Paulo/XXII

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Como um autômato, Paulo serviu de guia a Eugênio, chegando ao porto demandado.

Foi uma cena trágica a que deixo em branco por falta de cores próprias. Não há palavras, nem tintas com que se possa pintar ao vivo o doloroso sofrer do coração de uma extremosa mãe, que desfeita em pranto clama contra o mundo e contra todos, abraçando o filho que lhe saiu dos seios, cheio de vida, e que agora contempla a definhar-se.

Eugênio tratou logo de prevenir a consternada mãe, que não dissesse palavra a respeito dos amores de seu filho.

— Minha mãe!... minha irmã !... foram as únicas palavras que se ouviram dos lábios de Paulo ao entrar em casa. Daí nunca mais ouviu-se-lhe a voz. Debalde chamava-o sua mãe, sua irmã, ou seu amigo Eugênio: era mudo para todos.

Havia perto de um mês que mãe, irmã e aquele dedicado amigo velavam à cabeceira do infeliz, perdendo de dia a dia a esperança de vê-lo restabelecido, quando uma noite, a desoras, alguém os foi interromper da vigília, batendo fortemente na porta da rua.

Eugênio foi ver em era.

— Posso falar - perguntou a pessoa que batia - ao sr. Paulo?

— Queria entrar - respondeu Eugênio - se é seu amigo e quer vê-lo; mas falar-lhe será debalde, porque ele não responde a ninguém.

Era um homem todo vestido de preto, alto, magro e bastante desfigurado. Tinha as barbas crescidas, os olhos fundos e a fronte cheia de rugas.

Henriqueta e a mãe não o conheceram pelo seu semblante; ao ouvirem-lhe, porém, a primeira palavra, aceleradas saíram do quarto do doente, escondendo os rostos entre as mãos.

Tinham-no conhecido pela voz, apesar de rouca e pesada.

Era o comendador.

Paulo jazia na a cama com os olhos abertos e imóveis.

O comendador chegou-se a ele, e antes que lhe dirigisse a primeira palavra, acenou a Eugênio para retirar-se.

— Sr. Paulo - começou ele, ficando só com o doente e sentando-se ao seu lado -, perdão! Perdão, sr. Paulo!... Sou eu o culpado de todos os seus sofrimentos, de todos estes desgostos que entristecem a sua pobre família...! Perdoe-me... perdoe-me, que também tenho tragado todas as fezes da vida!...

— Ela o amava - continuou ele tomando as magras mãos do artista; - ela o amava e vivia toda entregue a esse amor... fui eu... eu próprio quem os malfadou quando viviam ambos à sombra da esperança tão risonha!... Pobres crianças, que podiam ser tão felizes!... Maldito seja eu, que os desgracei!...

Dizendo estas palavras, o comendador soluçava, apertando entre as suas as mãos de Paulo.

— Perdão! - tornou ele entre soluços. - Perdão meu infeliz amigo! Perdão, pelo amor de Emília!

Ao proferir ele o nome de sua filha Paulo, como um sonâmbulo que desperta, move os olhos, tira com arrebatamento as mãos dentre as mãos do comendador, e só levantando o corpo, senta-se no leito e exclama com força:

— Ela!... Quem proferiu aqui o nome dela? Quem? Quem foi?...

— O seu desnaturado pai! - respondeu o comendador, deixando cair a cabeça sobre o peito, e sem fazer o mais pequeno movimento de espanto com o arrebatamento de Paulo.

— Ah! - bradou Paulo - fostes vós?... Quem sois então? De onde vindes ? Quem vos contou a minha história?

— Quê - exclamou o comendador erguendo a cabeça - Será possível? Não me conhece, sr. Paulo? Olhe-me bem... vê?... Eu sou o malfadado no berço o que o será até a sepultura... o maldito entre todos os pais... eu sou o pai de Emília!...

— Ah! Sois vós! - disse Paulo em meia voz baixando os olhos.

O artista nesse instante recobrava todos os seus sentidos.

— Em casa de um pobre! - tornou ele carregando na palavra pobre - É uma ironia sr. doutor!

— É justo - murmurou o comendador; - é justo que eu trague mais este sarcasmo... infeliz de mim!

— Infeliz? - repetiu Paulo - Não sei por quê! Quando um pai faz a felicidade de sua filha, é um dos homens mais felizes do mundo, e o doutor tem feito a felicidade da sua.

— Vejo que ignora tudo - tornou o comendador. - O senhor ignora que eu sou um bastardo entre os felizes.

— Não o compreendo - murmurou Paulo.

— Pois ainda não lhe contaram?

— Nada sei, e nem sei o que se tem passado ao pé de mim desde que aqui cheguei.

— E nem sabe por que visto-me de luto? Por que tenho este rosto desfigurado ?

— Não sei.

O comendador prosseguiu com um tom trágico, que não lhe era natural, fixando seus olhos no rosto pálido do artista:

— Era a noite das núpcias de minta filha... estávamos todos contentes... todos felizes... havia festa e alegria; ninguém se lembrava dos tristes. Aqui dançavam uns... ali cantavam outros... e outros iam desfolhando flores pelos salões do festim... Estava o céu estrelado e minha filha à janela, ao lado de seu noivo, falava da felicidade... Depois ouve-se um grito... um grito agudo, que foi traspassando a todos os corações... Atônitos, incertos, todos correm, todos se confundem... O que tinha acontecido? Era ela, minha filha, que ansiava e debatia-se nos braços do seu noivo. Fujam... de mim, bradava a malfadada; ali... ali está ele, que vai matar-me... Depois, fazendo um esforço e fugindo dos braços que a sustinham, pôs-se de pé no meio da casa, murmurando moribundas frases que ninguém entendeu. Ouvem? - bradou a desgraçada um momento depois; dá meia-noite! E eu não ouvirei mais neste mundo o último som daquele relógio!... Um momento, e minha filha, soltando um segundo e mais agudo grito morria em meus braços murmurando: - Paulo! adeus para sempre! - E acabava de dar meia-noite!

— Sim, morreu! - bramou Paulo. - E sabe quem a matou?

— Deus - respondeu o comendador. - Para meu castigo!

— Fui eu - replicou Paulo com força -, por minha vingança!

E caiu em cheio sobre a cama.

O comendador levantou-se dando uma gargalhada.

Nesse momento a mãe de Paulo, Henriqueta e Eugênio, entravam no quarto.

— Acudam-no - disse-lhes o comendador saindo e soltando outra gargalhada; - acudam-no, o desgraçado está louco!

Paulo tinha morrido.

Louco, de fato, estava o comendador!

UM ANO DEPOIS

— Eu freqüentava o primeiro ano de medicina, quando, uma manhã saindo das aulas, fui topar no saguão da academia muitos rapazes em roda de um pobre homem, que entrava bastante enfermo para o hospital.

Lamentava-se o homem, porque o porteiro se opunha a que ele entrasse para a enfermaria acompanhado do seu cão.

Os rapazes fizeram-lhe ver que o porteiro cumpria com o seu dever. Ele, convencido que era impossível o que queria, fez um movimento para retirar-se, dizendo:

— Antes quero morrer por aí, debaixo de algum alpendre, do que separar-me deste animal.

— Está bom, homem - disse-lhe eu vendo-o retirar-se; - entre para a enfermaria; eu tomarei conta do seu cão até que o senhor recupere a saúde.

O homem parou e lançando-me um olhar expressivo pareceu por alguns instantes sondar-me até o fundo do coração.

— Ele o há de compreender - disse ele estendendo-me a mão -, trate-o como seu amigo. E fazendo um sinal ao cão, pôs-se este de pé.

O homem curvou-se, abraçou-o pelo pescoço e com os olhos umedecidos falou-lhe nos ouvidos apontando para mim:

— Olha, Sócrates; vês este senhor? É dele deste dia em diante que hás de ser amigo, ouvistes? Nós nunca mais nos veremos... adeus para sempre, Sócrates!

O cão sacudiu lentamente a cauda, deixou cair as orelhas, lambeu ou antes beijou os pés de seu senhor, e depois foi deitar-se a meus pés olhando como que entristecido para seu velho amo que sumia-se-lhe dos olhos.

De tantos moços que ali estavam presentes, pela maior parte, e naturalmente, inexpertos e levianos, travessos e irrefletidos, não houve um sequer que abrisse a boca para ridicularizar aquela triste cena; pelo contrário, uns me apertavam as mãos, enquanto outros afagavam o irracional. Foi que a cena, realmente, nos tinha comovido a todos.

Dali o cão acompanhou-me, como se nos conhecêssemos de muito tempo.

Deixei passar três dias, e no quarto fui à enfermaria visitar o velho amigo de Sócrates. Tinha-se-me afigurado um quê de romântico entre a sua e a vida do cão.

Desejei ouvir a sua história,

Demorei, porém, muito a minha visita e se a demorasse mais uma hora, teria visitado a um cadáver, pois que fui encontrar o homem quase moribundo.

Assentei-me junto à sua cabeceira, dei-me a conhecer e em seguida às primeiras palavras, pedi-lhe que me contasse o que pudesse da sua vida.

— Tendes lido - perguntou-me ele - os romances de George Sand?

— Alguns - respondi-lhe.

— Lestes Aldo o Rimador?

— Mais de uma vez.

— Então lembrai-vos da história do infeliz filho de Meg?

— Quereis ouvi-la? - tomei lhe. - Eu vô-la posso contar palavra por palavra?

— Para quê? Pergunte-vos por isso para poupar-me palavras, que bem perto de mim já vejo a morte.

Depois de ter-se calado por um momento, em que pareceu reunir algumas idéias, prosseguiu:

— Vivi, amei e sofri como Aldo; eis aí está toda a história da minha vida; com urna pequena diferença, e é que ao rimador salvou do suicídio o astrólogo Acroceronius, e a mim esse irracional que entreguei à vossa generosa proteção. Como Aldo, uma hora na minha vida também eu tentei suicidar-me. Já não tenho tempo para revelar-vos as muitas razões que me induziam a dar esse passo, e por isso vou adiante. Imaginai um homem fechado no seu quarto, na posição de desfechar nos ouvidos o tiro de uma pistola. Nesse instante batem com força na porta, o homem distrai-se, perde a posição e abre a porta. Entra um cão. O animal arrola-se aos pés do homem, geme agonizante, e com os olhos moribundos parece implorar o que quer que seja. O cão está envenenado, vem implorar a vida, que lhe querem roubar, ao homem que vai desfazer-se da sua! Antítese das antíteses!

— Toma, covarde, vive - diz o homem compreendendo o irracional e atirando-lhe um pouco de contraveneno. Vendo-o devorar o antídoto que lhe atirara, enxota-o da sua presença.

Mas o cão deixa-se antes bater do que sair dali. Teima o homem enraivecendo-se e com ele teima humilhando-se o cão.

— Não queres sair? - brada-lhe o homem vencido pela humildade. - Pois bem, aprende a morrer. - E tornando a fechar-se pôs-se na posição em que estava quando foi interrompido.

Um segundo e desfechou-se a pistola sem que a bala ofendesse um só fio dos cabelos do suicida, e isto porque no momento em que ia dispará-la o cão dá um pulo sobre ele e desvia-o da morte, fazendo ir disparar-se o instrumento a quatro passos de distância.

O homem lança um olhar feroz sobre o animal e este lambe-lhe os pés!

— Há dez anos - brada o homem dirigindo-se ao cão, que mais parecia humilhar-se pela lição que lhe dera -, há dez anos que o mundo não precisa de mim! Há dez anos que de mim tem feito o alvo do seu escárnio! O que, pois, pretendo eu mais ao mundo?

E depois de breve pausa, acrescentou afagando-o:

— Sim, é justo que eu também escarneça do mundo: obrigado pela lição irracional. Eu juro-te pela alma de minha mãe que o mundo deixou morrer de fome; pela alma de minha irmã, que o mundo prostituiu; juro-te, cão, que desta hora avante pertenço-te, sou teu escravo e só por ti viverei.

— Dessa hora em diante - prosseguiu o doente com voz sumida -, o homem dedicou-se todo a esse cão. Um dia, porém, veio a desgraça e os separou. O homem precisou de um enxergão onde morresse e a caridade dando-lhe o enxergão, opôs-se a que ele repartisse com o seu cão o leito de morte que lhe davam. Esse homem - disse o doente desfalecendo -, fui... eu... o cão é... Sócrates.

Disse e expirou.

Um ano depois das cenas que ficam descritas no capítulo XXII, no silêncio da tarde serena sentados todos à porta de sua casa, Eugênio, que o infeliz Paulo deixara em seu lugar à sua mãe, e que no sossego da pobreza fora regenerar as crenças nos olhos da irmã do artista, contava com aquele ar triste da saudade que ameniza as recordações, este capítulo truncado da vida do pobre Sócrates.