Paisagem (Cruz e Sousa)

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Na colina da vila trepada no alto agrupam-se as casarias. Há sol. E na frente das casas caiadas de branco a luz vibra nervosamente, fazendo tremer a vista sob a crua irradiação da soalheira, como sob os flamantes bicos vertiginosos do gás da ribalta; enquanto que nas casas pintadas de amarelo e de vermelho quebra-se a forte intensidade da luz.

Nestas ubérrimas regiões agricultáveis, de loiras messes de produto, amanha-se a terra para a plantação da cana, da mandioca e do milho — do milho que nasce e cresce as com suas folhas compridas, flexíveis e largas como lustrosas, acetinadas fitas verdes.

E vê-se agora, na grande extensão do campo, entre a verdura fremente de sol, a gente da lavoura, aplicada ao arado, ao alvião e à enxada, — homens, mulheres e crianças, com os trajes da labuta, trabalhando e cantando queixas passadas que ecoam no ar tranqüilo, emprestando a essas paragens o pinturesco tom da vida de um desenho quente e colorido de leque chinês.

Mais abaixo da roça, além de uma estreita ponte de pau a pique, que se atravessa a um de fundo, está o mar, fulgurante, profundamente calmo e liso, espelhando o céu, e cortado, às vezes docemente por canoas a vela e a remo de voga que seguem para o mar grosso, ou por canoas a remo de pá que vão e voltam da pesca, cheias de peixe fresco que salta dentro, prateado e luzente, ainda vivo, com olhos vidrados de madrepérola, as guelras rubras e as barbatanas membranosas palpitando , no último anseio de se moverem na água.

Ao lado direito da lavoura estão os engenhos de açúcar, de farinha e de arroz, com seu ar rústico, emadeirados de novo, no aspecto simples dessa vida rude de trabalho nos campos.

Ao lado esquerdo há uma vasta eira de sólida argamassa de cimento romano, mandada fazer pelo proprietário desses terrenos campestres e férteis, na qual se põe a secar , se debulham e limpam os cereais, pelo tempo das eiras, no outono, e onde os pequenos lavradores daqueles arredores brincam o Tempo Será, de cabeça nua ao fresco dos luares serenos que espalham grandes silêncios soturnos e misteriosos nas brancas estradas dos sítios.

Quem anda por ali, nas estações primaveris goza do panorama ridente da vila, refrescado de auras leves e puras, que vêm do mar; da resina que exalam as árvores à noite, salubrizando a atmosfera e dando às verdejantes campinas a frescura e a nitidez de uma gouache encantadora.

E, quem for artista, e quiser percorrer ao longo da costa, até a uma gruta de pedras brancas, que ali há, formando um vulto agachado ou ao longo da paisagem toda, nos descampados; ou ao comprido dos atalhos marginados de ervas agrestes e tufos de espinheiros abrindo em flor, ou ao direito do chão claro, arenoso e úmido das praias, há de sentir as mais pitorescas e vivas comoções da Natureza.

De manha, o gado que desce os vales, lento e dócil, aspirando a temperatura azotada, seguido pelo tropeiro que canta alegre no seu cavalo; os leiteiros, que vêm de longe, que passam para a cidade com o leite dentro de latas bojudas colocadas em paus que eles atravessam no ombro direito; as graciosas raparigas da roça, que levam a apascentar o rebanho das cabras monteses que saltam barrancos e carcavões, alígeras, lépidas, com os seus pequenos chifres pontudos,a Mefistófeles; os carros de boi, que chiam devagar, morosamente, na poesia de seu campestre ritmo simpático, atulhados de lenha e de cana rosa e guiados pelo campônio que vai na frente, munido de vara-pau, rosto grave e sóbrio, governando os benignos animais com a velha técnica arrastada e tremida na aspereza da voz — abençoada técnica que já vem lá dos seus antepassados e que os seus queridos filhos e netos, depois, mais tarde, quando ele fechar os olhos, terão de a recebe também, intacta sempre a mesma, saturada do íntimo perfume intenso do passado, como uma herança eterna.

À tarde, o gado que volta para abeberar-se, de arejar no campo, ao suave ocaso do dia, quando tintas multicores se esbatem no fundo dos espaços côncavos; os leiteiros que voltam com a féria arranjada, pitando, ou, de cigarro atrás da orelha, assobiando meigas cantigas que aprenderam na infância e que se fundem à melancólica, à dolência da loira luz que morre — quando, do cimo da encosta, após a última badalada saudosa do Ângelus, apagam-se os esboços e os contornos dos horizontes, caindo então sobre a terra a neblina cinzenta docrepúsculo...