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DIFICULDADES DA TEORIA
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as partes, todos os órgãos de tantos seres independentes, criadas, como se supõe, separadamente para ocupar um lugar distinto na natureza, estiveram tão ordinàriamente ligadas umas às outras por uma série de gradações? Porque não teria passado a natureza sucedâneamente de uma conformação para outra? A teoria da selecção natural faz-nos compreender claramente porque não sucede assim; a selecção natural, com efeito, actua apenas aproveitando leves variações sucessivas, não pode pois jamais dar saltos bruscos e consideráveis, só pode avançar por graus insignificantes, lentos e seguros.

ACÇÃO DA SELECÇÃO NATURAL SOBRE OS ÓRGÃOS POUCO IMPORTANTES EM APARÊNCIA

A selecção natural actuando sòmente pela vida e pela morte, pela persistência do mais apto e pela eliminação dos indivíduos menos aperfeiçoados, experimentei algumas vezes grandes dificuldades para me explicar a origem ou a formação de partes pouco importantes; as dificuldades são tão grandes, neste caso, como quando se trata dos órgãos mais perfeitos e mais complexos, porém são de uma natureza diferente.

Em primeiro lugar, a nossa ignorância é tão grande relativamente ao conjunto da economia orgânica de um ser qualquer, para que possamos dizer quais são as modificações importantes e quais as modificações sem valor. Num capítulo precedente, indiquei alguns caracteres insignificantes, tais como a lanugem dos frutos ou a cor do pericarpo, a cor da pele e dos pêlos dos quadrúpedes, sobre os quais, em razão da sua relação com as diferenças constitucionais, ou em razão de determinarem os ataques de certos insectos, a selecção natural pôde certamente exercer qualquer acção. A cauda da girafa assemelha-se a um caça-moscas artificial; parece então inacreditável que este órgão pudesse ser adaptado ao uso actual por uma série de ligeiras modificações que seriam melhor apropriadas a um fim tão insignificante como o de caçar moscas. Devemos reflectir, contudo, antes de qualquer afirmação positiva mesmo neste caso, porque sabemos que a existência e a distribuição do gado silvestre e de outros animais na América meridional dependem absolutamente da sua aptidão para resistir aos ataques dos insectos; de maneira que os indivíduos que têm meios de se defender destes pequenos inimigos podem ocupar novas pastagens e assegurar-se assim de grandes proveitos. Não é porque, com raras excepções, os grandes mamíferos possam ser realmente destruí-