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ORIGEM DAS ESPÉCIES

dentes que não perfuram jamais a gengiva da maxila superior. Ora, podemos admitir que os dentes desapareceram no animal adulto devido à falta de uso, tendo a selecção natural adaptado admirávelmente a lingua a abobada do palatino e os lábios a pastar sem a ajuda dos dentes, enquanto que, na vitela, os dentes não têm sido afectados, e, em virtude do princípio de hereditariedade em idade correspondente, se têm transmitido desde uma remota época até nossos dias. No ponto de vista da criação independente de cada ser organizado e de cada órgão especial, como explicar a existência de todos estes órgãos tendo o cunho mais evidente da mais completa inutilidade, tais como os dentes na vaca no estado embrionário, ou as asas com dobras que cobrem, num grande número de coleópteros, os élitros soldados? Pode dizer-se que a natureza se esforça por nos revelar, por meio dos órgãos rudimentares, bem como pelas conformações embrionárias e homólogas, o seu plano de modificações, que nos recusamos obstinadamente a compreender.


Acabo de recapitular os factos e as considerações que profundamente me convenceram de que, durante uma longa série de gerações, as espécies se modificaram.

Estas modificações efectuaram-se principalmente pela selecção natural de numerosas variações ligeiras e vantajosas; em seguida, os efeitos hereditários do uso e não uso das partes prestaram um poderoso concurso a esta selecção; enfim, a acção directa das condições do meio e as variações que, em nossa ignorância, nos parecem surgir espontâneamente, têm gozado também um papel, menos importante, é verdade, pela sua influência sobre as conformações de adaptação no passado e no presente. Parece que não tenho, nas precedentes edições desta obra, concedido um papel assaz importante à frequência e ao valor destas últimas formas de variação, não lhes atribuindo modificações permanentes de conformação, independentemente da acção da selecção natural. Mas, desde que as minhas conclusões têm sido, recentemente, fortemente desnaturadas, e desde que se tem afirmado que atribuo as modificações das espécies exclusivamente à selecção natural, permitir-se-me-a, sem dúvida, fazer notar que, na primeira edição desta obra, assim como nas edições subsequentes, sempre reproduzi numa posição bem evidente, isto é, no fim da introdução, a frase seguinte: «Estou convencido que a selecção natural tem sido o agente principal das modificações, mas jamais o foi exclusivamente só». Isto foi em vão, tão grande é o poder de uma cons-