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Página:Obras de Manoel Antonio Alvares de Azevedo v2.djvu/208

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deixaria correr assim. Iago enganaria o Mouro, trairia Cássio, perderia Desdêmona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo. Cássio seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua veneziana com o travesseiro, escondê-la-ia com o cortinado quando entrasse Emília: chamaria sua esposa ― a whore ― e gabar-se-ia de seu feito. O honest, most honest Iago viria ver a sua vítima, Emília soluçando a mostraria ao demônio; o africano delirante, doido de amor, doido de a ter morto, morreria beijando os lábios pálidos da veneziana. Hamlet no cemitério conversaria com os coveiros, ergueria do chão a caveira de Yorick, o truão; Ofélia coroada de flores cantaria insana as balatas obscenas do povo: Laertes apertaria nos braços o cadáver da pobre louca. Orlando no What you will penduraria suas rimas de Rosalinda nos arvoredos dos Cevennes. Isto seria tudo assim.

Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario selvagem, com aquela forma irregular que revela a paixão do sangue. É que as nódoas de sangue quando caem no chão não têm forma geométrica. As agonias da paixão, do desespero e do ciúme ardente quando coam num sangue tropical não se derretem em alexandrinos, não se modulam nas falas banais dessa poesia de convenção que se chama ― conveniências dramáticas.

Mas se eu imaginasse primeiro a minha ideia, se a não escrevesse como um sonâmbulo, ou como falava a Pitonisa convulsa agitando-se na trípode, se pudesse,