Página:Eneida Brazileira.djvu/104

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a roer as proprias mesas. Mr. Tissot reprova que elles tremam diante de um prodigio, e affirma que os oraculos de Celeno contrabalançam as palavras de Jupiter; tendo por contrário aos costumes heroicos aquelle tremor, e por contradicção o que prophetiza a Harpya. Quanto aos costumes heroicos, sohem combinar-se com a superstição e com o horror do que se nos figura sobrenatural; e, para uma empresa merecer o nome de heroica, não he preciso que todos os que entram nella sejam desabusados, e não tremam á vista de um prodigio: os soldados e homens de chusma que, ao commando de chefes corajosos, tem concorrido para os feitos estrondosos, batiam-se valentes, e tinham pavor de visões e do que lhes parecia portentoso: Virgilio prometteu cantar uma acção grande, mas não prometteu apresentar em cada Troiano um espirito forte. Wieland, no seu imaginoso poema Oberon, representa em Scherasmin um soldado velho prompto a bater-se com dous ou tres homens, tendo comtudo um medo indizivel de trasgos e visões: isto he o que se vê commumente, e não exercitos de philosophos. A' cêrca da decantada contradicção, direi que Celeno em nada contrabalança nem discrepa das palavras de Jupiter: Jupiter affirma a Venus que Enéas tem de estabelecer-se no Lacio, e a raínha das Harpyas o confirma deste modo: «A Italia demandais, á Italia os fados Com viração galerna ir vos concede; Mas, antesque mureis o assento vosso, Desta matança em pena ha de obrigar-vos Crua fome a roer as proprias mesas.» Ora, só uma cega preoccupação pode achar que estas palavras contrabalançam e não confirmam as de Jupiter. O ridiculo que descobrem alguns nesta fábula, vem de que certos criticos, presumidos de philosophos, julgam os antigos pelas idéas modernas; sem se lembrarem que esta era uma tradição historica, e que o poeta, procurando na Eneida ajuntar as tradições relativas á fundação de Roma, não a devera omittir: do mesmo modo que um historiador que tratar da sagração dos reis de França em Reims, tem de fallar da santa ambula milagrosa, como bem adverte Voltaire, que não foi dos mais credeiros.

268-288. — 278-300. — Na derrota para Italia, passaram os Troianos por Zacynthos, Dulichio, Samos, Neritos e Ithaca, e descobriram os cumes de Leucate, onde foram refrescar, por não o terem podido fazer nas Strophades, nem querido aportar nas ilhas pertencentes a Ulysses; alêm de que, tendo Anchises feito um voto, em Leucate o podia elle pagar a Apollo, e celebrar ao mesmo tempo o lustro a Jupiter. O lustramur Jovi tómo no sentido em que o tomou o meu fallecido amigo Barreto Fêo, a cuja obra remetto o leitor; bem como para a explicação do magnum annum, que elle julga ser o quinto ou o último do lustro que decorrera, desde que Enéas deixou Troia até abordar a Leucate. Repare-se na arte com que Virgilio traz alli Enéas para celebrar jogos no promontorio