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PORQUE LOPES SE CASOU
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dinha inteira, coisa de começar no frangote das perebas e acabar nos seis gatos ladrões do Chiquinho, com escala pelos cães sarnentos do Manoel, pelos canarios azucrinantes do Julio e pelas bonecas de panno da Mariinha. Moel-os em massa, a granel, vir entregar-me á policia e pedir ao jury, de joelhos, trinta deliciosos annos de paz e silencio no fundo duma cellula. Mas fica em impetos: sou uma tapera arrazada, incapaz dum movimento energico...

O pobre Lucas consultou o relogio e assustou-se.

— Tres horas! Minha cara metade deve estar furiosa. Adeus, Lopes, vou-me ao «repouso do lar», concluiu elle, despedindo-se, com riso amargo.

E foi-se o Lucas, apressadamente, cheio de pacotes pelos nós dos dedos, embrulhos nos bolsos e um queijo sobraçado... Lopes ficou immovel no logar, com os olhos parados, recordando. Veiu-lhe á mente o Lucas de quinze annos atrás. Era um rapagão viçoso, todo esperanças no futuro, e amigo de architectar castellos de Espanha. Poetara. Amara meia duzia de meninas em duas centenas de sonetos parnasianos, e por fim elegera diva á Nonoca Fagundes, uma loura translucida, magrinha, de falas mellifluas — um Botticelli temperado á moderna, dizia, elle. Era bonitinha, dezesete annos, em pleno viço da belleza do diabo, um mimo de fragilidade, boazinha como não havia outra boa, — «boa constrictor ...» Ingenua, amiga de reticencias graciosas, corava a todo instante. Dizia elle: moram em suas faces duas rosas Bella-Helena. Andar saltitante, como de sylphide. Um verso delle rezava:

Das plumas tens no andar
a suave macieza...

Lucas amou-a em regra, e sonetou-a inteira, dos cabellos aos pés, parnasianamente, nephelibatamente, com lyrismo de commover as pedras. Não a tratou pelo cubismo porque o cubo guindado a metro poetico não circulava ainda.

Sonhou-a ao seu lado, amiga peregrina d'alma e do coração, num arroubo perenne de felicidade celestial (pela estrada da vida afóra...

Amou-a tres annos seguidos, com o dispendio d'uma arroba de versos arrancados á carne viva da inspiração. Bateu-se a punhadas com varios rivaes temiveis. Rompeu com a familia que desapprovava o casorio. Cantou-lhe á janella, com muito choro de violão, todas as modinhas do tempo — «Quizera amar-te», «Acorda donzella» e outras adrede compostas para aquelle fim. Amou-a loucamente, «como se ama uma só vez na vida». Foi desses que dizem em prosa, verso e cochicho: «ver-te e amar-te foi obra de um só momento». Intercalou num alexandrino o classico «anjo, mulher ou visão». Esgottou inteirinho o alforje romantico das imagens enluaradas; recorreu á botanica e assolou o reino vegetal á cata de flores comparativas. Não contente com isso, ainda deambulou pelos céos e mergulhou nos mares, caçando imagens — que nada era bastante á immensidade d'aquelle formidavel amor.

Casou, por fim.

E estava reduzido áquillo, o Lucas!...

Em vista do que, Lopes, que estava noivo, e irresoluto se casaria ou não, tendo no activo já uma duzia de sonetos hendecassylabos, decidiu incontinenti: — casou-se... Se tinha de acabar como o Lucas, levasse sobre elle, ao menos, a vantagem de menor copia de versos á futura cascavel. Porque lhe pareceu que o maior soffrimento do Lucas havia de ser o remorso da enorme bagagem de versos ante-nupciaes.

E era.