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BERENICE
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Berenice; na singular e horrorosa alteração da sua identidade pessoal.

Nunca amára minha prima nos seus dias mais brilhantes de belleza incomparavel; mesmo porque, na estranha anomalia da minha existencia, os sentimentos me vinham mais do espirito que do coração. Muitas vezes, através das nuvens do crepusculo, e ao meio-dia, por entre as sombras da floresta; ou de noite, na minha bibliotecha, vendo-a passar deante de mim, contemplava-a; não como a Berenice viva e palpavel, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser terrestre, carnal, mas como abstracção da realidade; não como uma creatura para admirar, mas como uma cousa para analysar; não como um objecto de amor, mas como thema de uma meditação tão obscura como irregular. E agora, tremia na sua presença, empallidecia á sua approximação. Comtudo, lamentando amargamente a sua deploravel decadencia, lembrei-me de que me amára durante muito tempo, e uma vez falei-lhe de casamento.

Approximava-se a epocha do nosso noivado. Uma tarde de inverno, calma, ennevoada, intempestivamente quente, assentei-me no gabinete da bibliotheca. Julgava estar só; mas, levantando os olhos, vi Berenice, em pé, deante de mim.

Foi a minha imaginação exaltada, ou à influencia nevoenta da atmosphera, ou o crepusculo incerto do aposento, ou o vestido negro que trajava, que lhe prestou aquella fórma trémula e indifinida? Não sei dizel-o. Ella não proferiu uma palavra; e eu, n'aquelle momento, por cousa nenhuma d'este imundo teria pronunciado uma syllaba. Percorreu-me o corpo um tremor gelido. Sentime opprimido por uma sensação de agonia insupportavel, e a minha alma foi subitamente invadida por uma curiosidade devoradora. Comtudo, fiquei immovel e recosta-