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Paquita; poema em XVI cantos/Canto 1

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PAQUITA



CANTO PRIMEIRO



irgem d'olhos azues, pallida e triste,
Se esta palavra—adeus—banhada em pranto
Nalgum lance cruel já proferiste;
Se impia mão te roubou ao doce encanto
Do teu primeiro affecto para sempre,—
Virgem d'olhos azues, ouve este canto.


Hoje creio que a musa caprichosa
Me pretende levar ao sentimento;
Vou seguil-a, e desfira saudosa
Os tons da minha lyra ao som do vento.
O verso não é bom, mas não me occorre
Nenhum outro melhor neste momento.


Se ao ler o meu poema palpitasse
O seio juvenil da formosura;
Se o pranto nos seus olhos borbulhasse...
Não o pranto d'angustia e d'amargura,
Mas aquelle celeste orvalho d'alma,
Que provém d'uma fonte de ventura!...


A proposito agora: sempre o homem
É devéras um ser indefinivel!
As lagrimas que abrazam e consomem,
As que sem dó desprende a mão terrivel
Da dor e do ciume, oh! como as préza
Nos olhos da mulher esse ente horrivel!


Dos poetas então, Deus nos defenda!
Estes vão procurar por amor d'arte
Outra metade d'alma que os comprenda,
E procuram em vão por toda a parte...
Podem ser immortaes cá neste mundo,
Que não hão de encontrar quem os entenda!


Se uma lagrima pois—impio desejo,
Que nos impelle a vel-a desprendida,
Para a seccarmos num fervente beijo!—
Por nossa causa, trémula e sentida
Brilha nos olhos da mulher amada,
Que ineffavel prazer temos na vida!


O egoismo, feição predominante
D'estes santos varões a que eu pertenço,
E tu, leitor, tambem, a cada instante
Apparece brutal, feroz, intenso!
Não se pode conter, resfolga sempre,
Até no meio d'um amor immenso!


É verdade tambem que a formosura
—E perdoem se a faço vingativa—
Tantas vezes se paga com usura
Do custo d'uma lagrima furtiva!...
Tantas vezes, meu Deus! que não sabemos
Se a derrama por fraca ou por altiva!


Porém, seja o que for, sempre encantada
Transparece nos olhos da donzella,
Como orvalho de fresca madrugada
Na mosqueta bravia alva e singela.
Ponto. Começo emfim tomando o fio
Da longa historia, que vai ser narrada.


Paquita era a expressão de quanto ha bello:
Andaluza de lei, alta e morena,
A cintura um annel, negro cabello,
Sorriso tentador, bocca pequena,
E d'essa pallidez com que nos pintam
Os beatos a martyr Philomena.


Pepe, seu primo, o typo mais perfeito
Do elegante hespanhol que póde ver-se:
Alto, engraçado, pallido, bem feito,
Olhar dominador, prompto a bater-se,
A mais leve questão de honra offendida,
Num deelo de morte, peito a peito.


Ora é fácil de ver que entre uma prima,
E um seu primo de quasi a mesma idade,
Sem passar de que o mundo nos intima,
Possa haver uma certa liberdade,
Sobretudo se os dois viveram juntos
Desde a infancia em perfeita intimidade.


Era isto que aos dois acontecia.
Orfãos logo ao entrarem na existencia,
Com os gratos carinhos d'uma tia,
Modelo de virtude e de paciencia,
Da triste situação os compensara
A protectora mão da Providencia.


O doce extremo, a candida amizade,
Que na infancia os prendia, a pouco e pouco
Se converteu, passada certa edade,
Noutro affecto, em amor ardente e louco.
Um dia, emfim, em que ambos conversavam,
Ao pôr do sol, nas horas da saudade,


Pepito balbuciou... Não sei agora
Se disse alguma phrase intelligivel:
É provavel que não; mas sei, leitora,
Que um aperto de mão imperceptivel,
Um longo e meigo olhar, fôra a resposta
Que recebeu da prima encantadora.


«É doce, entrando o lar no fim do dia,
Escutar os latidos impacientes
Que sólta o cão fiel; doce a alegria
Que notâmos nos olhos transparentes
Que esperavam por nós; doce acordarmos
Ao cantico das aves innocentes;


Doce o zumbir da abelha; a voz do infante
Nas primeiras palavras que profere;
A melodia languida e distante
Que das cordas da lyra a mão desfere;
Doce ao avaro a vista do seu oiro;
Doce uma prêsa ao marinheiro errante.


É para nos d'um jubilo profundo
Herdar d'um tio, que por teima infinda
Promettia esperar o fim do mundo;
Porém mais doce do que tndo ainda
É de certo o primeiro amor da vida,
Transpirando d'um seio pudibundo!»


Dil-o o grande poeta. E, na verdade,
Não ha nada no mundo comparavel
Ao que a alma sente quando, em certa idade,
Se volve para nde o rosto affavel
Da primeira mulher que nos promette,
Num sorriso, a ideal felicidade.


Serena como a face da virtude,
Alegre como o sol da madrugada,
Suave como a nota do alaúde,
Risonha como a aurora perfumada,
Era a vida dos dois, e é quasi sempre
A nossa, ao despontar da juventude.


Dura pouco! O destino, em certo dia,
Chega, fere, destroe com mão terrivel
As chimeras da leve fantasia!
E como um d'estes golpes é sensivel,
Quando virgem ainda se alimenta
O coração dos sonhos da poesia!


Dona Eugenia era nobre, rica, e franca;
A seu tempo julgara conveniente
Que o sobrinho estudasse em Salamanca.
Julgando elle o contrario exactamente,
Cuidou morrer á idéa de ausentar-se
D'essa que amava com affecto ardente.


Inda qiuz seduzir a tia amavel,
Prompta sempre a ceder aos seus desejos;
Oh! porém d'essa vez—caso notavel!—
Nem os rogos, o pranto, os ternos beijos
Do travesso andaluz, foram capazes
De abalar a sentença incontrastavel!


Na mesma noite da fatal partida
Ambos, sós, se encontraram á janella:
Paca triste, calada, e compungida;
Elle morto de dor ao lado d'ella.
Nisto a lua assomou pelo horisonte,
Num raro veo de nuvens envolvida.


Como a lua, meu Deus, é tentadora,
Quando serena os campos alumia!
Já Byron fez notar que uma só hora
Da sua doce luz nos impellia
A commetter mais centos de peccados
Do que, na estiva quadra, um longo dia!


O silencio entre os dois era profundo.
Mas Pepito por fim disse a Paquita
O que diz em taes casos todo o mundo;
Por exemplo:—«Que noite tão bonita!»—
Isto pondo a tremer a mão no peito,
E abafando um suspiro ancioso e fundo.


Deus não quiz conceder-nos o talento
Que possue a mulher; nós não achâmos
Uma phrase sequer em tal momento!
Será porque talvez mais adorâmos,
E debalde a expressão do que sentimos
Exprimir em palavras procurâmos?


Sou de voto que não; porque a verdade
É que affecto ideal, nobre, sublime,
Quem o sente com mais intensidade,
E com mais elegancia quem o exprime,
Do que esse fragil ser, que foi composto
De trss quartos d'amor e um de vaidade!?


Paca disse por fim com voz sentida:
—«Oh! quem sabe se tu vais esquecer-me?!»—
—«Esquecer-me de ti, sol de mi vida!»—
—«Então juras que vens em cedo ver-me?»—
—«Oh! se juro!...»—E sellara o juramento,
Beijando a mão da amante estremecida!


Eu já disse que a lua é tentadora,
E accrescento tambem que, depois d'ella,
Não ha coisa talvez mais seductora
Do que fallar, no vão d'uma janella,
Á virgem recatada que adorâmos;
E vou dar a razão do facto agora.


Quando excita a mulher mais os sentidos?
Virtuosa leitora, o que pergunto
Oxalá que não fira os teus ouvidos;
Se tal acontecer sentirei munto,
Promettendo guardar desde este instante
Um profundo silencio em tal assumpto.


É no baile, passando arrebatada
No voltear da valsa delirante,
Com a fronte de joias coroada,
Quando nos braços venturoso amante
O seu corpo gentil convulso aperta,
E ella corre feliz, bella, inspirada?


Nesse instante seduz, fascina, inflamma,
Resplendente de graça e gentileza,
Falla á imaginação; mas não derrama
Nos sentidos aquella morbidezza
Com que ás vezes a vida nos encanta
A suprema creação da natureza.


Responda-me o leitor sinceramente:
Quando sobre um sophá commodo e fofo
Se reclina a mulher languidamente,
E ao pezo range o variegado estofo;
Quando a vista descobre ávida o seio
Arfando sob a tela transparente;


Uma linda mulher d'olhos rasgados,
Bocca breve e vermelha e voluptuosa,
Tez morena, cabellos annelados,—
Não deve ser assim mais perigosa
Do que vista no baile, entre a alegria
Do salão e da festa ruidosa?


Se a leitora gentil não se offendesse,
De certo que diria n'este instante
Alguma coisa mais que me occorresse;
Mas tremo de passar um pouco ávante
D'essa lei de pudor com que este mundo
Peccados graves tanta vez empece.


Se este meu livro, por feliz acaso,
Pudesse ter nas mãos Vossa Excellencia
No momento em que esplende o sol no occaso;
Se a frescura do prado, e a grata essencia
Que do bosque respira, a decidissem
A ter a singular condescendencia


De ler esta passagem, reclinada
Num viçoso tapete de verdura;
Se visse a propria imagem retratada
N'agua corrente d'uma fonte pura...
Oh! certo que a leitora attentaria
No que tal posição tem d'encantada!


E... quem sabe? talvez nesse momento,
Simplesmente por mero effeito d'arte,
Lhe adejasse veloz no pensamento
Uma idéa, que emfim tem p'rigo em parte,
Mas deve-se tentar, e era d'um dia
Apparecer assim ao seu sweet heart!...


Asseguro que, se elle fosse artista,
Não passava do subito enthusiasmo,
Que deve produzir uma tal vista.
Respeito, adoração, amor, e pasmo,
Tudo a um tempo d'assalto a ímpressional-o...
Pense bem a leitora na conquista!...


É por isto que o vão d'uma janella
Ha pouco declarei tão perigoso.
Naturalmente a timida donzella
Firma o rosto na mão; o corpo airoso
Acurva-se, fraqueia docemente,
Delicado, gentil, voluptuoso...


Então... eu sei!? talvez venha o desejo
De cingir esse corpo idolatrado
Com meiguice entre os braços; e não vejo
Que, depois de um abraço se haver dado,
Não se possa em seguida, sem maldade,
Imprimir sobre a face um terno beijo!


Deu-se isto mesmo com o nosso Pepe:
Nos braços a apertou, e um beijo ardente...
Espero agora que ninguem o increpe
Porque este, em vez de ser na ingenua frente,
Sobre os labios vermelhos da hespanhola
Convulso foi cair casualmente!


Que doce beijo! Ó timida Paquita,
Joven filha da ardente Andaluzia,
Tu, chistosa e travessa morenita,
Sentirias a magica poesia
D'esse beijo, primeiro que na vida
Estranhas sensações no peito agita!


As tintas do pudor naquelle instante
Affrontaram as faces da donzella.
Oh! como era inspirada e fascinante
A expressão que assumíra o rosto d'ella!
Allucinado, em divinal transporte,
O gentil andaluz contempla a bella!


Como ao romper do sol numa alvorada
Do fresco mez d'abril, a fragil rosa,
Pelo orvalho da noite borrifada,
Cede ao pezo, curvando-se amorosa,
E uma a uma derrama as doces lagrimas
Sobre a relva macia e lanceolada,


Assim ella inclinoa seu meigo rosto!
Nos olhos negros trémulas bailaram
As cristalinas lagrimas de gosto,
E pela face emfim se deslisaram!
Sente-as elle nas mãos, leva-as aos labios,
Que sofregos num beijo as devoraram!


Reavalando no ceo puro e formoso,
As vecejantes varzeas inundava
De seu alvo clarão, o astro amoroso;
Em borbotões saltando, derivava
Pelo valle a corrente rumorosa
No seu leito cavado e pedregoso.


D'entre a balseira espessa e perfumada
Os magicos modilhos desprendia
A voz do rouxinol: tarna, inspirada,
A original canção repercutia
Pelos echos da encosta, e mil affectos
Nas variadas endechas exprimia.


Mansinho a porta que ao jardim deitava
Entreabriu o hespanhol. Ella no braço
Do venturoso amante se amparava,
Mal podendo firmar o incerto passo.
Desceram ao jardim, por onde a brisa,
Rescendendo fragrancias, suspirava.


Sobre o mais basto da florída relva,
Mollemente inclinada jaz a bella;
Gemente agora como a voz da selva,
Quando a sacode o vento da procella,
O mesmo rouxinol na mesma balsa
Sólta inspirado outra canção singela.


Ó timida innocencia, ó flor mimosa,
Quantos perigos este mundo encerra!
E tu, incauta, n'haste melindrosa
Sorris alegre contemplando a terra!
Ai! que não sabes como é breve a aurora,
Que nas campinas aviventa a rosa!


E não sabes tambem quantas ciladas
Te circumdam a fragil existencia;
Quantos projectos e tenções damnadas
Fórma o homem na sua omnipotencia
Contra ti, debil flor, que basta um sopro
Para mudar-te neste mundo a essencia!


Um erro apenas, uma falta leve,
Um pensamento, rapido que seja,
A fronte pura te desbota em breve.
És como o lyrio que no prado alveja,
Que ao sol abrira vecejante e timide,
Mas qoe um só dia d'existencia teve!


Pobre innocencia! e pobre sobretudo
De ti, leitor, que, vendo de repente
Arrojar-se ao estilo campanudo
A minha musa, cuidas certamento
Que, entrando nos dominios da elegia,
Começa a declamar em tom plangente!


Fica certo que não; e vais agora
Escutar a razão porque asseguro
Que a minha fada poucas vezos chora.
Se uma nuvem lhe tolda o rosto puro,
É rara sempre, como as nuvemzinhas
Que se dissipam ao brilhar da aurora!


É que esta singular ficção divina,
Que enamora o prazer, o mundo, a vida;
Que me anima a existencia, e me illumina
De vivissima luz;—esta querida
Companheira dos meus primeiros annos,
Que me foi pelos anjos concedida,—


Descendo á terra, fulgurante e bella
Pousou no Pindo. Era uma noite amena.
De quando em quando vinha em torno d'ella
A doce aragem murmurar serena,
E sobre as aguas por instantes, trémulo,
Fulgia o lume de brilhante estrella;


Quando nisto seus candidos ouvidos,
Co'as vagas harmonias encantados,
Por mal dístinctos sons foram feridos;
Mais e mais se tornavam pronunciados:
Era um clamor soturno e compassado
Como o terrivel dobre dos finados.


—«Que é isto, santo Deus?!»—disse, occultando
A face casta, de terror gelada.
—«São os bardos d'agora improvisando,
Os da escola romantica chamada,
A primeira de todas as escolas,
Que os homens pelo mundo vâo creando!»—


—«Romântica?!»—«Não sabes? sim, d'aquella
Que, pondo fóra as musas do Parnaso,
Só faz versos á tétrica procella,
Ao saudoso expirar do sol no occaso,
A qualquer coisa triste e solitária,
Lançada á terra pela mão do acaso.»—


—«Pois as gratas visões da antiguidade,
Irmãs minhas, e minhas companheiras,
Todas perfume, encanto, ingenuidade,
Innocentes, risonhas, prazenteiras,
Nascidas sob o ceo da culta Grecia,
Tambem foram banidas sem piedade!?»


—«Ante os olhos não tens ermo esse monte,
Onde as nymphas outr'ora se agrupavam
Dês que Phebo assomava no horisonte,
E doces carmes de prazer soltavam,
Ora folgando sobre a fresca relva,
Ora assentadas junto á clara fonte?


Não vês essas encostas, onde a rosa,
Vecejando em constante primavera,
Segredava co'a brisa caprichosa,
Ou devastadas, ou cobertas d'hera?
Apagado na pyra o fogo santo
Que o estro de mil vates accendêra?!»—


Aquelle que estas phrases proferia
Era um cultor da Arcádia, condemnado
A ver as gratas flores da poesia,
Que desde os tenros annos tinha amado,
Em pó desfeitas pela mão profana
Dos barbaros da quadra em que vivia.


A pobre musa alegre e descuidada,
Para as delicias do prazer nascida,
Vendo aquella expressão amargurada,
Ouvindo aquella voz cava e sentida,
Disse adeus ao cantor desventurado,
Fugindo commovida e assustada.


Veloz como o adejar do pensamento,
E anciosa de prazer, no mundo entrara.
Um acaso feliz, nesse momento,
Fez que em frente da estancia onde parara
Sentisse num palacio os sons festivos
D'um baile, que ness'hora começara.


Mansinho entrou pelos salões a bella,
Vaporosa, risonha, encantadora.
O lume incerto de furtiva estrella,
A flor que nasce ao despontar da aurora,
N'haste flexivel, seduzindo o amante
Com requebros d'amor, a philomela,—


Quantas imagens cria a fertil veia
De certos menestreis descabellados,
Todas ellas não dão perfeita idéa
D'essa etherea visão d'olhos rasgados,
Azues-ferretes como o ceo do outono,
E de longas pestanas circumdados!


Eu vi-a, santo Deus! Vi-a inundada
De torrentes de luz resplandecente,
Imagem do ideal, no ceo gerada
Ao sopro creador do Omnipotente!
E foi então que o fogo da poesia
O estro me accendeu n'alma inspirada!


Oh! desde então, risonha e prazenteira,
Como um anjo da paz, sempre a meu lado
Vem pousar esta doce companheira:
No seu rosto suave e namorado
Sorri a inspiração, falla a ventura,
Scintilla a viva luz, que Deus lhe ha dado!


Ás vezes, quando o som da Ave Maria
Bate pausado na deserta ermida,
E no mar, occultando a face ao dia,
O sol inda reflecte luz sumida;
Quando se escuta o murmurar saudoso
Da clara fonte, ou da corrente fria,—


Na mão firmando o rosto pensativo,
Parece em certas horas que a domina
A tristeza que nasce sem motivo;
E não raro uma lagrima termina
Por tremer nos seus olhos, que se fitam
Sobre as aguas da veia crystalina.


Eis pois o seu retrato em poucos traços:
Inconstante e travessa doidejando,
Ora desprende as azas nos espaços
Do sentir ideal, ora, voltando
Á terra semsabor, contempla os homens,
E sorri d'este mundo nos meus braços.


Ficaremos aqui. É tempo agora
De tornar outra vez a atar o fio
Da historia principal. Ha mais d'um'hora
Que, escutando o suave murmurio
Da corrente e da brisa, nós deixámos
Os dois naquella estancia inspiradora.


Disse eu que a ingenua e pallida heroina
Sobre o mais basto da florída relva
Assentada ficou, que a voz divina
E caprichosa do cantor da selva
Suspirava na aragem repassada
No perfume do trevo e da bonina.


Nos olhos negros, morbidos, rasgados,
Scintilla o pranto; a voz languida expira
Nos seus labios trementes e córados;
Arrebatado elle a seus pés suspira,
E apertando-a depois d'encontro ao peito
Num extasis d'amor cego delira!


Ó musa! Aqui neste p'rigoso instante...
P'rigoso digo, porque emfim, leitora,
Inexperiente o joven estudante...
Toda innoccncia a prima encantadora...
E sós naquelle sitio ameno e grato,
Quasi ao romper da aurora fulgurante...


Eu sei... talvez... Porém Vossa Excellencia
Provavelmente agora determina
Que este assumpto se deixe em reticencia;
Obedeço e prosigo. A lua inclina
Do lado do ponente a face meiga,
E do nascente a aurora se illumina.


Os primeiros clarões da madrugada
Vem rompendo no ceo. O matto agreste,
Que as encostas da serra alcantilada
E os cabeços mais proximos reveste,
Exhala vivo e salutar perfume
Nas correntes da brisa embalsamada.


Vem rompendo a manhã; fatal momento,
Hora maldita para os dois amantes!
O sol desponta já no firmamento;
Restam apenas mais alguns instantes,
E depois, santo Deus! depois, quem sabe
Por quanto tempo viverão distantes!


Separados devia ter escripto
Em vez do termo de que usei acima;
Porém, mudando o que ficava dito,
Era forçoso desmanchar a rima,
E tu, leitor bondoso e compassivo,
Desculpas-me de certo este delito.


Paquita ergueu a fronte desmaiada.
Pobre lyrio do val! Não vês a aurora,
Não te anima o fulgor da madrugada,
Melancolico pendes a tal hora,
Quando os raios do sol, que vem rompendo,
Te illuminam a face demudada!


—«É forçoso partir!—disse agitado
O joven andaluz—morrer, querida,
Oh! morrer de saudade, separado
Da mais bella porção da minha vida!»—
Depois os labios d'ambos se juntaram
Num beijo terno, ardente, demorado...


Se os reflexos do ceo nesta existencia
Não tivessem de ser tão limitados;
Se a omnipotente mão da Providencia
Os annos que nos são determinados
Resumisse num dia de ventura,
Num'hora de prazeres encantados;


Se o prisma enganador da juventude,
Que aos olhos d'alma nos reflecte o mundo
Como um eden d'amor e de virtude,
Não trouxesse depois descrer profundo,
Quando se rompe, desfazendo o enlevo
Que a razão por instantes nos illude,


A vida então... Emfim seja cortada
Esta verba de idéas mal seguras.
Quebram-se os lances; fica a acção parada,
Destroe-se a mise-en-scène das figuras,
Quando na parte principal do drama
Se demora o autor em conjecturas.


Mais um momento, e ficarão perdidos!
O derradeiro adeus em vão procura
Sair d'aquelles peitos opprimidos
De saudade, d'angustia, e d'amargura!
Adeus! palavra que nos labios d'ella
Se não profere, expira entre gemidos!


Eis pois da nossa historia terminado
Quasi de todo este primeiro canto;
Pelo menos o lance apaixonado,
De que eu, confesso, receiava tanto,
Por ser dos pontos que me aterram sempre
Na Odyssêa que tenho projectado.


Paqaita, dentro em pouco debruçada
Na mais alta janella, descobria
Lá distante, no fim da longa estrada,
Inda o nosso estudante, e respondia,
Agitando convulsa o lenço branco,
Aos acenos que o primo lhe fazia.


Depois, quando de todo se encobriu...
Depois... Pense a leitora intelligente,
Que, se ainda na vida não sentiu,
Adivinha de certo a dor pungente
D'uma tal situação,—pense na magoa
Que o pobre coração lhe comprimiu!


Nos primeiros momentos dilacera
Do coração as fíbras, sem piedade,
Esta palavra—adeus; depois lacera,
Não vem talvez co'a mesma intensidade,
Mas oh! que mata a vida a fogo lento,
A dor que fica, e que se diz—saudade!


O prado é vivo, alegre na campina
A flor agreste que perfuma a brisa,
Fresca a veia da fonte crystalina
Quando entre relvas trépida deslisa,
Saudoso e grato divagar nas veigas
Á luz da tarde, quando o sol se inclina;


Mas é sabido que, se n'alma existe
Uma idéa profunda e dolorosa,
Com tal aspecto torna-se mais triste;
Sobretudo se o bosque, o prado, a rosa,
Este monte, este valle, este arvoredo,
Nos recordam d'um'hora venturosa!


Dona Eugenia, excellente creatura,
Vendo crescer, de dia para dia,
Aquella irresistivel amargura,
Esteve quasi—incomparavel tia!—
Decidida a fazer o casamento,
No qual, havia muito, reflectia.


Uma tarde, Paquita, percorrendo
Um jornal que lhe tinham enviado,
De repente córou, estremecendo!
Quem diria! Era o nome idolatrado
Do primo seductor, que nesse instante
A seus olhos se havia deparado


Sob uns versos, leitora, dedicados...
A quem, sabemos nós. Mas, no momento
De ver ante seus olhos deslumbrados
Outro nome, um terrivel pensamento
Lhe alvorotara o coração no peito!...
Era emfim o ciume violento!


Nâo passara de sombra fugitiva,
Que a luz do sol instantes encobriu,
Varrida em breve pela aragem viva.
O pranto nas pupillas refulgiu,—
O doce pranto, que a alegria esparge,
E facil pelo rosto se deriva!


Versos a Julia! pois, sob este nome,
A primeira explosão apaixonada
Da profunda saudade, que o consome,
Apparece na rima descuidada,
Na voz que inda se eleva debilmente,
Mas graciosa, sentida, e cadenciada!


Emfim, para mais clara intelligencia
D'esta acabada e classica epopeia,
Vou dar a traducção. Tenha paciencia
O erudito leitor, se a minha veia,
Que se não presta, como tenho dito,
Á fórma de trabalhos d'esta essencia,


O sentimento, o mimo, a singeleza,
Que inspiram o poeta enamorado,
Transtornar na versão. Toda a belleza
Consiste no perfume delicado,
Na luz, que anima d'acertadas cores
As figuras d'um quadro aprimorado.


Oh! consiste, bem sei! Mas onde pára
O divino poder com que um artista
Esses magicos toques espalhara?
Debalde intenta procural-o a vista;
Avaro esconde no mais fundo d'elma
O segredo que Deus-lhe confiara!


Divago sempre! Começava agora
Na esthetica do assumpto!... Felizmente
Arrependi-me a tempo; e tu, leitora,
A quem devo rogar humildemente
O completo perdão d'esta delonga,
Vais escutar os versos finalmente:


A JULIA


Naquella deserta ermida
Que alveja na serrania,
Deu signal, Julia querida,
O sino da Ave-Maria.


Este som, tão conhecido
Da nossa innocente infancia,
Como agora vem sentido
Trazer-me viva á lembrança
Toda essa doce fragrancia
D'aquelle existir d'então!...
Ai! lembrança não, saudade!
Saudade, Júlia, tão funda,
Mas tão grata, que me inunda
De ventura o coração!...

Espera!... Se, n'este instante,
Mandasse á terra o Senhor
Anjo de meigo semblante,
£ aos dias d'aqaella edade
Nos tornasse o seu amor...
Oh! responde-me, querida,
Se quanto depois na vida
De bello nos ha passado,
Não devêra ser trocado
Por esses dias em flor,
Que lá vão! Lembras-te ainda?
Tu, risonha, doidejavas
Por entre as moitas de flores,
Como ellas fragrante e linda!


Quando o som pausado e lento
D' Ave-Maria escutavas,
Com que fundo sentimento
Aos pés da cruz te prostravas,
E, os olhos no ceo cravando,
A santa oração rezavas!

Que fronte d'anjo era a tua,
Vista ao reflexo amoroso
Dos frouxos raios da lua!


Uma tarde, ao pôr do sol,
No recosto pedregoso
Do monte nos encontrámos...
Lembras-te? Ess'hora bateu,
Porém nós mal a escutámos!
Os olhos tu, perturbada,
Baixavas, e no semblante
Não sei que luz te brilhava!
Eu sei que naquelle instante
O prazer me enlouqueceu!
Oh! fatal loucura aquella!
Tinha-me ali tão perdido,
Que, sem mais ver, delirante,
Nos braços te arrebatei!


Não sei por onde vagava

Nem quanto, nem como andei...
Só me lembra que a ventura
O meu ser arrebatava,
E que, aos incertos lampejos
Das estrellas desmaiadas,
Imprimi ardentes baijos
Nas tuas faces rosadas!
Foi breve aquelle delirio;
Ao menos breve o julguei.
E quando outra vez á vida
Do sobresalto voltei,
Desbotada, como um lyrio
Pelos vendavaes batido,
Nos meus braços te encontrei!