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Um paganismo simples e gracioso apreendeu na vida universal as mesmas fôrças, tendências e elementares vontades, que trabalham silenciosamente nas profundezas do ser humano; mas já as lutas titânicas revelam na Natureza vontades inimigas, que nos assediam e oprimem.

Um titanismo vitorioso, coberto de glória e feridas, pode voltar a ressentir a beleza ingénua, a inocência e o bem, na fórma da aragem que embala as florinhas, na frescura humilde do arroio, na sombra acolhedora da árvore, no sonho que trespassa a grande voz dos elementos.

Eis porque não há maravilhoso nem misturas de maravilhoso, há sim uma voz humana que é contemporaneamente estremecimento da alma e do ar, que fulgura, no éter interior e no éter envolvente, a mesma luminosa geometria. Nos Lusíadas há alegria campesina, boninas, prados e jardins, uma natureza inocente e sem mácula; mas há tambêm águas que são já lágrimas de amor saudoso, há montes e ervinhas que andam a aprender no peito de Inês.

E a paisagem de Coimbra ainda hoje vive a repetir essas lições; na Quinta das Lágrimas ainda hoje, da fonte correm sem descanço, ressoando em éco, os versos desta oitava:

 

«As filhas do Mondêgo a morte escura
Longo tempo chorando memoraram;
E por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram:
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amôres de Inês, que ali passaram
Vêde que fresca fonte rega as flôres,
Que lágrimas são a água e o nome amores».

 

A Natureza não existe fora da convivência do homem. Ora simples, silenciosa e profunda, duma inocente religiosidade elementar, ora destroçada e perdida se a não socorre a memória.

Fonte que é o simples murmúrio da gratidão das