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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

volta do século XIII a. C.;[1] por outro lado, examinar as linhas de força temáticas que dão coesão ao poema, considerando a conexão que nele têm os feitos heroicos com o sexo, a morte e a vida civilizada.

Em primeiro lugar cumpre chamar a atenção para essa circunstância excepcional de conhecermos um poeta que viveu nada menos que por volta de 1200 a. C. – apenas recorde-se que, o mais antigo que possa ser Homero, ele sem dúvida não é de antes de 800 a. C. A atribuição do texto a Sîn-lēqi-unninni encontra-se em catálogo redigido no primeiro terço do primeiro milênio a. C. e achado em Nínive, no qual se lê: “Série de Gilgámesh (iškar Gilgāmeš): da boca (ša pî) de Sîn-lēqi-unninni, [exorcista]”.[2] É claro que falar de autoria requer todas as precauções necessárias quando lidamos com o mundo antigo, da mesma forma, por exemplo, como devemos nos precaver ao afirmar que Homero é o “autor” da Ilíada. Todavia, se há uma grande possibilidade de que este que se chamou de Homero fosse antes um “aedo”, tendo em vista as peculiaridades de composição oral dos poemas, no caso de Sîn-lēqi-unninni temos uma certeza: trata-se de um escriba.[3]

A versão da “gesta” de Gilgámesh que a ele se deve, como acontece com relação a ciclos poéticos semelhantes, não constitui uma obra “original” (no sentido moderno), pois trabalha ele com uma tradição em sumério e acádio que já contava, em sua época, com mais de meio milênio, mas, diferentemente de Homero, não na forma de tradição oral, mas de escrita. Isso adquire, no presente caso, como no de outros textos, um aspecto decididamente concreto: a versão clássica identifica-se por uma série de doze tabuinhas de argila escritas na frente e no verso, o que se nomeia, como vimos, como iškar Gilgāmeš, o termo iškaru(m) apresentando esse uso especializado, como em iškar Etana (série de Etana), iškar mašmaššūti (série de encantamentos) etc. Portanto, é lidando com essa tradição escrita que Sîn-lēqi-unninni, ele próprio um escriba, compõe a sua versão do poema, a mão do “poeta” – ou propriamente “escritor” – deixando-se perceber sobretudo pela profundidade que imprime ao que se conta, ao trazer para primeiro plano a pergunta sobre a mortalidade do homem, que transforma o seu herói, de simples aventureiro, num verdadeiro sábio.[4]

Esse traço que define o poema clássico manifesta-se já no primeiro verso, sha naqba imuru, que é, aliás, o título da obra (conforme usual na tradição escriturística das línguas semitas), admitindo-se duas leituras – uma primeira, mais horizontal, “Ele tudo viu”, a segunda, mais vertical, “Ele o abismo viu” – já que o termo naqbu comporta tanto o significado de ‘tudo’ quanto nomeia o abismo subterrâneo de águas, cujo nome próprio é Apsû, donde provêm as fontes e que é a morada do deus Ea, cujo apanágio principal é a sabedoria. Diante desse dupla possibilidade, na tradução optei pela segunda, levando em conta, inclusive, que o segundo hemistíquio do mesmo verso esclarece que Gilgámesh viu “o fundamento da terra” (išdi mati):[5]

Ele o abismo viu, o fundamento da terra,
Ele - - - - conheceu, ele sabedor de tudo,
Gilgámesh o abismo viu, o fundamento da terra,
Ele - - - - conheceu, ele sabedor de tudo. (1, 1-4)[6]

Deve-se, contudo, admitir que as duas opções de leitura são possíveis, pela rela-

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. O trabalho é uma tradução comentada, de que a primeira parte (a primeira tabuinha) se encontra publicada no volume 10 (2014) da revista Nuntius antiquus.
  2. Cf. Lambert, A catalogue of texts and authors. A expressão "da boca de (ša pî)..." é um modo de indicar aquele a quem se deve a versão em causa, equivalendo a “segundo...”
  3. Note-se que Sîn-lēqi-unninni é reivindicado como ancestral por muitos escribas de Úruk, ou seja, trata-se do epônimo de toda uma categoria de intelectuais – num processo semelhante ao que se dá com os Homeridas e Homero, na Grécia (cf. Lambert, Cuneiform texts of the Metropolitan Museum of Arts, p. XVII; Lambert, Ancestors, Authors and Canonicity, p. 13).
  4. Maier é enfático: "Nessa longa, em sua maior parte anônima tradição [sobre Gilgámesh], faz sentido dizer que encontramos um autor? Minha resposta é sim” (Maier, Gilgamesh: anonymus tradition and authorial value, p. 87-88). Também conforme George, The Epic of Gilgamesh: thoughts on genre and meaning, não seria errôneo dizer que Sîn-lēqi-unninni é de fato “escritor”. Ao contrário da maioria dos comentadores, Tigay considera que Sîn-lēqi-unninni seria o autor da chamada versão babilônica antiga, em que se processa a “importante reviravolta” na tradição escrita do poema, ou seja, o tratamento grandioso da saga de Gilgámesh, centrado na questão da mortalidade do homem (cf. Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 12). De fato, pelo pouco que conhecemos dessa versão, é nela que pela primeira vez a saga ganha uma trama concatenada. O mesmo Tigay reconhece, contudo, que a versão clássica dá um outro passo importante: deslocar a grandeza de Gilgámesh dos feitos para a aquisição de conhecimento, incluindo a questão da morte como lote inelutável do homem (para um resumo das características da versão clássica, Tigay, The evolution, p. 109)
  5. Minha opção em verter naqbu por ‘abismo’ leva em conta as razões apresentadas por Silva Castillo (Nagbu, p. 219-221 e La estructura literaria como guía para la traducción). Para a tradução do segundo hemistíquio (išdi mati) como “o fundamento da terra”, baseio-me também em Silva Castillo (Išdi mati, The fondations of the Earth). Considerando que naqbu é “não só o ‘abismo de águas’, mas também a ‘fonte’ de sabedoria onde Ea habita no Abzu” (Apsû), Leeuwen anota que o termo “refere-se não só ao abismo de águas que Gilgámesh sonda, mas também à sabedoria que ele adquire por meio de sua investigação” (Leeuwen, Cosmos, temple, house, p. 73).
  6. A poesia semítica, incluindo a escrita em acádio, não tem métrica fixa nem usa de rima. O ritmo decorre de o verso, em geral, supor uma divisão em duas partes, marcada tanto em termos de fala quanto de sentido, como em ša naqba imuru / išdi mati (“Ele o abismo viu/ o fundamento da terra”). Exploram-se também muitos recursos paralelísticos, incluindo assonâncias e repetição de palavras, de versos ou mesmo de cenas. Esses efeitos foram buscados na tradução. Os locais marcados com ---- indicam pontos em que o texto cuneiforme inscrito nas tabuinhas de argila se encontra danificado, impossibilitando a leitura. Observe-se que em alguns lugares (como em 2, 97) é o próprio escriba que anota “texto quebrado”, ou seja, o manuscrito que lhe serviu de base para produzir sua cópia já se encontrava corrompido na própria Antiguidade.