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Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de projectos, projectos que, n’aquellas idades, nascem e morrem a todo o instante. Terminava está carta, em que lhe participava a sua vinda á aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:

«Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos dias conto ir vêr os coelhos do quintal d’ella, e ajudal-a a tirar a agua do poço. O pae d’ella chega ahi ao mesmo tempo que está carta; leva um livro para si.»

Augusto sorriu, ao ler o post-scriptum.

—­Pobre Angelo!—­murmurou elle,—­Deus não permitta que sobreviva á tua ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estás generosas affeições de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.

Havia tanta amargura n’estas reflexões de Augusto!

E, como absorvido n’ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.

 

VII


A casa do recoveiro Cancella ficava n’uma das maïs estreitas rúas da aldeia e ao lado de um pequeño quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da sua occupada e laboriosa vida.

Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n’uma estalagem; viam-o ámanhã já a maïs de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a multidão nas rúas e feiras da cidade; no