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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Calçado que morde os pés de seu dono.

Qual esposo teu resistiu para sempre?
Qual valente teu aos céus subiu?
Vem, deixa-me contar teus amantes:
Aquele da festa —— seu braço;

A Dúmuzi, o esposo de ti moça,
Ano a ano chorar sem termo deste;
Ao colorido rolieiro amaste,
Nele bateste e lhe quebraste a asa:
Agora fica na floresta a piar: asaminha!;[1]

Amaste o leão, cheio de força:
Cavaste-lhe sete mais sete covas;
Amaste o cavalo, leal na batalha:
Chicote com esporas e açoite lhe deste,

Sete léguas correr lhe deste,
Sujar a água e bebê-la lhe deste,
E a sua mãe Silíli chorar lhe deste;
Amaste o pastor, o vaqueiro, o capataz,

Que sempre brasas para ti amontoava,
Todo dia te matava cabritinhas:
Nele bateste e em lobo o mudaste,
Expulsam-no seus próprios ajudantes
E seus cães a coxa lhe mordem;

Amaste Ishullánu, jardineiro de teu pai,
Que sempre cesto de tâmaras te trazia,
Todo dia tua mesa abrilhantava:
Nele os olhos puseste e a ele foste:

Ishullánu meu, tua força testemos,
Tua mão levanta e abre nossa vulva!
Ishullánu te disse:
Eu? Que queres de mim?
Minha mãe não assou? Eu não comi?
Sou alguém que come pão de afronta e maldição,
Alguém de quem no inverno a relva é o abrigo? –
Ouviste o que ele te disse,

Nele bateste e em sapo o mudaste,
Puseste-o no meio do jardim,

unibh
e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. O nome do pássaro é, em acádio, allallu, não se sabendo exatamente qual seja. Conforme a documentação antiga, trata-se de ave migratória que usualmente não se vê no mês de Addaru (o décimo segundo mês do calendário babilônico), tem uma aparência multicolorida, asa característica e um grito interpretado como kappī (“minha asa”). Com base nisso, Thompson propôs sua identificação com o rolieiro, da família de aves coraciformes, muito comum na Europa, África e Oriente Médio (cf. CAD, s.v.; este é também o entendimento de Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 135, que traduz al-la-la por ‘roller bird’).