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A REVISTA

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O CARTEIRO

GODOFREDO RANGEL

(Especial para A REVISTA)

Ha certas antipathias, bem como sentimentos exactamente antipodas, que decorrem, como effeitos fataes, da natureza do cargo publico ou funcção social exercida por alguem. A presença de um medico, conforta; a de um advogado, inquieta; do mensageiro do telegrapho, sobresalta. Sua simples presença desperta «mecanicamente», nós, esses sentimentos. Como esses, os que exercitam outras profissões. E'-nos particularmente sympathica a vista do carteiro de nossa rua. Ao aspecto do maço de correspondencia que elle sustem nas mãos, em nossas veias corre mais accelerado o sangue, em éstos de esperança. Não sei que encanto singular ha nas cartas que vamos receber de suas mãos. Naquelles pequenos rectangulos claros como que demora a realização de todos os desejos que são a nossa razão de viver. E' uma aventura imprecisa que vae, talvez, cahir em nossa vida e quebrar-lhe improvisamente o monotono rumo.

Com que alvoroço de silenciosa felicidade estendemos a mão para receber as mensagens desconhecidas que sua mão nos offerece! Somos taes quaes os jogadores de que nas fala Anatole, á espera de que seu numero sáia. Não nos lembram as más noticias possiveis, aggressões de inimigos, mordidas da inveja anonyma, novas de lucto ou de molestias. Aguardamos unicamente o alvorecer de uma ventura nova. E a viva emoção desse momento breve, marca, muita vez, no transito acinzentado de nossos dias de labor e tedio, como em um ponto de luz, nosso unico momento de fugaz ventura.

Depois... a desillusão. Aberta a correspondencia, evaporou-se o impreciso delicioso que nos accelerou o sangue. Uma carta é um reclamo commercial; outra, nos enche de apprehensivos cuidados sobre a saude das pessoas que amamos ou sobre nossos negocios; nalgumas vêm maçadoras incumbencias que sacrificarão porção preciosa e irrestituivel de nosso tempo; mesmo as boas novas, se por acaso chegam, não tem o encanto do imprevisto e por isso nunca motivam a intensa felicidade que esperavamos. Emfim, é a propria monotonia da vida que mana do interior das sobrecartas dilaceradas, confluindo para a morosa correnteza de nosso existir, que prosegue seu curso monotono, aggravado de mais uma sobrecarga de preoccupações.

Entretanto, apezar de tudo, cada dia a agradavel sensação se renova e é-nos sempre grata a presença do carteiro.

(Fragmento)