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ORIGEM DAS ESPÉCIES

último ponto merecerá bem mais alta consideração da que hoje merece, porque diferenças, por ligeiras que sejam, entre duas formas quaisquer que não ligam algum grau intermédio, são actualmente tidas pelos naturalistas como suficientes para justificar a sua distinção específica.

Seremos, mais tarde, obrigados a reconhecer que a única distinção a estabelecer entre as espécies e as variedades bem caracterizadas consiste somente em que se sabe ou se supõe que estas últimas estão actualmente ligadas entre si por gradações intermédias, enquanto que as espécies deviam tê-lo sido outrora. Por conseguinte, sem deixar de tomar em consideração a existência presente de graus intermédios entre duas formas quaisquer, seremos levados a pesar com mais cuidado a extensão real das diferenças que as separam, e atribuir-lhes um maior valor. É muito possível que formas, hoje reconhecidas como simples variedades, sejam mais tarde julgadas dignas de um nome especifico; nesse caso, a linguagem científica e a linguagem ordinária encontram-se de acordo. Em breve, teremos de tratar a espécie da mesma maneira como os naturalistas tratam actualmente os géneros, isto é, como simples combinações artificais, inventadas para maior comodidade. Esta perspectiva não é talvez consoladora, mas desembaraçar-nos-emos, pelo menos, de pesquisas inúteis às quais dá lugar a explicação absoluta, ainda não encontrada e incontrável, do termo espécie.

Os outros ramos mais gerais da história natural adquirirão ainda mais interesse. Os termos: afinidade, parentesco, comunhão, tipo, paternidade, morfologia, caracteres de adaptação, órgãos rudimentares e atrofiados, etc., que empregam os naturalistas, cessarão de ser metáforas e tomarão um sentido absoluto. Quando não olharmos para um ser organizado como um selvagem olha para um navio, isto é, como qualquer coisa que a nossa inteligência não alcança; quando virmos em toda a produção um organismo de que a história é muito antiga; quando considerarmos cada conformação e cada instinto complicados como o resumo de um conjunto de combinações todas vantajosas ao seu possuidor, da mesma maneira que toda a grande invenção mecânica é a resultante do trabalho, da experiência, da razão, e mesmo erros de um grande número de obreiros; quando espreitarmos o ser organizado neste ponto de vista, quanto, e falo por experiência própria, não ganhará em interesse o estudo da história natural!

Um vasto campo de estudos e apenas trilhado será aberto sobre as causas e leis da variabilidade, sobre a correlação, sobre os efeitos do uso e não uso, sobre a acção directa das condições