Paginas Timidas/Capítulo 2

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Pelo Sertão
(SCENAS E COSTUMES)
A MEU PAE

« Arriba, aqui,
Olá da canôa!
Larga o giqui[1]
Não me deix'atôa...
Eh ! lê... oh ! lá... eh ! lô... »

« Vira de banda
Qui' evem a piranha :
O'ia lá se não anda,
Pr'u casa de manha...
« Ai! oi...ai! oi...ai!»



« Longe já vae meu amor...
Quero ir pr'u rio afóra,
Chorando esta minha dor!
Ai! qui'a canôa foi s'imbóra... »
Eh! lêrê... aué...lêró... »

E, ternamante, cheia de modulações saudosas, esmorece na garganta afinada do sertanejo a voz entristecida e abarytonada, que vem de cantar as coplas acima escriptas, emquanto de manso voga, aguas além, ao impulso vigoroso da corrente, a canôa atulhada de gente e cargas.

E quem ouve, á margem do S. Francisco, esta e outras canções singellas e encantadoras, soltas ruidosamente, daquelles robustos pulmões de remadores, e que se perdem ao longe, de envolta com os sopros perfumades dos silvedos ribeirinhos — jámais as poderá esquecer.

Com que dulcissimas tonalidades musicaes por lá se cantam essas modinhas, tão ternas e tão saudosas ao mésmo tempo, só o conseguirá dizer aquelle que já tenha convivido, demoradamente, com o valente e fiel povo do sertão.

Principalmente nas proximidades dos pontos limitrophes dos dous Estados, bem longe, quando a correnteza do S. Francisco, em espumarentas impetuosidades, banha de commum a terra das Minas e o solo de Paraguassú ; quando as fortissimas gavinhas dos cipoaes, brotados nas ribanceiras do rio, amarram e seguram, em natural amplexo de paz e estima, as franças dos arvoredos nascidos no ultimo pedaço de dominio mineiro, ás ramagens vicejantes da mattaria esparsa pelos primeiros terrenos do sul bahiano : — é que então se confundem as tendencias poeticas do sertanejo de cá e do de lá, que se emprestam mutuamente as habilidades de talento e imaginação, para com mais graça e sabor se inspirarem na creação daquelle suave canto, de um rythmo amollecido e sonoro, de uma quente vibração tropical.


O bateleiro do sertão, quer esteja na faina do leme das grandes barcas fluviaes de longo curso, quer se ache de costas núas, largo chapeo de palha ou burity á cabeça, viola ao lado e comprido cigarro de fumo virgem preso ao canto direito da bocca, fazendo mansamente deslizar na caudal a sua leve canôa — a bordo da qual são imprescindiveis o cuité de sal, o garrafão de cachaça e o canudo da rubra giquitaia[2], para o fabrico da saborosa moqueca, que, além do mais, exige peixe excellente e fresco, e tem de ser comida por entre frequentes libações do aperitivo e liquido producto da canna — não se dispensa da obrigação de saudar o sol que nasce, que culmina e que morre.

Pela manhã, ao meio dia e pela tarde não é raro encontrar, dispersas pelo rio, canõas tripoladas por um e mais homens, os quaes fazem ouvir de seus largos peitos os sons harmoniosissimos das cantarolas sertanejas, vibradas á distancia pelas conductoras ondas daquelle amplissimo e luminoso lençol de aguas.

E' o habito tradicional do filho dos tropicos : amar a luz, nas esplendencias bemfazejas do astro, cujo surgir e occaso elle canta na sonora lyra ingenua do seu fogoso e poetico temperamento.


A Lapa! — eis um ponto de mira e ultimo da directriz porque se guiam os olhos crentes do sertanejo, quando, atacado por alguma molestia, ou sob a imminencia de um grande mal, invoca a protecção do Senhor Bom Jesus da Lapa, lá na sua imponente egreja levantada no seio liquido do S. Francisco, em aguas bahianas.

A Lapa é a Mecca do mineiro nortista e do bahiano meridional.

Uma romaria ao famoso templo, a respeito do qual factos tão extraordinarios se contam, é o ardente desejo de ambos.

E quando não lhes é permittido irem cumprir o voto feito á santa imagem do Salvador, lançam mão do expediente de confiar ás calmas e velozes correntes do giganteo rio o objecto promettido, em instante de acerba afilicção.

Assim não é difficil a quem navega, vindo para O Guaicuhy, que é o porto onde se realiza a confluencia do Rio das Velhas com o magestoso Volga Brazileiro, ou indo mesmo da cachoeira do Pirapóra, procurando, rio abaixo, os portos da Manga, Angicos, Januaria e outros — distinguir pequenas batêas ovaes ou gamellas, impellidas desde longe pela agua, e levando dentro offerendas simuladas em cêra, que têm de ser recolhidas no sanctuario da Lapa.

A fé ardente e christan do sertanejo é tal, que, ao vêr no marulho cavo de um remanso, retida a promessa ou « milagre de cera », elle diz que o Bom Jesus da Lapa desse modo evita a submersão do precioso objecto, nalguma cataracta fluvial ou em aspera guinada das ondas espumosas...


Pelas compridas chapadas do sertão, em dadas estações do anno, caravanas numerosas de romeiros e negociantes se dirigem em demanda dos portos do baixo S. Francisco, onde se separam, indo uns dar cabo á inviolavel peregrinação religiosa que encetaram, sob mil atribulações e sacrificios varios, emquanto outros vão guiados pelo interesse mercantil de suas feiras e grossas vendas, em caminho dos logares onde melhor consumo encontram os generos e rebanhos que conduzem.

Penosissimas são essas viagens atravez dos extensos e deshabitados chapadões, desprovidos de mananciaes, em que se possem desalterar os magros e esguios cavallos sertanejos, tão valentes para as constantes jornadas de doze e quatorze leguas, de sola sol, quão atilados para descobrirem no uniforme oceano verde-escuro dos hispidos capinzaes rasteiros do sertão, os trilhos confusos e enganadores, que pertencem á via real entre as distantes povoações.

Pela noite alta, quando por sob o vasto ceu immovel da canicula abrazadora, já os caminhos forrados de uma areia fina e escorregadia, perderam o ardor causticante, devido ao frigido borrifo de orvalho que nelles cahiu, é que se desarmam as leves barracas de descorado e ardido panno, levantadas em pleno campo pelos viajantes, que acham então propicia a hora para se transpôr a amplidão das distancias no sertão.

Tudo arreado, alceado, carregado e disposto para a marcha, reenceta a caravana a jornada, visando além, nas dobras de uma lombada de morro, a muitas leguas do ponto da precedente pousada ao relento, novo descampado, menos exposto á rijeza das frias nortadas, e conveniente ao descanço dos fatigados ginetes, de cujas ventas sahem continuos e humidos resfôlegos para o ar morno e quieto, denunciadores de grande cansaço.

Ahi, deitados por cima dos macios baixeiros[3] e couros extendidos na relva, repousam ligeiramente os da tropa, emquanto ao lado crepitam os tições de um fogo para o preparo da matutina refeição, frugal e nutritiva, com o soccorro da qual o estomago daquelles fortes sertanejos vae aguentar a penuria de alimento durante a longa marcha do dia seguinte.


Ao longo do baixo esteiro fluvial vê-se a agua rispidamente aljofarada pela força da quilha do vapor, que vem arfando, com o ronco cavernoso de seus pulmões de aço, atravez do denso nevoeiro que cobre o grande rio mineiro de origem.

De quinzena em quinzena, pequenos navios mercantes ancoram nos commodos portos das importantes e bellas cidades norte-mineiras de Januaria e S. Francisco, e de outros logares, como S. Romão, Manga, Pindahybas, ao sul, e Jacaré, Manga do Amador, que são estações fluviaes ao norte de Januaria, já na parte mineira confinante com o municipio bahiano de Carinhanha.

E essa carreira de franca navegação intero-fluvial, é feita por optimos e modernos vapores, que trazem áquella região a promessa risonha do estreitamento crescente das complexas relações commerciaes, economicas e amistosas, que ligam os centros populosos e de maior vida activa do septentrião de Minas Geraes, ao torrão generoso e bravo, onde se feriram as campanhas patrioticas de Pirajá, e de tantos outros reductos de glorias para a historia nacional, nos tempos heroicos e calamitosos da independencia da Patria.

Oxalà que não tardios venham os tempos do mais completo progresso para essa larga faixa do territorio brazileiro, que abrange riquissimo pedaço de Minas e uma das mais opulentas zonas da Bahia—a velha metropole da civilisação em Santa Cruz !

Lá, bem longe, em dominios do ultimo municipio mineiro[4] pelas bandas boreaes, correm as apoucadas aguas do rio Verde Pequeno, banhando os districtos de Lenções e Cachoeirinha, pelos quaes se limita este Estado com a comarca de Monte Alto, no solo natal de Cayrú e de Rio Branco...

Augmente, pois, é se avigore com a mutua estima e lealdade de tracto, essa ligação natural, que transmitte, atravez da corrente inevitavel das relações inter-estadoaes dos dous povos irmãos, os seus habitos e tendencias communs, as suas crenças e praticas ethnologicamente radicadas.

1894.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O giqui é um balaio de fórma funicular, tecido com taquara e que se deita á agua com uma bóia, ou preso á margem do rio por uma corda, afim de pegar pequenos peixes.
  2. Pimenta malagueta secca ao sol, depois de bem madura, e reduzida a pó, para ser melhor conservada.
  3. O baixeiro é a manta inferior, de algodão grosseiramente tecida, que se põe no dorso peltudo dos animaes de montaria, sob o sellim.
  4. E' o municipio de Boa Vista do Tremedal.— Tirando-se uma linha curva de N. O. para S. E., acompanhando as ligações e aspecto naturaes do solo mineiro, vê-se que o territorio dos actuaes municipios do Rio Pardo, Santo Antonio de Salinas, Arassuahy (antigo Calháu) e Philadelphia (hoje baptisada cora o nome illustre de Theophilo Ottoni), defronta justamente com as circumscripções municipaes do Caeteté, Santo Antonio da Barra, Victoria da Conquista, Condeúba, Belmonte, Villa Verde e Caravellas, que pertencem ao prospero Estado da Bahia.