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Ao atambor acode, porque veja
Que quem a Deos ama, he de Deos amado

Assim se lião estes quatro versos na 3.ª edição. Manoel de Faria corrigio:

Oh querido de Deos, por quem peleja
O ar tambem, e o vento socegado!
Ao tambor acode, porque veja
Que o qu’a Deos ama, he de Deos amado.

Mas esta apostrophe, por elle introduzida, não tem aqui lugar; porque o poeta acaba de dizer na Oitava antecedente que quando Albuquerque nas praias da Persia conseguia victoria daquellas nações tão remotas, as settas, que tirava o arco Ormusiano, por milagre de Deos, se viravão no ar, pregando-se nos peitos dos mesmos que as tiravão; e continúa, observando que o querido de Deos que por elle peleja, o mesmo ar e o vento conjurado em seu favor, ao atambor lhe acodem, para que elle veja que o que a Deos ama, he delle amado e favorecido. Este he o sentido natural e obvio. Mas Faria e Sousa, vendo que estes versos erão imitação dest’outros de Claudiano:

O nimium dilecte Deo, cui fundit ab antris
Aeolus armatas hiemes! tibi militat aether,
Et conjurati veniunt ad classica venti.

julgando que o poeta os devia traduzir servilmente, e não accommodá-los ao seu intento, metteo aqui esta exclamação forçada, sem nem ao menos saber a quem ella se refere, porque diz elle mesmo: Yo dudo si esta exclamacion mira al Albuquerque, si al Rey Don Sebastian. E assim estando ja viciado o texto, muito mais o ficou ainda. Nós seguimos a lição antiga, mas como a falta de clareza que nella se encontra, argue vicio de cópia, corrigimos:

O querido de Deos, por quem peleja,
O ar tambem e o vento socegado
Ao atambor lhe acodem, porque veja
Que o que a Deos ama, he de Deos amado.