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A POESIA E O POETA
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Só uma nuvem no céo... e a diluir-se... estirada em frouxel de paina...

— As tainhas!

Vólto o rosto.

A boreste linguas de prata ás dezenas emergem do liquido, scintillam instantaneas á luz do sol, num salto, e caem de chapa na agua azul.

— Que lindo!

Não tarda muito, rebóla um bôto na esteira do peixe.

E outro bôto.

E outro!...

Somem-se as tainhas.

Somem-se os bôtos.

O mar fecha aos nossos olhos a chacina sangrenta que lhe vae no bojo.

Fementido!

Todo o plagios do céo por fóra, todo dramas de carnagem por dento...

— Manuel, Manuel, diz a minha saudade, está faltando aqui um companheiro, o Ricardo...

— O Ricardo Pequeno, da praia do Góes?

— Não, o outro, o grande — o Ricardito...

***

A casa onde móra aquella
Menina côr de açucena
E´ uma cazinha pequena,
Casa de porta e janella.

Ricardo mede versos na mezinha em desordem.

As janellas enquadram a paineira florescida do Minarete.

A espaços, uma flôr se destáca e cae, gyrante. Godofredo Rangel, ás voltas com a machina de café, resmunga contra o Antonio Nogueira. Não é que o patife passára a noite a lêr um Zola á luz azul da chamma do alcool, depois de consumido o ultimo côto de vela?

A-cá-son-de-mó-ra-qué...

— Não ha combustivel, senhor poeta!

— Accende estes «Dez Contos».

— Pegarão fogo?

— Experimenta. A-cá-son-de-mó..

E as flores, uma a uma, cahiam, gyrantes...

E as rimas, uma a uma, ageitavam-se no verso... E os contos, um a um, ardiam sob a cafeteira...

Passos na escada. Um grito:

— Ricardo! Rangel!

— Vé, Bompard! respondem de cimá.

Era o Candido que chegava, e o Raul, e o Arthur. A cainçalha integrava-se e a uma voz estrugia, num desafio á Pascacia, o nosso hymno de guerra:

Dé brin o dê bran
Cabussaran...

Mal agonizavam as ultimas notas do «hymno do Minarete», da mezinha em desordem evelou-se um novo:

A-cá-son-de-mó-ra-qué...

***

Porque nunca mais deixaram de se associar em meu espirito e em minha saudade, a Poesia e o Poeta, tal os conheci um dia, no Minarete — elle medindo versos na mezinha em desordem; ella a revelar-se nas flôres côr de rosa que aos beijos da brisa, cahiam, gyrantes, da nossa grande paíneira florescida...