Perfeição das obras de Deus (edição de 1877)

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PERFEIÇÃO DAS OBRAS DE DEUS

A filha. — Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.

A mãe. — Vou-te dar outra.

A filha. — Como se fazem as agulhas, mamã?

A mãe. — Vê se adivinhas.

A filha. — Nã sei, mamã.

A mãe. — Conheces os metaes?

A filha. — Conheço mamã; tenho lá dentro muitos bocadinhos dentro de uma caixa.

A mãe. — Ora muito bem, dize-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de marmore?

A filha. — Oh! não; são de metal; mas de que metal?

A mãe. — Antes de perguntar qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.

A filha. — Ora espere!... uma agulha é de metal: não é de prata, porque não é branca; não é de oiro, porque não é de um lindo amarello muito brilhante; não é de cobre, porque não é de um amarello muito feio, que cheira mal... Então é de ferro, mamã?

A mãe. — Adivinhaste.

A filha. — Mas, mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.

A mãe. — É que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já se não chama ferro, é aço.

A filha. — Bem, as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é que as fazem.

A mãe. — É impossivel, não és capaz d'isso; mas hei de levar-te a uma fabrica onde se fazem agulhas. Has de vel-as fazer, e has de gostar muito.

A filha. — Tinha vontade de saber como se fazem todas as coisas de que nos servimos.

A mãe. — Tens razão; é uma vergonha ignoral-o.

A filha. — Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.

A mãe. — Olha, ahi tens o meu estojo.

A filha. — Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade ha de ser necessaria para fazer uma coisinha tão delicada!

A mãe. — Lembras-te de ver na feira um carrinho de marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?

A filha. — Lembro, mamã; era tão bonito!

A mãe. — Li n'um jornal allemão que um operario chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro d'este copo havia mais doze...

A filha. — Que pequeninos deviam ser os doze copos para caberem n'um grão de pimenta!

A mãe. — E ainda não é tudo; cada um d'esses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no pé.

A filha. — Que vontade eu tinha de ver isso!

A mãe. — Tens razão de te admirares da habilidade dos homens. É effectivamente espantoso, e deve saber-se, o modo porque se fabricam certas coisas; comtudo ainda ha outras obras mais dignas de admiração.

A filha. — Quaes, mamã?

A mãe. — Já t'o digo. (Levanta-se.)

A filha. — Que quer, mamã?

A mãe. — Quero que vejas o microscopio de teu papá.

A filha. — Pois sim; eu gosto de olhar pelo microscopio.

A mãe. — Este é magnifico, e augmenta prodigiosamente os objectos. Vaes ver a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina, lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?

A filha. — Meu Deus, que coisa tão feia! que agulha tão grosseira!

A mãe. — Vês-lhe buracos, riscos, asperesas, não é verdade?

A filha. — Parece um prego muito grande e muito mal feito.

A mãe. — Pois todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá por ellas.

A filha. — O operario que fez esta agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscopio.

A mãe. — Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.

A filha. — O quê, mamã?

A mãe. — O aguilhãosinho de uma abelha.

A filha. — Oh! que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é brilhante!... Mas já sei que visto ao microscopio ha de acontecer o mesmo que com a agulha.

A mãe. — Prompto: olha.

A filha (olhando). — É exquisito, mamã!

A mãe. — Então?

A filha. — Augmentou, augmentou como a agulha, mas não é áspero, pelo contrario, é perfeitamente liso... A agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãosinho da abelha tem uma ponta tão fina como um cabello. Porque será isto, mamã?

A mãe. — É porque o operario que fez este aguilhão é muito mais habil do que o que fez a agulha.

A filha. — Quem é esse operario tão habil?

A mãe. — É o mesmo que fez o ceo, os astros, a terra, as plantas e as creaturas.

A filha. — É Deus.

A mãe. — Exactamente. Pois não é Deus que fez as abelhas e todos os animaes?

A filha. — De certo.

A mãe. — Foi elle por conseguinte que fez o aguilhão d'esta abelha; e ahi tens porque o aguilhão é superior á agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo microscopio. Aqui está um pedacinho de musselina finissima. Olha pelo microscopio; o que é que vês?

A filha. — Vejo uma rede grossa, desegual, muito mal feita.

A mãe. — Aqui tens agora um pedacinho de renda delicadissima.

A filha. — Essa estou bem certa que ha de ser linda, mesmo vista pelo microscopio.

A mãe. — Então?

A filha. — É horrorosa... Parece feita de pellos grosseiros com grandes buracos deseguaes.

A mãe. — As obras do homem são todas assim.

A filha. — Oh! mamã, vejamos agora as obras de Deus.

A mãe. — Sabes o que é isto?

A filha. — Sei, mamã, é um casulo de bicho de seda.

A mãe. — Os fiosinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha pelo microscopio a ver se te parecem deseguaes.

A filha (olhando pelo microscópio). — Não, mamã; os fios são todos eguaes, e o casulo é sempre muito liso, muito brilhante.

A mãe. — É porque é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que ha sobre este papel?

A filha. — Pontinhos feitos com tinta e manchasinhas redondas feitas também com tinta.

A mãe. — Estes pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?

A filha. — Sim, mamã, perfeitamente redondos.

A mãe. — Vê-os agora ao microscopio.

A filha. — Oh! já não são redondos, são todos deseguaes.

A mãe. — Tira o papel; vejamos a obra de Deus. É uma aza de borboleta; vês que está mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscopio; o que é que vês?

A filha. — Vejo a mesma coisa que via sem o vidro, só com a differença que agora é maior. Que bellas que são as obras de Deus!

A mãe. — Merece bem a pena estudal-as.

A filha. — De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as obras dos homens.

A mãe. — E sempre e em tudo has de encontrar defeitos nas obras do homem, emquanto que as obras de Deus, quanto mais se observam, mais perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira é que Deus merece tanto a nossa admiração como o nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente bello, perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias de imperfeições, se as compararmos com as obras do Creador.