Página:Ultimas Paginas (Eça de Queirós, 1912).djvu/302

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vezes lhe atiravam pedras ou lama. Ele parava, sorrindo, a receber aqueles ultrajes como carícias.

Uma noite que Onofre orava, sob as árvores do canal, passou sobre a cidade, no céu, de oriente para ocidente, uma grande tocha fumarenta. As sentinelas, sobre as muralhas, soltavam sons de buzina, como num alarme: e nos terraços das casas surgiam figuras espantadas, que batiam desesperadamente na face, para conjurar o presságio.

Logo no outro dia, rompeu um incêndio no bairro remoto e miserável, onde viviam os embalsamadores de cadáveres – e em breve foi por todo o casario, até ao templo de Hermes, uma imensa labareda. Onofre correu para as chamas com a multidão que acudia, no terror de que fossem consumidos os corpos de parentes, de amigos, confiados aos embalsamadores.

Já uma fila de escravos, de cidadãos, misturados, se formara pela rua até aos canais, para o carreto da água. Onofre, repelindo o balde de couro, que soldados distribuíam, penetrou nas chamas, onde os gritos eram mais dolorosos. Em breve reapareceu logo, com fagulhas no pêlo da túnica, trazendo um velho às costas: – e remergulhou seis vezes no braseiro tumultuoso, trazendo através das traves abrasadas, dos tectos que abatiam, crianças, uma mulher aleijada, outro velho, até mesmo um