Paraíso Perdido/Livro XI
EM humilde postura, arrependidos,
Os pais da humana prole orando estavam:
A graça, vinda do superno trono,
Já de seus corações mudado havia
Toda a dureza em lacrimal brandura:
Indizíveis suspiros exalando
Soltam preces que aos Céus voam mais prontas
Do que os rasgos da altíssona eloqüência.
No porte seu contudo não demonstram
De vis pedintes a servil baixeza;
Nem súplica faziam menos nobre
Do que Deucálio e a pudibunda Pirra,
Ancião casal das fábulas vetustas,
Quando, ajoelhados ante o altar de Têmis,
A instauração humildes suplicavam
Da humana raça no dilúvio imersa.
Voando as preces então dos Céus em rumo,
Não se transviam, incorpóreas fendem
Dos invejosos ventos vagabundos
O esforço vão, que lida em dispersá-las:
Por fim, do Empíreo a porta ovantes entram.
Ali sobre ara de ouro as atavia
Do pio incenso o recendente fumo
Nas puras mãos do Intercessor divino,
Que logo, cheio de inefável gozo,
Ante o trono do Pai as apresenta,
E assim por elas pede-lhe benigno:
“Vê que frutos, ó Pai, assomam no homem:
Vê da graça dos Céus no Mundo o efeito:
Preces, suspiros são que ingênuos brotam
Da contrição que deste ao peito humano;
Frutos mais doces do que todos do Éden
Que ele ditoso cultivar soía,
Inda dotado de inocência pura.
Eu, dos altares teus excelso antiste,
Neste incensário de ouro, em que os misturo
Co’o perfume de aromas, tos of’reço.
Ouvidos presta a súplicas humildes;
Ouve seus ais que articular não pode:
Permite que por ele eu interprete,
Do homem propiciação, patrono do homem,
Os sentimentos seus que inda não sabe
Com que palavras implorar te deva.
As obras todas, que tem feito, todas,
Sejam boas ou más, sobre mim tomo:
Por meu mérito aquelas ficam puras,
E estas expiadas pela morte minha.
De suas preces e ais o sacro aroma
De mim aceita em pró da humanidade:
Deixa que bem contigo viva o homem
Dias, que lhe marcaste, inda que tristes,
Té que a sentença proferida, a morte,
(Que há de cumprir-se mas que rogo abrandes),
A melhor vida o leve, onde comigo
Em ventura celeste, em paz ovante
Habitarão os meus remidos todos,
A mim unidos como a ti eu me uno.”
Patente no esplendor de inteira glória,
O Rei dos Céus responde-lhe sereno:
“Em pró do homem consegues, Filho amado,
Teu rogo: dele faço um meu decreto,
Mas no Éden habitar não mais lhe cumpre:
A lei, que dei à Natureza, lho obsta.
Do celeste jardim os elementos
Que, puros e imortais, em si não sofrem
Porções grosseiras, sórdidas misturas,
Rejeitam-no, de si agora o lançam
Propínquo a podridão inevitável
Que da Fúria-Pecado recebera,
Monstro que empesta e desordena tudo
E que a pureza em corrupção transforma.
Quando eu o homem criei, também me aprouve
Com dois supremos dons enriquecê-lo:
Dei-lhe feliz ventura e eterna vida.
Perdeu, porque foi louco, o dom primeiro:
Envolto na aflição de mal eterno,
Pena atroz lhe ficara o dom segundo;
Para o salvar dispus-lhe o bem da morte:
A morte é do homem o final remédio.
Em cruéis tribulações acrisolado
E por obras que a fé lhe indique puras,
Acordará para segunda vida
Lá no tempo em que os justos renascerem,
E se erguerá da dita ao grau excelso,
Renovados então o Céu e o Mundo.
Chamemos pois da vastidão do Empíreo
As jerarquias todas a congresso:
As minhas decisões não lhes oculto
Que, — agora retas a respeito do homem, —
São como as viram nos passados tempos
A respeito dos anjos rebelados
Que mais e mais no crime se empedernem.”
Disse. Logo sinal o Nume-Filho
Faz ao brilhante querubim da guarda,
Que pronto toca celestial trombeta
(Muito depois talvez no Orebe ouvida
Quando Deus lá desceu, — talvez guardada
Para outra vez se ouvir quando a sentença
For no Juízo-Final ao mundo lida):
Enche o angélico som dos Céus o espaço.
Da luz os filhos deixam de improviso
Belos jardins, amarantinas sombras
Por onde manam de nascente pura,
Águas da vida em perenais correntes:
Assentados té’gora ali ovantes.
Ao mando ob’decem, seus assentos tomam.
Então do excelso trono o Onipotente
Seu querer soberano assim declara:
“Filhos, ousando ombrear o homem comigo,
Entrar do bem e mal no âmbito pôde
Des’que provou os proibidos frutos.
(De tua audácia, ah! mísero, blasonas?
Vê que perdeste o bem, co’o mal ficaste!
Que dita a tua se esse bem que tinhas
Te bastasse, ignorando o mal que sofres!)
Porém... pesa-lhe... geme arrependido...
E minha compaixão aflito implora.
Antes que seus afetos o movessem,
Já eu sabia quanto, a si deixado,
Era inconstante e vão em seus desígnios:
Assim, — para outra vez, com mão ousada,
Não colher frutos da Árvore da Vida,
Para que à duração perpétua fuja, —
Quero que do Éden saia e lavre a terra,
Seu próprio dote e de que foi tirado.
Miguel, das ordens minhas te encarrego;
Dentre os guerreiros querubins escolhe
A mais luzida flor, contigo os leva;
Sobre Satã vigia a fim que, ousado,
Perturbando de novo a paz no Mundo,
Não tome agora com traição arteira
Sobre seus ombros a defesa do homem,
Ou não se aposse do jardim formoso
Que era seu domicílio e fica vago.
Vai, apressa-te, e lança fora do Éden
Sem remissão o par pecaminoso;
Profanos não consente a terra sacra:
Deles, da prole começada neles,
O desterro perpétuo lhes intima.
Contudo, já que em contrição os vejo
Cheios de pranto lamentar seus crimes,
Faze que os desditosos não desmaiem:
Na execução da ríspida sentença
Não lhe metas terror, mostra brandura.
Se ao mando teu submissos logo ob’decem,
Consola-os no extermínio; a Adão revela
De si, dos seus, segundo o que eu te inspire,
Os futuros sucessos, ajuntando
Meu pacto justo da mulher coa prole:
Aflitos coa desgraça, em paz os manda.
Do jardim pelo oriente, onde é mais fácil
A entrada nele, posta um corpo de anjos;
E, cauto, alçando teu alfanje ardente
Que inunda inteiro o Céu, com ígneas ondas,
Amedronta, horroriza, expulsa, arrasa
Quem da Árvore da Vida o acesso intente:
No Éden não quero espíritos imundos
Que as minhas caras árvores profanem
E, traidores roubando-lhes o fruto,
De novo enganem a fraqueza do homem.”
Disse. Eis o arcanjo apronta-se ligeiro:
Dos vigilantes querubins lá forma
A denodada fúlgida falange;
Quatro semblantes cada qual ostenta
Mostrando visos do bifronte Jano,
E enche-se de olhos que atilados brilham
Em mais quantia, com maior alerta
Do que os de Argos não súditos do sono,
Em que ele se entranhou pelo almo encanto
Da vara opiada e flauta de Cilénio.
Despertada no entanto surge a Aurora
Saudando o Mundo co’o fulgor sagrado,
Com fresco orvalho embalsamando a terra,
No momento em que Adão e a linda esposa
Acabavam as preces, alentados
Por novas forças e esperança nova,
Por alegria timorata ainda,
Com que, benigno e generoso sempre,
Da desesperação os salva o Empíreo.
Dest’arte as expressões consoladoras
O homem primeiro à sócia continua:
“Sem custo a minha fé admite, ó Eva,
Que o bem de que gozamos vem do Empíreo;
Mas que haja em nós tão válida entidade
Que, aos Céus subida, interessar mereça
O Deus do sumo bem para que afável
Sua vontade para nós incline...
Custa-me a crer. Contudo, os ais, as preces,
Que o coração sinceramente exala,
Podem, bem sei, de Deus erguer-se ao trono.
Desde que orando procurei de joelhos
A ira aplacar do Nume ofendido,
Ante ele o coração todo humilhado,
Pareceu-me que o vi brando e sem ódio
Às minhas preces aplicar o ouvido:
Cri então que benigno me escutava,
A sacrossanta paz tornou-me ao peito,
E recordei a divinal promessa
— “Há de a mulher calcar da serpe o colo”. —
A aflição tais idéias me encobria
Que fulgurantes ora me asseguram
Passada a morte, persistente a vida.
Todo o Universo existe a bem dos homens:
Dos homens, Salve, Mãe! Mãe do Universo!
Ó Eva, digna de tamanho nome!”
“Título tão honroso não mereço“
(Modesta diz-lhe a enternecida esposa);
“Pode ele porventura pertencer-me
Se, destinada para sócia tua,
Armei-te o laço em que perdeste a dita?
Antes credora sou de que implacável
Me increpes, me censures, me aborreças.
Meu juiz, porém, perdão deu-me infinito:
Eu, que, a primeira, urdi a morte a tudo,
Por graça dele sou da vida a fonte;
E tu também assim intitular-me
Por generosa compaixão te dignas!
Mas ao trabalho e suor da imposta pena
Nos chama o campo mesmo tresnoitados:
Vê que, insensível às desgraças nossas,
Risonha principia a manhã bela
Seus róseos passos: obedientes vamos.
Desde hoje nunca mais de ti me ausento,
Seja onde for que trabalhar nos cumpra,
Seja da aurora até fechar-se a noite.
O que encontrar se pode de importuno
Entre estes agradáveis arvoredos?
Inda que faltos da primeva dita,
Em contente harmonia aqui vivamos.”
Este de Eva humilhada era o desejo,
Mas não lho consentia o fado iroso:
Sinais a Natureza deu sinistros.
Súbita escuridão pelo ar se alonga;
Durou mui pouco da manhã o brilho:
Uma águia, então sem altaneiros vôos,
Com fero anelo rápida persegue
Duas mui lindas inocentes aves;
E um fulvo leão, monarca das florestas,
As primeiras caçadas ensaiando,
Vem por um monte abaixo, diligente,
Após um manso par, mimo dos bosques,
Cervo e corça que tímidos procuram
Na porta Eoa do Éden abrigar-se.
Atenta Adão no quadro temeroso,
E à esposa não tranqüilo ali se expressa:
“Destes mudos sinais que o Céu imprime,
Como de seu desígnio precursores,
No diferente Mundo, colho, ó Eva,
Que maior desventura nos aguarda.
Vêm advertir-nos de que mal pensamos
Do perdão nosso, crendo-nos seguros
Porque alguns dias mais nos tarda a morte?
Que certo até então se nos ocultam
Da nossa vida a duração e o modo?
Que somos pó e ao pó voltar devemos?
Como de outr’arte interpretar-se pode
A atroz perseguição que presenciamos
Do mesmo lado, a um tempo, no ar, na terra?!
Por que antes de mei’-dia surge a noite?
Por que a luz da manhã fulge mais bela
Na grande nuvem que, ocupando o ocaso
Radiante albor no azul do firmamento,
Desce pausada e coche se afigura
De celestial, augusto mensageiro?”
Não se enganou. O batalhão empíreo,
Vindo baixando em nuvem de alabastro,
Já do Éden lá pousou sobre a montanha:
E, se em tal dia não tivesse o susto,
Tão inerente à condição humana,
Enevoado de Adão os frouxos olhos,
Fora-lhe esta visão de glória insigne,
Que não cedia em majestoso aspecto
À que observou Jacob afortunado
Vendo em Maanaim coberto o campo
De anjos brilhantes, de purpúreas tendas, —
Nem à que ao Dótã incendiou os montes
Contra o da Síria salteador monarca
Que, à falsa fé, sem declarar a guerra,
Apoderar-se de Eliseu tentava.
O celeste caudilho posta e deixa
As fúlgidas legiões em guarda do Éden;
E só avança perscrutando o sítio
Onde ache Adão que, vendo aproximá-lo,
Assim falou à carinhosa esposa:
“Grandes notícias, Eva, agora aguardo
Que mui breve talvez de nós decidam
E novas leis severas nos imponham.
Descubro que um dos celestiais guerreiros
Vem da ígnea nuvem que encobriu o monte;
De seu porte sublime a majestade
Nele denota dos maiores tronos
Uma muito elevada jerarquia.
Posto não ser terrível que me assuste,
Dá-se a grave respeito e quase austero;
Não tem de Rafael o doce afago.
Tu retira-te: vou, como me incumbe,
Reverente ao caminho recebê-lo.”
Disse. Eis o arcanjo dele se aproxima:
Então cobrindo a celestial figura,
Homem parece. Sobre armas luzidas
Sua guerreira clâmide flutua;
Tem cor purpúrea que ofuscara quanta
Vaidosas Tiro e Melibéia ostentam,
E matizam-na de Íris os primores:
(Assim durante as tréguas se vestiam
Os monarcas e heróis dos priscos tempos).
O estrelado morrião desfivelado
Mostra-o varão no fim da juventude;
Em forma de zodíaco brilhante
Ao lado lhe sustenta o talabarte
A forte espada, infausta ao rei das sombras,
E na destra sopesa a lança invicta.
Humilde Adão se curva. Então, guardando
Seu porte real, o arcanjo não se inclina,
E desta sorte intima-lhe a mensagem:
“Adão, os rogos teus ouviu o Eterno.
Logo que as leis lhe transgredir ousaste
Sobre ti recaiu pena de morte;
Mas prorrogada foi, e largos dias
Tens de viver: contrito te arrepende;
Com mil bons feitos um mau feito encobre.
Se procedes assim, bondoso o Nume
Pode remir-te do eternal império
Que havia obtido sobre ti a morte:
Tão grande é para ti de Deus a graça!
Mas neste Éden morar não mais tu podes:
Venho expulsar-te dele e encaminhar-te
Para terra que próvido cultives,
Teu solo próprio de que foste feito.
Precisas sempre são de Deus as ordens.”
Não disse mais. De Adão espavorido
O coração opresso de ânsia pára,
E de todo os sentidos se suspendem.
Mas Eva, que emboscada ouvira tudo,
Com feridos lamentos deste modo
Manifesta o lugar onde se oculta:
“Golpe imprevisto, mais cruel que a morte!...
E assim hei de deixar-te, ó Paraíso?!
E assim hei de deixar-te, ó pátria terra?!
E a vós, sombrios bosques fortunados,
Própria morada de celestes tronos,
Onde eu, posto que em mágoas, esperava
Quieta passar da vida o triste resto
Até que a morte nos chegasse de ambos?!
Ó lindas flores, que vos dais só no Éden,
Com melindrosa mão por mim cuidadas
Des’que apontavam os botões primeiros,
Designadas por mim co’os próprios nomes!
Caras flores, que leda eu visitava
Assim que era manhã e antes da noite!
Quem desde agora ao sol tem de inclinar-vos?
Quem vossas tribos disporá em ordem?
Quem vos há de trazer nectárea linfa?
E tu, meu doce tálamo das núpcias,
Adornado por mim co’os mimos todos
Que podem encantar o olfato e a vista,
Ir-me-ei de ti?... De ti, para entranhar-me,
Desesperada, aflita, vagabunda,
No baixo Mundo, escuridão deserta?
Como ar inspiraremos menos puro,
A frutos imortais nós costumados?!”
Assim a interrompeu o anjo benigno:
“Lamentos deixa: as tuas justas perdas
Vai, Eva, suportando resignada:
Tanto não tomes indiscreta a peito
O que por teu considerar não podes.
Só não vás; teu esposo te acompanha:
Tens de restrita obrigação segui-lo;
É onde ele habitar a Pátria tua.”
No entanto do delíquio Adão acorda,
Os perdidos sentidos recobrando,
E humilde assim ao mensageiro fala:
“Dos tronos celestiais príncipe excelso,
Que assim teu porte insigne te denota,
Benigno cumpres a mensagem tua
Que, de outro modo executada, fora
Raio que nossa vida devorara.
Não obstante, por ela ressentimos
Quanta aflição e dor, quanta amargura
Pode sofrer a natureza humana,
Fazendo-nos sair deste almo sítio,
A só consolação que nos restava.
Outros sítios quaisquer nós os teremos
Por medonhas soidões inabitáveis,
Incógnitas a nós e nós a elas.
Se eu pudesse com rogos incessantes
Ter esperança de mudar do Eterno
O firme pressuposto, — de contínuo
Com orações, com ais o importunara.
Mas para seus decretos absolutos
São nossos brados e ais, as preces nossas,
Qual o sopro lançado contra o vento,
Que com ele sufoca quem lho atira:
De Deus portando às ordens me submeto.
Mas o que sinto mais, daqui distante,
É ficar do meu Deus longe da vista,
Perdendo seus favores inefáveis.
Aqui freqüentaria, eu religioso,
Sítio por sítio onde ele se dignava
Sua presença augusta conceder-me,
E aos filhos meus dest’arte o contaria;
— “O Eterno apareceu-me neste monte;
“Eu desta árvore à sombra o vi de perto;
“Entre este pinheiral a voz ouvi-lhe;
“Aqui na fonte conversei com ele.” —
De leiva ervosa, de luzentes pedras,
Que do Éden cria o rio deleitoso,
Grato lhe erguera inúmeros altares,
Padrão perpétuo nos futuros tempos;
E ali precioso incenso lhe ofertara,
Nectáreos frutos, as mais lindas flores.
Mas onde encontrei no baixo Mundo
Sua brilhante face, os seus vestígios?
Inda que a seu furor fujo medroso,
Contudo compassivo prometeu-me
Mais longa vida, estirpe numerosa:
Assim observarei, ainda contente,
Da glória sua as metas afastadas,
E os passos seus adorarei de longe.”
Assim Miguel responde-lhe benigno:
“Não é só o Éden possessão do Eterno;
Todo o Mundo ele rege, o Empíreo todo;
Neste apertado sítio confinada
De Deus não consideres a presença,
Que imensurável, prodigiosa, abrange
Ar, terra, mar; dispõe, fecunda, anima,
Por seu poder virtual, quanto é vivente.
Da terra toda o regimento e a posse
Deu-te, não débil dom; e o Paraíso
Talvez seria a capital do globo
Donde a povoá-lo as gerações partissem,
E onde viessem, das plagas mais remotas,
Em ti seu pai reverenciar submissas.
Porém tal regalia tu perdeste,
E com teus filhos deves desde agora
Outra terra habitar diversa do Éden.
Contudo, crê que em vales e em planícies,
Como aqui, Deus está; como aqui, sempre
Hás de presente em todo o sítio achá-lo:
Sinais diversos da presença sua
Sempre te hão de rodear, seguir-te-ão sempre
Com paternal amor, bondade suma;
Hão de representar-te o seu semblante
E de seus pés os divinais vestígios.
Para que firme fiques nesta crença
Antes que daqui partas, eu te advirto
Que Deus também me manda apresentar-te
Quantos sucessos, nos futuros tempos,
Tu e os teus hão de ter, mais memoráveis:
Ouvirás bom e mau, e sempre em luta
De Deus a graça contra os vícios do homem.
Por fatos tão visíveis doutrinado,
De paciência constante te premune,
E da alegria os ímpetos tempera
Com pia seriedade e sacro susto:
Igual moderação sempre te adorne,
Quer no estado feliz, quer na desgraça.
A vida assim conduzirás tranqüila,
E bem disposto encararás a morte.
Sobe este monte: deixa que Eva durma,
Enquanto velas em visão sublime;
Dormiste tu assim quando o alto Nume,
De ti formando-a, lhe inspirou a vida.”
Agradecido Adão assim lhe torna:
“Sobe, eu te sigo, condutor sincero:
Meus passos guia: humilde aos Céus me curvo.
Seja qual for a punição, of’reco
Meu coração de todo resignado:
Munido de paciência me destino
A conquistar, se obter me é dado tanto,
Por áspero trabalho a paz ditosa.”
Para as visões de Deus subiram ambos.
No Paraíso se elevava altivo
Aos mais montes um monte sobranceiro,
De cujo tope às claras se avistava
O hemisfério do globo em roda do Éden
(Não descobria mais, nem mais se erguia
O monte onde, por causa diferente,
Do deserto levou o “autor do engano“
Nosso “segundo Adão” para ostentar-lhe
Todos os reinos e riquezas do Orbe).
Dali alcança o pai da humana estirpe
Toda a extensão que abrangeria outrora
As cidades de fama em qualquer evo,
Capitais dos impérios mais ilustres
Lá desde Cambalu (do Kan assento)
E Samarcande em que (nas margens do Oxo)
Seu trono o Tamerlão levantaria,
Até Pequim (mansão dos Chins monarcas)
Agra e Laor (do Grão-Mogol delícias),
Até de Quersoneso aos áureos campos,
À pérsica Hispaã, Bizâncio turca,
Da czarina Moscou ao rico empório:
Também de Nego avista os largos reinos
Com Ércoco, seu porto o mais distante;
Logo os domínios de menor grandeza,
Mombaça, Quiloa, as praias Melindanas,
E Sófala (que a antiga Ofir se julga),
Até do Congo e Angola à plaga ocídua,
Ao Niger empolado e aéreo Atlante,
Fez, Sus e Tremecém, Argel, Marrocos,
Do famoso Almansor amplos estados;
Té ao Tibre europeu onde a alta Roma
Viria a governar o inteiro Mundo.
Pode ser que a visão lhe apresentasse
Também de Montezuma a ingente corte,
O México opulento; Cusco excelsa
Onde o argênteo Peru acataria
De Atabalipe as ordens soberanas;
Capital da Guiana: a áurea Manoa
Que de Gerião os filhos salteadores
Dourado chamariam devaneando-a.
Porém para mais nobre perspectiva
De Adão tira Miguel a névoa aos olhos,
Devida de Satã às vis promessas
Que, do sabor do proibido fruto,
Mais longa e clara vista lhe auguravam:
Então os nervos ópticos lhe alimpa
E a ver altos portentos lhos adapta:
De arruda e eufrásia aos sucos ajuntando
Três gotas que da vida à fonte apara,
De Adão aplica aos olhos tal colírio
Que da vista mental na sede lhe entra.
Eis de repente o pai da humana prole...
Cega, desmaia, vai cair. Mas o anjo
Ergue-o benigno, e assim lhe firma o tento:
“Abre os olhos, Adão, vê que de humanos
Teu crime original sepulta em ruínas!
Nunca buliram na árvore vedada,
Não partilharam a traição da serpe,
Nenhum de teus delitos perpetraram;
Mas nasceram de ti, de ti lhes mana
A corrupção que os tempos mais infectam.”
Olha Adão, vê um campo: arada e culta
Enche-se parte de ceifadas messes,
Parte ocupam de greis pastos e apriscos:
No meio, uma ara de relvosa leiva
Se eleva e faz das possessões o marco.
Louras espigas da primeira sega
Depõe suado ceifeiro ali, tomadas
Quais desleixada mão a eito encontra:
Meigo pastor depois, com puro esmero,
Da grei os primogênitos melhores
Tendo escolhido, traz e os sacrifica;
Fumam com largo odor, de incenso esparsas,
Sobre ígneas achas, as entranhas pingues:
Todas do rito as fórmulas celebra.
Dos Céus baixando refulgente lume
Propício consumiu a grata of’renda
Com viva luz e celestial aroma:
A do outro inútil foi por não sincera.
Então das terras o cultor malvado
Raiva de ciúme, — e, co’o pastor falando,
Ao peito lhe atirou traidora pedra
Que momentânea o despojou da vida:
Coa palidez da morte o triste cai;
De sangue entre bolhões a alma lhe foge.
A tal aspecto Adão treme de aflito
E ao fido arcanjo assim com ânsia exclama:
“Que desgraça fatal, ó guia excelso,
Sobre este meigo humano rompe em fúrias!
Premeia Deus assim quem puro o adora?”
“São dois irmãos que vês, e são teus filhos”
(Comovido também, Miguel lhe torna);
“O injusto, presenciando que no Empíreo
Foi de seu justo irmão aceita a of’renda,
De inveja se enche e o mata furibundo.
Mas tão bárbara ação será vingada;
E do outro, inda que o vês ali sem vida,
Envolto em terra e sangue o seu cadáver,
Não ficará sem prêmio a fé tão pura.”
“Ai de mim!” (diz-lhe o pai da humana prole),
“Desta ação quanto aterra o efeito e a causa!
Morrer é isto? A morte é deste aspecto?
Os homens voltarão por esta estrada
Ao térreo pó de que tirados foram?
Que cena de terror vista e pensada!
Quão terrível será quando a sentirmos!”
O arcanjo lhe responde: — “Viste a Morte:
Em sua forma primitiva a encaras.
Sabe porém que o truculento monstro
Com várias formas, por diversas vias,
Todas tremendas, os mortais impele
Para seu antro que mais medo infunde
Do umbral coa perspectiva pavorosa.
Golpe violento arranca de uns a vida;
O fogo, a fome, as águas, matam outros;
Ali a tresloucada intemperança
Cruas doenças lhes fulmina: em breve
Delas verás a desastrosa turba,
Para que observes quanto a gula de Eva
Malfadou, corrompeu, a espécie humana.”
De Adão eis que ante os olhos se apresenta
Sítio aflitivo, de hospital em forma:
Ali jazendo estão doentes sem conto;
Ali as doenças todas se acumulam.
Observa a dor ferina, a ardente febre,
Magoadas convulsões, cansaços, tosses,
Epilepsias, tétanos, desmaios:
Por entre as mais cruéis também figuram
A pedra atroz, a cólica tremenda,
O cancro tragador, a brava fúria,
A magreza das tísicas mirrada,
Da hidropisia os pálidos volumes,
A horrível asma, fulminante gota,
E sobre todas a tartárea peste.
Do pavimento no âmbito retumbam
Sentidos ais, perturbação medonha;
A desesperação, assídua sempre,
De leito em leito furibunda voa;
E triunfante a Morte o dardo vibra,
Mas pausando, em requinte de fereza,
O duro golpe aos infelizes que ousam
Com incessante ardor chamar por ela
Como o só bem que lhes termina os males.
Que empedernido coração pudera
Tão crua cena presenciar sem pranto?
Inda que de mulher não foi nascido,
Adão conter as lágrimas não pôde;
Maviosa compaixão lhe impera na alma:
Chorou por largo espaço até que o chamam
Outros mais importantes pensamentos.
Tanto que a voz recobra, assim exclama:
“Que estado miserando e hórrida queda
Tens de sofrer, ó triste humanidade!
Ter-te-ia sido um bem não ter nascido.
Justo será que um Deus a vida outorgue
Para extorquida ser com tais angústias?
Justo será que no-la incuta a força?
Quem, se soubesse o dom que lhe ofertavam,
Tão triste vida receber quisera?
Ou, tendo-a ignaro aceita, não tentara
Logo, quanto antes, eximir-se dela,
À paz antiga com prazer voltando?
Por que de Deus a imagem, feita no homem
Pura e bela, ficou sujeita à culpa,
E aviltada, por pena injusta, sofre
Tão asquerosos, desabridos males?
Como, inda em parte a Deus se assemelhando,
Sendo inda imagem do Arquitipo eterno,
De tais doenças não pôde o homem livrar-se?”
“Foi-se-lhe do Arquitipo eterno a imagem”
(Miguel responde), “assim que, igual dos brutos,
Quis o homem ser escravo do apetite
Que louco o despenhou na culpa de Eva.
Tão asquerosas, desabridas penas
Não desfiguram pois de Deus a imagem,
Mas só na do homem dolorosas rompem:
E — desde que ele, pervertendo insano
Da Natureza as salutares normas,
Em si insulta, desacata, extingue
De Deus a imagem, — com justiça o punem
Todas as doenças hórridas que viste.”
“Justo é quanto ouço, e me resigno a tudo”
(Adão lhe diz): “mas só por esta estrada,
Só por estas pungentes avenidas
Devemos ir aos penetrais da Morte,
E entrar no pó de que gerados fomos?”
“Não” (responde Miguel). “Outra te assino,
Feliz se a segues bem: fugir de excessos:
Com temperança cauta bebe e come,
Só procurando a nutrição precisa
E não da gula sórdidos deleites:
Poderás de outro modo ver volvidos
Sadios anos em mui longa série
Até que, igual do sazonado fruto
Que à terra cai ou segue a mão que o colhe,
A tarda morte sem sofrer sucumbas.
Mas gradualmente então terás perdido
Da mocidade a gentileza e a força,
Que mudadas verás em tristes rugas,
Baça magreza, frouxidão, cansaço:
Tem este estado o nome de — velhice,
Teus sentidos, então obtusos, débeis,
Perderão do prazer o doce acúleo;
Em vez de no teu sangue arfar ovante
Juvenil alegria esperançosa,
Arrastar-se-á tristeza fria e grave;
Os espíritos teus serão mais densos,
E ir-se-á por fim o bálsamo da vida.”
Da humana prole o pai assim lhe torna:
“Daqui em diante, não, não mais pretendo
Fugir da morte, prolongar a vida:
Mas antes, sim, estudarei qual seja
A mais fácil maneira, a mais suave
Deste peso largar tão enfadonho
Que suportar me incumbe até que chegue
O meu final, predestinado dia:
Minha dissolução sem mágoa espero.”
“Não deves ter à vida amor nem ódio”
(Miguel replica); “dela usa bem sempre
Como ta der o Céu, ou curta ou longa.
Eia! nova visão se te apresenta”.
Olha Adão; vasto campo então descobre:
Tendas várias em cor nele se elevam.
Nédios armentos juntos de umas pastam;
De outras sons concertados de harpa e de órgão
Lá rompem com harmônica doçura.
Deixavam ver-se os hábeis tangedores
Ferir as cordas, dedilhar as teclas:
Suas rápidas mãos, sempre a compasso,
Tecido vôo transversal prosseguem,
E em todas as mutanças sons sublimes
Tiram dos animados instrumentos.
Noutra parte, uma forja acesa estala,
E tisnado ferreiro ali derrete
Duas grossas porções de ferro e cobre
(Quer de algum antro à boca as encontrasse,
Para a qual inda em brasa as impelisse
Casual incêndio que, em montanha ou vale
Densíssimas florestas consumindo,
Da terra houvesse penetrado o seio, —
Quer dali as trouxesse já lavadas
Corrente subterrânea em seu impulso);
O líquido metal então apara
Em convenientes, preparados moldes,
Fazendo assim os utênsis primeiros;
Logo funde, fragua, dobra, lavra
As obras todas que o metal permite.
Depois vê homens de diverso traje
Vindo descendo dos vizinhos montes:
Pelo seu porte justos pareciam,
De todo dados do Senhor ao culto
E a perscrutar, com respeitosa ciência,
Tudo que aos homens proporciona e ensina
Da paz o bem, da liberdade a glória.
Assim que na planície eles entraram,
Eis vão saindo das pintadas tendas
Grande turma de belas adornadas
De ótimas roupas, de brilhantes gemas;
Da harpa ao som mil córeas entrelaçam,
De amor brandas canções descantam, trinam.
Olham-nas os varões: inda que justos,
Pascem nelas a vista e o siso perdem;
Amam, de amor na rede presos ficam,
E cada qual escolhe a sua amada:
De amoroso delírio se transportam
Até que tremeluz com mago riso,
Precursora de amor, da tarde a estrela:
Das núpcias lá se acende a tocha ovante;
Invoca-se Himeneu que a vez primeira
Em cerimônias conjugais figura;
Ressoam com prazer nas tendas todas
Músicas de alegria, altivas festas.
De amor e juventude o lindo encontro,
Cantigas, flores, músicas, grinaldas,
Encantadora perspectiva formam
Que extáticos de Adão deixa os sentidos.
Então cedendo à voz da Natureza,
O homem primeiro dos deleites gosta,
E o que no peito sente assim exprime:
“Ó tu, que fiel meus olhos desvendaste,
Anjo, o maior dos que no Céu habitam:
Somente ostentam as visões passadas
Ódios, mortes, e a dor mais fera que eles;
Esta porém mais grata se me antolha,
Dias serenos próvida promete:
Nela decerto mostra-se cumprida
Em todos os seus fins a Natureza.”
“Não julgues do melhor” (o anjo replica)
“Pelo prazer que dá, posto que inculque
Ser de todo conforme à Natureza:
Para mais nobre fim criado foste;
De Deus a semelhança pura e sacra
Em tua essência demonstrar devias.
Essas tendas, que tanto te comprazem,
São da maldade pavoroso asilo:
Nelas tem de morar a ímpia progênie
Do que a vida do irmão sem dó arranca.
Homens serão que, por teimoso estudo,
Das artes na invenção têm de ilustrar-se;
Mas, ingratos de acinte, ao Ser Superno
As graças negarão do gênio altivo
Com que Deus bondadoso quis orná-los:
Contudo, os filhos seus serão formosos.
A turba feminil, encantos toda,
Que tão meiga observaste, ingênua, ovante,
Parecendo um congresso de deidades,
São do sexo a desonra e não se ligam
Do conjugal pudor ao sacro jugo;
Da perversão um foco em si ostentam:
Canto, lascívia, dança, adornos, brindes,
Delas o emprego vergonhoso formam.
E esses varões, que no sisudo aspecto
De Deus extremos filhos se inculcavam,
Têm de sacrificar fama e virtudes
Ao tredo riso, às mágicas ciladas
Daquelas impudicas formosuras:
Mais e mais no prazer vão-se engolfando...
Ai de todos! Em breve há de encontrar-se
No próprio pranto seu, imerso o Mundo!”
Da mui breve alegria Adão privado
Responde em pranto: — “Oh lástima! Oh vergonha!
Das virtudes na estrada iam tão puros...
E logo, por acinte ou por fraqueza,
Em sendas tortuosas se transviam!
Vejo até nisto que as desgraças do homem
Todas as forma da mulher o crime.”
“O homem que se efemina” (diz-lhe o arcanjo)
Em si tem toda a culpa: os Céus lhe deram
Sublimes dotes, e a sapiência entre eles,
Para no posto seu manter-se digno.
Eis nova cena te apresento agora.”
Repara Adão e vê terreno vasto:
D’além cidades cercam-se de campos
Em que reina a feliz agricultura:
Acolá se erguem hórridas muralhas
De largas portas, de elevadas torres,
Onde, com gesto feio e cheios de armas,
Homens gigantes preparavam guerra.
Parte em brandir as armas se exerciam;
Parte ao manejo de espumantes potros,
Ou pelo campo, em forma de batalha,
Ordenavam pedestre e eqüestre linha:
Não há descanso na lidada empresa.
Lá escolhida escolta em pingue prado
Rapinou e conduz formoso armento
E grei lanuda coas balantes crias;
Com vida, apenas, os pastores fogem:
Mas, ansiosos gritando por auxílio,
Acodem-lhes e surge atroz peleja:
Investem-se esquadrões com fero impulso,
E onde o gado pastava (havia pouco),
Deserto o campo agora e tinto em sangue
Alastrado se vê de mortos e armas.
Uma praça d’além põe-se em assédio,
E em torno dela batalhões acampam:
Furibundos assaltam-na de fora
Com baterias, escaladas, minas;
De sobre os muros a defesa arroja
Chuveiros de farpões, nuvens de pedras,
E de fogo sulfúreas enxurradas:
Gigânticas ações, estrago horrendo,
Iguais se antolham nos partidos ambos.
Eis que arautos ceptrígeros convocam
Às portas da cidade uma assembléia:
De respeitáveis cãs varões sisudos
Aos valentes guerreiros se ajuntaram,
As propostas questões ali ventilam;
Porém rebelde oposição se acende.
Então de meia idade um douto se ergue
Com eminente e persuasivo porte;
Mostrou de Deus o que era o juízo augusto,
Paz e verdade, religião, justiça,
E delas na infração quais crimes brotam.
Desprezam-lhe as razões moços e velhos;
E por violentas mãos fora ali morto
Se uma nuvem, de súbito descida,
Não o arrancasse de invisível modo
Dentre o furor da multidão sanhuda.
A opressão, a violência, a lei da força,
Por toda essa região assim reinavam, —
E refúgio contra elas não havia.
Na maior aflição, lavado em pranto,
Diz a seu guia Adão: — “Que homens são estes
Que, desumanos, outros homens matam,
De infinito teor multiplicando
O crime do primeiro fratricida?
Cegos! Não vêem que o morticínio espalham
Em seus irmãos na qualidade de homens?
Homens não são!... da Morte eis os ministros!
Mas o varão que, a não salvá-lo o Eterno,
Vítima fora das virtudes próprias,
Quem era, dize, divinal arcanjo?”
“Dos consórcios fatais, que há pouco viste,
As sanguinosas produções conhece”
(Miguel responde). “Em nó aborrecido,
Levado à conclusão pela imprudência,
As mãos se deram vícios e virtudes.
Nascem dele varões que são prodígios
Na corpulência, na mental finura;
Tem o renome seu de ser preclaro:
Nesses tempos valor, virtude, heroísmo,
Hão de somente consistir na força:
Escravizar nações, vencer batalhas,
Dar saques, alagar de sangue a terra,
O fastígio será da humana glória.
Esses conquistadores, — que antes devem
Dos humanos dizer-se a peste, o estrago, —
Como patronos do Orbe, heróis e numes
Brilharão pelo estrondo das batalhas.
Tais na Terra serão fama e renome;
E o que de aplausos se ostentar mais digno
Só gozará silêncio deslustroso.
Esse que viste pelos Céus levado,
O único justo do perverso globo,
Pertence à tua geração setena:
Entre maus atreveu-se a bom mostrar-se;
Por isso foi odiado e perseguido!
Expressou-se que Deus entre seus santos
Virá julgá-los: hórrida verdade!
Mas o Eterno mandou nuvem de aromas,
Tirada por alígeros cavalos,
Que rápida o roubou às mãos do crime;
E lá nos climas da elevada glória,
Da bem-aventurança augusto assento,
Ele goza de Deus, zomba da morte.
Nesta outra cena encara, e ali te aponto
Dos maus a punição, dos bons o prêmio.”
Olha Adão; vê mudada a face ao Mundo.
Já não brame da guerra a voz de bronze:
Festas, danças, prazer, luxo, lascívia,
Fazem de todos perenal emprego;
Adultério, consórcio, incesto, rapto,
São da beleza efeitos indistintos:
Nascem dos brindes as civis discórdias.
Eis venerando ancião mostra-se entre eles;
As orgias lhes pesquisa, os vis triunfos;
Contra esses crimes ríspido protesta:
Prega-lhes que contritos se arrependam,
Como a culpados em prisão metidos,
Só tendo que aguardar sentença dura.
Foi tudo em vão: calou-se o justo, — e parte
Suas tendas a erguer em sítio ao longe.
Altas madeiras corta então nas selvas:
Apto a boiar construi um grão fabrico,
As dimensões por côvados lhe ajusta,
As costuras com pez unta-lhe em roda,
Abre-lhe porta ao lado, e de alimentos
Para homens e animais mete ampla cópia.
Eis... senão quando... (estranha maravilha!)
Casal de cada casta de viventes,
Vários na forma, vários na estatura,
Para ali veio entrar, — afigurando
Assim cumprirem recebidas ordens:
Por fim o construtor ali se abriga
Com filhos três e esposas deles quatro,
E Deus com segurança a porta cerra.
No entanto se levanta o Sul medonho
Batendo as longas, denegridas asas,
E arrebanha dos Céus as nuvens todas:
Em seu auxílio expelem as montanhas
Fuscos vulcões de mádidos vapores:
Então o firmamento condensado
Todo uma negra abóbada se ostenta,
Donde, precipitada, imensa chuva
Rui contínua, até que a terra some.
A arca lá bóia erguida sobre as águas,
E segura, enristando o extenso rostro,
Arfa ovante entre os férvidos marulhos, —
Enquanto a pompa e habitações dos homens
Rolam na profundez do fluido abismo:
Nos soberbos palácios, em que o luxo
Desde remotos séculos reinava,
Moram, procriam os marinhos monstros:
Nem praias tinha o mar, era mar tudo.
Da prole humana tão antiga e vasta
O que resta, ei-lo na arca entregue às ondas.
(De tua descendência ao ver a ruína.
Ruína total, Adão, que dor te punge?
Inunda-te também, também te afoga
De penas e de pranto outro dilúvio,
Até que te levanta o anjo benigno
E te sustém das forças no abandono,
Tu, qual pai que dos filhos chora a perda
Todos mortos de um talho ante seus olhos.)
“Desgraçadas visões!” (Adão exclama)
“Quanto melhor me fora que atra noite
Os quadros me escondesse do futuro!
Das desgraças somente assim sofrerá
O quinhão meu, gravame assaz custoso;
Mas hoje em peso sobre mim recaem
Todas que destinadas se reservam
Ao castigo de séculos sem conto,
Porque, da minha previsão sabidas,
Muito antes de existirem me atormentam
Pelo pavor de seus futuros danos.
De si, dos filhos seus, ninguém procure
Prever sucessos que hão de vir sem falta:
Coa previsão os males não se impedem,
E imaginados não afligem menos
Do que em sua verídica amargura.
Mas são extemporâneos tais conselhos;
Homens para os tomar já não existem, —
E, se alguns inda restam vagabundos
Por esse universal páramo aquoso,
Hão de enfim sucumbir à fome, à mágoa.
Cri que, cessando a prepotência e a guerra,
Dias ditosos o Orbe em paz gozara;
Mas iludi-me... e presencio agora
Que, se a guerra devasta, a paz corrompe.
Destes sucessos me descobre a causa,
Celeste guia, e se da estirpe humana
Deve acabar-se assim vida e memória.”
“Esses que há pouco viste” (o anjo responde)
“Em opulento luxo e ovantes brindes,
Os mesmos são que dantes se ostentavam
Denodados heróis de ações ilustres,
Mas de virtude verdadeira faltos;
Os mesmos são que, tendo posto esmero
Em inundar de sangue humano o globo,
Em subjugar nações com fero estrago,
E deste modo ou de outro havendo obtido
Altos títulos, fama, e rico espólio,
Viraram de caminho e se lançaram
Na vil prostituição, no ócio, na gula, —
Té que da paz e da amizade o grêmio,
Pelo orgulho e lascívia envenenado,
Rebentou em vulcões de hostis desordens.
Reduzidos a escravos os vencidos,
Que Deus por maus abandonou na guerra,
Perderam com o bem da liberdade
Quanto neles havia de virtudes:
Frios no zelo e no temor divino,
Corruptos na opulência, e sem caráter
Para da temperança entrar nas provas,
Só querem, instam, conservar seguros
Os vergonhosos, dissolutos gozos,
Tais quais os seus senhores lhos permitam.
Assim geral a corrupção se torna;
E ficam no atro esquecimento ocultas
A sobriedade, a fé, a honra, a justiça.
Eis que um varão menoscabando do Orbe
As iras, os desprezes, os afagos,
Bom da perversidade entre os exemplos,
O só filho da luz no evo das sombras,
Exprobra aos homens seus nefandos crimes:
Da justiça os caminhos lhes aponta
Como cheios de paz e os mais seguros;
Profetiza dos Céus a ira tremenda
Que por impenitentes vai puni-los;
Porém escarnecido e desprezado
Voltará deles o que Deus reputa
O único justo desses férreos tempos.
Então, por ordem do Arquitipo augusto,
O varão (como vês) essa arca ingente
Fabricará, e nela há de abrigar-se
Ele e os seus, esquivando-se de um Mundo
A universal devastação votado.
Assim que se alojarem nesse asilo,
E os animais que à morte escapar devem,
Bem a coberto do furor equóreo, —
Rebentarão dos Céus as cataratas
E chuva no Orbe lançarão imensa,
Ao passo que do Abismo inteiro as fontes
Se desentalarão no crespo oceano
Que, ultrapassando todos os limites,
O globo cobrirá, ficando imersos
Nas fundas águas os mais altos montes.
Coa violência das ondas arrancado
Será pela raiz o monte do Éden,
E boiará, sem árvores, sem flores,
De seu rio nas túmidas correntes,
Té que se há de prender do golfo na orla,
Vindo a ser ilha nua e salsa um dia,
Só freqüentada de delfins e focas,
Co’os guinchos das gaivotas aturdida,
E daqui tira que jamais o Eterno
A sítio algum outorga santidade
Se de seus habitantes as virtudes
Não a plantam ali com puro zelo.
Ao que tem de seguir-se atende agora.”
Olha Adão: e vê da arca a mole ingente
Inda arfando nas águas do dilúvio,
Que já mais baixas decrescido haviam.
Do penetrante Norte os secos sopros
As nuvens pelos Céus afugentavam,
Dos mares enrugando a superfície;
E o claro Sol neste amplo aquoso espelho
Empregava sequioso ardentes olhos,
Bebendo à larga o mar que manso e manso
Também se escoava para o baixo Abismo,
Que já tinha cerradas as comportas.
Como vedara o Céu as catadupas.
Eis que não mais flutua imóvel a arca,
Parece fixa em tope de montanha.
Logo dos montes os aéreos cimos
Como pontas de escolhos se apresentam,
Donde as rápidas águas estrondosas
Vão-se em fúria meter no mar fuginte.
No entanto da arca se despede um corvo
Que não voltou. Mas logo fende os ares
Uma pomba, mais fida mensageira,
Buscando árvore ou ramo onde se firme;
Da vez primeira regressou baldada;
Porém no bico trouxe, da segunda,
Sinal de paz, um ramo de oliveira.
Então a terra se descobre enxuta:
Sai o varão e os mais viventes da arca.
E, tanto auxílio aos Céus agradecendo
Com levantadas mãos e olhar devoto,
Vê sobre a fronte nuvem orvalhada
Em que arco se debuxa amplo e formoso,
Com três listradas cores refulgente.
De Deus mostrando a paz e a nova aliança.
Adão, triste até ’li, mas desde logo
Em ondas de alegria transbordando,
O gozo de sua alma assim expressa:
“Ó tu, meu mestre, que mostrar-me sabes
Os sucessos por vir como presentes,
Nesta última visão tornas-me à vida
Vendo que da arca as criaturas todas
Escapam vivas do furor das águas,
Que a prole sua conservada fica.
Menos lamento o estrago do Orbe inteiro
Por meus perversos filhos habitado,
Do que folgo por ver que achou o Eterno
Um tão amável homem, tão virtuoso,
Por quem criar se digna um novo Mundo
E seus furores ocultar no olvido.
Porém... que indicam as listradas cores
Que, pelo Céu arqueadas, mostram visos
Dos sobrolhos do Eterno serenado?
Servirão elas de festão florido
Que as abas feche das aquosas nuvens
Para não ser de novo o Mundo imerso?”
“Bem conjecturas” (diz-lhe então o arcanjo):
“Deus de bom grado seu furor mitiga,
Inda que, há pouco, para a terra olhando
E vendo-a cheia, nos sentidos todos,
De carnal corrupção, fera injustiça,
Sentisse imensa mágoa, pesaroso
De ter feito o homem que se afoga em crimes.
Removidos os maus, tal graça encontra
Ante seus olhos um varão perfeito,
Que Deus por ele seu furor aplaca
Deixando inda viver a humana prole;
E promete que o mar contido em diques,
A chuva pelas nuvens estorvada,
A água subtérrea nos abismos presa,
Nunca jamais alagarão o Mundo.
Sempre que este arco tricolor, brilhante,
Sobre a terra, nas nuvens apareça,
Lembrem-se os homens que benigno o Eterno
Os aditou por tão feliz aliança.
Noites, dias, sazões, anos e séc’los,
Hão de seguir seus turnos té que o fogo
Abrase e purifique este Universo.
Então mais puro o Céu, mais puro o globo,
Serão de justos a morada eterna.”