Página:Memorias de um sargento de milicias.djvu/245

Wikisource, a biblioteca livre

— Filha de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de mantilha?...

— Eu cá sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha...

Foram todos reunindo-se em roda de Vidinha, surpreendidos por aquela resolução.

O Leonardo estava sentado, ou antes encolhido a seu canto, quedo e silencioso.

— Quero a sua mantilha, minha mãe; quero, e quero...

— Mas para onde ides, rapariga?... Ora, meu Deus!... isso foi coisa que vos fizeram...

— Quero ir à ucharia...

— Jesus!...

— Quero ir... que me importa que seja a casa do rei?... Hei de ir... hei de procurar o tal toma-largura... quero fazer-lhe cá duas perguntas... e, ou o Menino Jesus não é filho da Virgem, ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa.

— Que loucura, rapariga... que desatino!...

Os dois primos riam-se interiormente do que se estava passando.

Não há coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece. Tudo quanto em Vidinha havia de requebro, de languidez, de voluptuosidade tinha desaparecido; estava feia, e até repugnante.

Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter.

O Leonardo viu que o caso estava malparado, e tendo estado até então calado, decidiu-se também a pedir a Vidinha que não saísse. Foi, como se costuma dizer, pior a emenda que o soneto.