Página:Ultimas Paginas (Eça de Queirós, 1912).djvu/421

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tão necessária como a luz: – e se testemunhava uma injustiça, sofria, como se um guante alheio lhe tivesse batido a face, sentindo-se ofendido na ofensa que via fazer aos outros. Adorava a Verdade, logo abaixo da Virgem Maria: – e todo o olhar que não fosse franco, toda a palavra que não fosse livre, lhe davam o horror de uma coisa suja.

Queria que todos os solarengos lhe falassem sem submissão: – e, amando todos os homens como iguais, a servidão parecia-lhe uma ofensa ao seu amor.

Assim o Senhor D. Gil era, nesses anos ainda curtos, uma das almas melhores da cristandade.

Um dia, tendo despertado com o cantar das calhandras, e sentindo a alma mais triste, partiu só, com um grande lebréu, e levado pelos seus pensamentos, foi dar ao alto de uma colina, que era a mais alta naqueles sítios, e se chamava a serra do Bruxo. Dali via, mais baixas, a vasta colina onde negrejava o seu solar, a aldeia de Gonfalim, espalhada entre a verdura, o branco Convento dos Beneditinos, o rio, luzindo entre as margens altas, e a ondulação dos cabeços, até ao extremo azul: – e de pé, envolto no vento largo que soprava, Gil começou a considerar quanto era estreito aquele horizonte, e quanto seria impossível, na verdade, que dentro dele se realizassem sonhos que abrangiam o mundo todo.