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Per amica silentia lunae

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Dante, Inf. C. 1.º

I

Eu amo a noite ás horas socegadas
Que o Senhor manda á terra, como balsamo
A tanta dôr que a punge, e o sol do dia
Parece escarnecer com tanto brilho,
Nem sabe respeitar; quando o silencio
Com manto protector envolve os tristes,
Os que choram saudades; quando o orvalho
Refresca o seio á flôr, e em cada balsa
A viração prepassa suspirando;
Quando é mais puro o ár, mais doce a brisa,
Mais sumidos, mais vagos os rumores,
E detraz da montanha, saudosa
Como a virgem dos sonhos, surge a lua.

II

Eu amo então a noite. — Paz e esperança
A quem soffre, buscando algum allivio;
Ao feliz exultando de alegrias
A lembrança de Deus a quem as deve;
A quem descreu de achar inda na terra
Ventura que lhe foge... o olvido ao menos;
A toda a crença um exultar de affectos;
A todo o desconforto, uma esperança;
A toda a natureza, amor e vida;
Eis o thesouro santo que nos abre
— A nós e ao mundo — a noite, eis seu tributo.

É doce então abrir os seios d'alma
Aos effluvios do céo: flor que hão crestado
Ardentias do sol, e ainda timida
Palpitando entre o susto e a esperança,
Retoma agora aos poucos novo alento
Ao sentir-se segura, e abrindo o calix
Estremece de amor a cada gôtta
Dos orvalhos do céo: como que a vida
Solta de tanto laço que a comprime,
Como gaz que ao calor se ha dilatado,
Se expande livre agora e cresce e absorve
Em si mil harmonias, mil poderes
Que esse universo tem: como as correntes
Occultas, que os oceanos communicam,
A natureza e o espirito permutam
Sympathias e forças, em que a alma
Mais cresce e mais comprehende, e mais abrange,
E n'este permutar de força e força
Quasi na vida universal se funda.

III

Passa a lua; do alto olhando a terra
Procura o triste por lhe dar allivio;
Prepassa a viração e busca do ermo
A florinha minada que refresque;
Corre manso o regato, e banha a erva
Que um pé calcou, e o sol deixou crestada;
Tremúla a estrella, symbolo de esperanças,
Enviam-se harmonias as espheras;
Tudo amor, tudo affectos communica;
E o espirito do homem busca livre
Da sob'rana harmonia a eterna fórmula,
Do eterno amor o fóco, a patria sua.

Lembranças de um viver já pressentido,
Ou memorias — talvez — de uma outra vida,
Que nos relembra vaga, e como em sonhos,
E sobre o fundo d'esta se destacam
Como pela penumbra um vulto incerto...
Aspirações, memorias, ou saudades,
O que nos enche o peito e nos enleva
Como um sonho de amor — e mais ainda —
Senão este mysterio do futuro,
Esta attracção do sêr a vida nova,
Que se foge e se busca e nos revela
A vida universal, então sentida
Mais forte na harmonia do Universo?

IV

Busca-se, anceia-se, e o alvejar da campa
Mais que o sorriso de uma amante é doce;
A lembrança da morte mais que a esp'rança
Do poder ou da gloria nos enleva;
Terrores, incertezas se dissipam,
E sem saudade, sem temor se anhela
Mais mundo, mais espaço, e viver novo!

V

E quem pode temer? Teme o que um dia
Sonhou na mente uma ambição terrena
E mais não vê por todo esse universo,
E além d'elle não vê sublime e grande:
O, que engolfado nos prazeres do mundo,
Esqueceu o seu Deus e seus destinos
Nem sonha mais ventura além da campa:
O que pungido por cruel espinho
De uma duvida atroz, sente a cada hora
Cahir-lhe a uma e uma cada crença
De sobre alma, deixando-a erma e nua,
Como as humidas prégas de um sudario,
Aos poucos desdobrado, deixam vêr-se
Os descarnados membros do cadaver.

VI

Mas quem se assenta ás horas do mysterio,
Entre as flôres do prado, ou sobre a encosta
Da collina virente e olhando a lua
Que banha em luz a esphera crystallina,
Inveja quem habita n'esses mundos...
E fita o olhar por esse espaço, e cuida
Sondar-lhe o infinito; quem anhela
Desvendar-lhe os mysterios e buscando
A região que se sonha e não se avista
Dal-a por patria á sua alma... oh! esse
A viagem não teme, antes anceia,
Quebrada a fórma d'este sêr, alar-se
Em busca de outra mais perfeita, e sempre
De degráo em degráo, de esphera em esphera,
— Metempsycose eterna! — sublimar-se
Na progressão d'este ascender constante
Da parte ao todo, do mortal principio
Em busca de um futuro inattingivel,
Porém melhor cada hora, e a cada passo.

E quem pode temel-a, essa viagem,
Quando fitando o olhar no alto, avista
Banhado em luz o espaço immenso e puro,
Patente e franca a estrada do Universo,
E como que visivel o infinito?
Quando tudo no céo e pela terra
Parece, como irmão, dar-nos confiança
Em nós e em si para seguir avante?
Quando se sente palpitar no seio
Não só já a mesquinha vida propria
Mas todo o grande sêr do que é creado?
Quando nas aras do Universo, o espirito
Communga, como irmão, na mesma crença,
Com tudo quanto vive, e a mais aspira,
Ah! quem pode temer, noite de encanto,
Noite pura e sagrada ao Deus de affecto,
Protegido por tua luz amiga,
A aspiração dos immortaes destinos.
Um pouco mais ao peregrinar constante,
A entrevista do infinito e do homem?

VII

Por ti, noite de amor, por ti nos desce
Tanta ventura ao seio; e como o orvalho
Que o pó da terra ressequido e árido,
Que o vento impelle, fixa sobre o sólo
E como que consola e allivia,
Assim como teu effluvio o triste espirito
Que incerto das paixões refoge á duvida,
N'uma crença fixaste — a crença eterna
Do amor universal, todo harmonias,
Porque és affectos toda! Em cada balsa
Descanta um rouxinol; a cada rosa
Uma brisa osculou; em cada fonte
Brilha um raio da lua; em cada peito
Murmura um ecco que de amor só falla!

Mosteiro da Batalha, 1861.