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SONETOS.


CCII.

Onde mereci eu tal pensamento
Nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co'o vencimento?

Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido;
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.

Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
E pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida;
Que por vós vezes mil a perderei.



CCIII.

De frescas belvederes rodeadas
Estão as puras águas desta fonte;
Formosas Nymphas lhes estão defronte,
A vencer e a matar acostumadas.

Andão contra Cupido levantadas
As suas graças, que não ha quem conte:
D'outro valle esquecidas, d'outro monte,
A vida passão neste socegadas.

O seu poder juntou, sua valia
Amor, ja não soffrendo este desprêzo,
Somente por se ver dellas vingado;

Mas, vendo-as, entendeo que não podia
De ser morto livrar-se, ou de ser prêzo,
E ficou-se com ellas desarmado.