no Anjo da guarda da infancia. Muitas causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e depois aquellas palavras inesperadas, aquella exposição desconhecida e em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da impressão d’aquella voz sonora e infantil, ninguem procurava explicar o mysterio. Milagre lhes parecia e quasi como milagre o acceitavam, e de ouvidos attentos, collos estendidos e bôcas semi-abertas parecia recolherem, uma a uma, aquellas palavras, como se de um verdadeiro emissario celeste as escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguem dera por isso. Os actores que estavam atraz da cortina tinham sido feridos pelos primeiros versos, differentes dos que elles esperavam; isto obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia d’aquella voz e d’aquelle gesto, vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram circulo á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O espanto, os affectos, o orgulho de pae, a exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quasi de extase. Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.
Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr’olho, prevendo trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de bôca aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria, elle só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente aquella voz de creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse alguma coisa de sobrehumana.
Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro