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Inda a névoa tolda o rio,
O sol ja vem a rasgar,
Pela incosta do castello
Vai um romeiro a cantar:

— «Sanctiago de Galliza,
Longe fica o vosso altar:
Peregrino que la chegue
Não sabe se hade voltar.»

Na incosta do castello
Uma fonte está a manar;
Donzella que está na fonte
Poz-se o romeiro a escutar.

A donzella está na fonte,
A jarra cheia a deitar:
— «Bemditto sejais, romeiro,
E o vosso doce cantar!

«Por éstas terras de moiros
É maravilha de azar,
Ouvir cantigas tão sanctas
Cantigas do meu criar.

«Sette padres as cantavam
Á roda de um bento altar;
Outros sette respondiam
No côro do salmear,
Entre véspera e completas;
E os sinos a repicar.

«Ai triste da minha vida
Que os não oiço ja tocar!
E as rezas d'estes moiros
Ao demo as quizera eu dar.»

— «Deus vos mantenha, donzella,
E o vosso cortez fallar:
Por éstas terras de moiros
Quem tal soubera de achar!

«Por vossa tenção, donzella,
Uma reza heide rezar
Aqui ao-pé d'esta fonte,
Que não posso mais andar.

«Oh! que fresca está a fonte,
Oh! que sêde de matar!
Que Deus vos salve, donzella,
Se aqui me deixais sentar.»

— «Sente-se o bom do romeiro,
Assente-se a descansar.
Fresca é a fonte, doce a agua,
Tem virtude singular:

«D'outra não bebe a rainha
Que aqui m'a manda buscar
Por manhanzinha bem cedo
Antes de o sol aquentar.»

— «Doce agua deve de ser,
De virtude singular:
Dae-me vós uma vez d'ella
Que me quero consolar.»

— «Beba o peregrino, beba
Por esta fonte real,
Cântara de prata virgem,
Tem mais valor que oiro tal.»

— «Dona Gaia que diria,
Que faria Alboazar
Se visse o pobre romeiro
Beber da fonte real?..»

— «Inda era noite fechada
Meu senhor foi a caçar:
Maus javardos o detenham,
Que é bem ruim de aturar!

«Minha senhora, coitada,
Essa não tem que fallar:
Quem ja teve fontes de oiro
Prata não sabe zelar.»

— «Pois um recado, donzella,
Agora lhe heisde levar;
Que o romeiro christão
Lhe deseja de fallar