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Meu coração, no mundo incompreendido,
Foi um incendio trágico de amôr!
Eu fui sómente espirito, e jámais
Dei pela vida mísera do corpo...
Pedras e nuvens, plantas e animaes
São fumarada leve d'um incendio
Espiritual, eterno, universal,
Que a cinza fria e morta reduziu
Meu sêr tão belo, outrora, e virginal
Que florescia a terra que trilhava.
Hoje sou terra morta, sem florir...
Desencantada Imagem que perdeu
O divino segredo de vestir
As cousas com a sua comoção...»


E Marános, mais triste e pensativo,
Continuou a falar, dizendo assim:
(Arde em chamas o fogo alegre e vivo;
Geme, lá fóra, o vento e a chuva cae...)


«O espirito criado que abandona
A carne criadora, é egual ao côrvo
Que Noé soltou no ar, quando o Diluvio
Tumultuoso baixava, imenso e tôrvo...
E ao vêrmos nosso espirito perdido
No chimerico ceu a que aspiramos,
Sentimos com tristeza e dôr amarga,
A solidão gelada em que ficamos!
E o nosso corpo exclama, como Christo:
—Meu Pae! meu Pae! porque me abandonaste!?
Eu sei da tua dôr, ó Cavaleiro!

A dôr da Perfeição que tu sonhaste!