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Página:Eu (Augusto dos Anjos, 1912).djvu/28

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Ninguem comprehendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas bréchas,
O vento bravo me atirava fléchas
E applicações hyemaes de gelo russo,

A vingança dos mundos astrónomicos
Enviava á terra extraordinaria faca,
Posta em rija adhesão de gomma lacca
Sobre os meus elementos anatómicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessára por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num nucleo de substancias abrazantes.

E’ bem possivel que eu um dia cégue.
No ardor desta lethal tórrida zona,
A côr do sangue é a côr que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão chromática me abate.
Não sei porque me vêm sempre á lembrança
O estomago esfaqueado de uma creança
E um pedaço de viscera escarláte.

Quizéra qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memoria.