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— «Tens razão. Á força de viver comvosco heide modificar-me e tenho esperança de que terei ainda no futuro a mesma crença que os anima, de que a humanidade é bôa e de que é possivel agrupar-se em sociedade, dando a todos egual quinhão de alegria e bem-estar, tendo a mentira como um crime e despresando a hypocrisia por inutil... O vosso amôr me fará um crente, fazendo-me comparticipante d’uma felicidade, que nunca tive.

N’essa noite o Visconde peorou. Já pouco fallava; era com os olhos e levantando um dedo de cima das almofadas a que se agarrava com o desespero de naufrago que se sente submergir, que manifestava o desejo de qualquer coisa.

Indifferente, desde o principio, a tudo que o rodeava, parecia não ter reconhecido a Viscondessa ou se a reconheceu o seu espirito já andava muito longe para poder ligar factos que a doença lhe tinha feito recuar até ás brumas do passado esquecido.

O que n’elle vivia ainda era a materia que se decompunha, a materia triturada pela dôr e para o goso da qual tinha vivido a existencia inteira.

Na alcova, João e o Ramalho procuravam socega-lo; junto da chaminé conversavam em voz sumida Pedro d’Avellar e o Abbade; ao pé da meza onde tinham collocado a lamparina, Isabella e a Viscondessa trocavam a meia voz algumas palavras. De quando em quando, o doente, que já não tolerava a posição horizontal, passava pelo somno com a fronte apoiada á rima