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Página:As Minas de Prata (Volume IV).djvu/108

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Estácio entrou na ermida e foi ajoelhar ao pé do altar. Depois da oração parou em face de uma catacumba principal construída no centro da capela. Aí recostado na espada, com a fronte acurvada ao peso das ideias que turbilhonavam no cérebro, e os olhos fixos na rubrica negra da lousa, ficou imóvel e alheio de si.

O epitáfio, que ainda hoje se lê naquela ermida, rezava assim:


Sepultura de D. Catarina Álvares, senhora desta Capitania da Bahia, a qual ela e seu marido Diogo Álvares Correia, natural de Viana, deram aos Senhores Reis de Portugal.

Fez e deu esta capela ao Patriarca São Bento.

Ano de 1582.


Lendo o epitáfio gravado na lousa, Estácio proferiu estas palavras:

— Vós, nobre e intrépida senhora, que combatíeis com brios de cavalheiro e esforço de homem ao lado do esposo, não renegais vosso sangue, como o renegam os que dele gerastes na terra. Se na mansão dos justos, que habitais, doem à vossa alma bem-aventurada o infortúnio e injustiça que tudo me roubou, fazenda e estado, família e casa, em reparação de quanto perdi, aqui vos peço, virtuosa senhora, uma só mercê: “Intercedei com a vossa divina protetora, Nossa Senhora da Graça, para que da graça sua infinita, derrame uma lágrima sobre este amor ardente que acendeu em mim o mais puro dos seus anjos na terra!...”

O mancebo tirou a espada da bainha e a colocou nua sobre a campa dos progenitores de sua família:

— Sejam pois vossas cinzas que sagrem este ferro, e o abençoem do céu vossos olhos, senhora; ele é virgem de sangue, e eu vos juro que sempre o será de sangue inocente! Nunca o empunharei senão em prol de uma causa justa!

Depois de uma pausa:

— A espada de meu pai, bem sabeis, a despedaçou a mão do algoz sobre as suas cinzas ainda quentes; nem essa herança me deixaram; até um canto deste chão, onde repousasse vosso descendente, lhe recusaram!

O pensamento do cavalheiro depois dessa invocação enleou-se nas ideias que suscitava o próximo combate. A cena que ia representar-se desenhava-se como presente a seus olhos: via D. Fernando em face dele, as espadas cintilando no ar e esgrimindo com fúria; depois o adversário prostrado a seus pés. Então punha-lhe o ferro à gorja, e arrancava-lhe a preço da vida o juramento de renunciar para sempre à mão de Inesita.

Mas se D. Fernando recusasse e preferisse a morte ao juramento, que faria ele? Cravaria o ferro no peito do rival, e estancaria dali com o sangue, o veneno do seu funesto amor pela filha de Aguilar? Deixá-lo-ia, com vida, esperando de sua gratidão o que os brios do cavalheiro recusassem à ameaça?

Estácio sabia já quanto vale a gratidão; mas também essa ideia de matar um homem, embora em combate leal, assim encarada friamente, lhe repugnava:

— Tenho eu o direito de matá-lo, a ele, instrumento apenas daqueles que não se importam de cortar-me em flor a vida?... Se morto, não se realizarem

no match

as esperanças minhas, e D. Francisco repelir-me por indigno de sua aliança, esta morte não pesará na minha consciência como um remorso?

O espírito do moço afundou-se na meditação dessa ideia; afinal ergueu a fronte com energia:

— Não!... não o matarei!... As vestes cândidas do santo amor nosso, Inesita, não as borrifarei de sangue, seja ele de um inimigo!... Imaculadas, como vossa alma, servirão de mortalha aos nossos corações, se Deus não permitir que nos sirvam de véus nupciais!

Depois, ofuscada a fronte como nuvem sombria, onde afuzila um raio, murmurou:

— Só o mataria, se... Mas é impossível: Inesita jurou! Dela só lhe pertencerá o despojo terrestre!...

Nesse instante o cavalheiro voltou-se, ouvindo Gil que o chamava da porta; e saiu logo. Ao mesmo tempo a cabeça do frade bento que o estava espreitando do vão de uma porta, sumiu-se dali e foi aparecer à janela da sacristia, donde podia ver o que passava no pátio da igreja. O reverendo estremeceu reconhecendo ao longe, no caminho, D. Fernando de Ataíde que apressado se encaminhava para ali, seguido por um pajem.

Também Estácio saindo fora, reconhecera seu adversário; e deixando-o que chegasse ao terreiro, foi dirigindo-se para as bandas do mar, com passos lentos e medidos de modo que visse o outro a direção que tomava e o seguisse. Conhecendo que fora compreendido, internou-se pelo arvoredo.

Havia ali um grupo de aroeiras seculares, que sobrepujavam de muito na altura o outro mato próximo, e por isso facilmente se distinguiam. À sombra das árvores frondosas, o chão era limpo e plano como o de uma sala d'armas; os troncos em conveniente distância não estorvariam os movimentos dos campeões. O cavalheiro circulou com o olhar o recinto fechado em torno pela vegetação, e tirando a espada, experimentou outra vez a flexibilidade da folha:

— Não o viste seguir-me, Gil?

— Oh! se vi! Mas ele que não aparece...

— Talvez se desviasse... Vai encaminhá-lo.

— Ei-lo!

As folhas secas rugiram; mas em vez de D. Fernando de Ataíde, foram cinco soldados da guarda do governador, tendo à sua frente o Capitão Manuel de Melo, que apareceram de repente, saindo do mato. O oficial avançou para o cavalheiro, procurando deitar-lhe a mão:

— De ordem do sr. governador vos prendo e intimo como réu de desafio!

Estácio recuou de um salto, e pondo-se em guarda exclamou:

— Quem me tocar, é homem morto!

— Toda resistência é escusada. Olhai em volta! Rendei-vos antes que ser rendido!

Volvendo o olhar, viu o moço que o capitão dizia a verdade. Atrás surgira outra linha de cinco soldados, que estendendo-se como a primeira em semicírculo, fazia completo o cerco. A resistência de feito era loucura.

— Embora! Morrerei, e comigo alguns dos que aí estão. Antes, porém, em presença de todos vós que me ouvis, soldados valentes, declaro alto e bom som, e vos rogo de repetir por cem bocas, que D. Fernando de Ataíde é três vezes infame!...

O moço encostou-se ao tronco da árvore:

— Agora, senhores, ao vosso dispor.

D. Fernando de Ataíde surgiu nesse instante, pálido de cólera; e após ele a figura encapuzada do frade bento, que procurava retê-lo pelo manto.

— Esperai um instante, senhores! Este homem acaba de insultar-me em vossa presença; ele me pertence antes que a vós!

— Este homem está preso à ordem do senhor governador e sob minha guarda. Ninguém lhe deitará a mão! acudiu o capitão.

— Eu dou-me em refém e penhor de sua pessoa. Uma hora somente, capitão!

— Impossível, Sr. D. Fernando.

— Não prezais a vossa honra, Sr. Manuel de Melo!

— Provar-vos-ei em outra ocasião; agora defendo a minha honra de soldado; cumpro as ordens.

— Neste caso, senhores, tereis de haver-vos também comigo!

D. Fernando saltando no meio do círculo, postou-se ao lado de Estácio:

— Venho ajudar-vos a salvar a vossa liberdade, para poder dizer-vos então em face que mentistes!

A um sinal do capitão, os soldados iam precipitar-se sobre os dois campeões, quando mais um personagem entrou em cena. Era o nosso estimável amigo João Fogaça, mui digno capitão de mato:

— Alto lá, gente!... disse ele para os soldados, avançando em duas pernadas. Isso não vai assim, como cuidais. Sr. capitão, vosso servo: que estejais muito bom, é o que se quer. Que buscais aqui, homens? Arredai-vos, que não estou agora de veia para aturar-vos. Um pouco de paciência: não vos espinheis! Aqui estão dois cavalheiros decidindo um negócio de honra. Vós pretendeis que o senhor governador reclama por um; aqui entre nós, capitão, não vos parece que a justiça de Deus deve passar antes da justiça de El-Rei!... Andai; abri campo aos adversários, é o que de melhor tendes a fazer!

— Soldados, gritou o capitão, enxotai-me este malandrim!...

João Fogaça soltou então uma gargalhada estrepitosa, que reboou ao longe pelas praias, uma perfeita gargalhada homérica; e mostrou em volta ao capitão a crítica situação em que de repente se achavam os seus soldados. Por trás de cada um, ao som da risada do capitão de mato, surgira um índio que se precipitara sobre, e como uma cadeia de aço arrochara seu homem pelos peitos, tolhendo-lhe o movimento dos braços e do corpo. Pareciam estafermos atados ao poste.

— Enchei agora a boca de vossos soldados, capitão!...

— Sua Senhoria será sabedor!

— Por certo; porque eu mesmo lhe direi, quando levar-lhe presa a palácio a sua guarda, convosco em frente!

— Tomo-vos por testemunhas que cedo à força!

— E eu, ministro da religião e da paz, em nome do meu santo ministério, advirto que esta terra que pertence à N. S. da Graça, quem a ensopar de sangue...

— Calai-vos daí, reverendo! Ide à vossa missa; e vós, capitão, chegai-vos a mim para dar lugar aos campeões. Eia, senhores, em guarda!

Os dois mancebos afastaram-se tomando campo, e cruzaram o ferro; mas ainda um obstáculo surdiu, com uma nova personagem, que interrompeu a cena. O advogado Vaz Caminha, deitando alma pela boca, chegou a toda a pressa, e erguendo a bengala interpôs-se entre os dois combatentes:

— Que dunguinha é este agora? perguntou o capitão de mato rindo e adiantando-se para safar o advogado.

Mas ante o velho, Estácio abaixara a espada, curvando a fronte com pejo.

— Filho, disse o advogado, em nome de vossa mãe, que dorme aqui perto, e a quem respondo pela vossa felicidade; em nome do amor que vos tenho, e do bem que vos desejo; filho, eu vos ordeno. Entregai-me esta espada!... Rendei-a!...

— Aqui a tendes, mestre; mas eu insultei este homem; ele tem o direito de matar-me.

O velho voltou-se para D. Fernando:

— Eu vos respondo, senhor, pela sua pessoa quando o exigirdes para desafronta vossa.

Fernando ia replicar; eis que de repente surge de entre o mato o vulto do magarefe; arremete ao fidalgo, e fechando-o nos braços robustos, o arrebatou da cena, como um abutre à presa.

O primeiro sentimento causado pelo incidente foi o da surpresa; mas logo voltaram à anterior preocupação.

Vaz Caminha voltou-se para Estácio:

— A espada que me rendeste, filho, rendo-a eu àquele de quem a houveste para defesa da religião e da pátria. A El-Rei por quem a reclama a gente de seu serviço.