Página:Ambições (Ana de Castro Osório, 1903).pdf/363

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fechou os olhos e cahiu em modorra só cortada pelo arfar espacejado. Apesar da certeza de que não via nem ouvia andava-se de vagar no quarto, fallava-se a meia voz como se o ruido da vida ainda pudesse incommodar aquelle quasi cadaver, tornado motivo de curiosa piedade para todos.

Maria Helena pensava em toda a sua vida sacrificada por elle, na sua propria mocidade agonisante, como elle, na pavorosa lucta do coração que aspira pela vida, fechado n’um corpo que se vê envelhecer... Para ella tambem já não havia mais nada, dizia-lhe a razão; mas qualquer coisa muito adentro da sua alma se revoltava e lhe fazia antever a esperança de que a vida lhe daria ainda a porção de alegrias a que tinha direito, e das quaes, avaramente, lhe regateara pequenas migalhas...

Quando o sol entrava já pela janella mal fechada, pondo raios d’oiro em todas as frinchas por onde se escapava, João abriu as portas e o quarto inundou-se de luz, uma alegria radiosa de manhã de inverno fazendo da mais leve poeira um luminoso cantico á vida.

E foi na gloria de um sol triumphante, creador, purificador e bom, que a vida deixou de alimentar esse corpo de homem que tantos odios e paixões levantára, que tantas ambições servira e que apenas deixava aos corações que o rodeavam, mais ou menos feridos pelo seu egoismo, a vulgar piedade que se tem por todo o soffrimento physico.