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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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as águas do Apsu. Algumas vezes se atribui uma esposa a Ánu, em geral as deusas Ántu (simplesmente o feminino de Ánu), Urash (Terra) ou Ishtar. Enfim, ele costuma ser considerado o pai dos deuses e demônios, cabendo-lhe, em última instância, decretar os destinos.

Como acontece com Tiámat e Apsu, Ánu foi raramente (talvez nunca) representado nas artes visuais, sendo difícil, de qualquer modo, conjeturar quais seriam os índices iconográficos que permitiriam sua identificação, com exceção de, no período cassita (séc. XVI-XII) e neo-assírio (séc. X-VII), o turbante com chifres, atributo também de outros deuses (BLACK et al., 2003, p. 30).

Ánu constitui uma divindade análoga a outras na zona de convergência do Mediterrâneo oriental, incluindo o sírio Baal Shamem (Senhor do Céu) e o grego Ouranós (Céu), embora nenhum dos correlatos se apresente, nos respectivos panteões, com a mesma importância que ele. Em alguns casos, como no grego, trata-se de um deus presente nas teogonias, mas que carece de culto (cf. TOORN, 1999, p. 388-389).

No Enūma eliš, Ánu é uma personagem atuante, no mesmo nível que Ea, ou seja, enquanto adjuvante. Sua autoridade no panteão se encontra na verdade transferida para Ánshar — o qual não deixa de ser uma espécie de manifestação do mesmo deus, enquanto remete, como já referido, à 'totalidade do céu' (an-šar). A coalescência entre os dois ganha significativa expressão no modo como se narra a sucessão divina neste passo: em vez de, como nos casos anteriores, afirmar-se que o deus surgiu ou foi engendrado por seus antecessores, o que se diz é que ele é o "primogênito deles" (apilšunu), é "igual a seus pais" (šānin abbīšu) e que "Ánshar em Ánu, seu rebento, refletia-se" (Anšar dAnum bukrašu umaššilma).


Verso 16: Este verso tem intencional relação com o anterior, pois desdobra o que se afirma naquele: assim como Ánshar reflete-se em Ánu, "Ánu, tal seu reflexo (tamšīlāšu), procriou Nudímmud", ou seja, é como se fosse um jogo de espelhos, em que Nudímmud — outro nome de Ea — reflete Ánu, que reflete Anshar (o termo tamšilu, 'imagem', 'semelhança', é derivado do verbo usado no verso anterior, mašālu, 'ser ou ficar igual'). Essa ideia sugere que o autor termina por constituir