vencida.

Mais de 50 metros do cabo arrastavam-se já pelo chão. Não era preciso tanto para nos mantermos em equilíbrio a uma altitude inferior a 100 metros, pois havíamos decidido não exceder disso até o fim da viagem.

Esta primeira ascensão permitiu-me apreciar devidamente a utilidade do “guide-rope”, modesto acessório sem o qual a aterrissagem de um balão esférico apresentaria graves dificuldades na maior parte dos casos. Quando, por uma razão ou por outra o acúmulo de umidade sobre a superfície do balão, golpe de vento de cima para baixo, perda acidental do gás, ou mais comumente ainda, passagem de uma nuvem diante do sol — o balão baixa com velocidade inquietadora, o “guide-rope” arrastando em parte pelo solo, deslastre todo o sistema de uma parte do seu peso e impede, ou pelo menos, modera a queda.

Na hipótese contraria, se o balão manifesta uma demasiado rápida tendência ascensional, esta poderá ser contra-balançada pelo levantamento do cabo, o que ajunta um pouco mais do seu peso ao que pesava, antes da manobra, o sistema flutuante. Como todos os inventos humanos, o “guide-rope”, se tem vantagens tem também seus inconvenientes. Pelo fato de se arrastar sobre superfícies desiguais, sobre campos e sobre prados, sobre colinas e sobre vales, sobre estradas e sobre casas, sobre sebes e sobre fios telegráficos, imprime ao balão violentas sacudidelas. Acontece que após ter-se enrolado, ele se desembaraça instantaneamente; ou que venha a prender-se a qualquer aspereza do solo, ou enganchar ao tronco ou aos galhos de uma árvore. Não faltava se não um incidente deste gênero para completar minha aprendizagem.

Quando franqueávamos um pequeno massiço de arvores, um balanço mais forte do que os outros atirou-me para trás na barquinha. Imobilizado de subito, o balão estremecia açoitado pelas lufadas de vento, na extremidade do seu “guide-rope” enrolado nas franças de um carvalho. Durante um quarto de hora fomos sacudidos como um cesto de legumes e só nos libertamos aliviando um pouco de lastro. O balão, deu então um pulo terrível e foi como uma bala furar as nuvens. Estávamos ameaçados de atingir alturas que depois nos podiam ser perigosas para a descida, dada a pequena provisão de lastro de que já dispúnhamos. Era tempo de recorrer a meios mais eficazes: abrir a válvula de manobra para que o gás escapasse . Foi obra dum minuto. O balão retomou a descida e o “guide-rope” tocou de novo o solo. Não nos restava senão dar por encerrada aí a excursão; a areia estava quase toda esgotada. Quem quer que aspire navegar em aeronave deve, preliminarmente, exercitar-se em algumas aterrissagens em balão esférico, por pouco que ligue a aterrissar sem tudo espatifar a um tempo: balão, quilha, motor, leme, propulsor, cilindros de água servindo de lastro (water-ballast), latas de essência.

Quando tivemos de executar esta última manobra, o vento, que era muito forte, constrangeu-nos a procurar um local abrigado. Do extremo da planície avançava ao nosso encontro um recanto da floresta de Fontainebleau. Em alguns instantes, á custa do nosso ultimo punhado de lastro, contornamos a extremidade do bosque. As arvores agora nos protegiam contra o vento. Atiramos a ancora, ao mesmo tempo que abríamos completamente a válvula para dar escapamento completo ao gás.

 

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