Peter Pan (Lobato, 1935)/Capítulo 1

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CAPITULO I


PETER PAN



QUEM já leu as Novas Reinações de Narizinho[1] deve estar lembrado que naquela noite de circo, no sitio do Picapau Amarelo, o palhaço havia sido raptado misteriosamente. Raptado por quem? Todos ficaram na duvida, sem saber o que pensar do estranho acontecimento. Todos, menos o gato Felix. Esse figurão afirmava que o autor do rapto só poderia ser uma criatura — Peter Pan.

— Foi ele ! disse o gato Felix. Juro como foi Peter Pan.

Mas quem era Peter Pan? Ninguem sabia, nem a propria dona Benta, a velha mais sabida de quantas existem.

— Pois se não sabe, gritou Emilia, trate de saber. Nós não podemos ficar assim na ignorancia. Onde já se viu uma velha de oculos de ouro ignorar o que um gato sabe?

Dona Benta calou-se, achando que era mesmo uma vergonha que o gato Felix soubesse quem era Peter Pan e ela não — e escreveu a uma livraria de S. Paulo pedindo que lhe mandassem a historia do tal Peter Pan. Dias depois recebeu um lindo livro em inglês, cheio de gravuras coloridas, dum tal J. M. Barrie. O titulo da obra era Peter Pan and Wendy.

Dona Benta leu o livro inteirinho e depois disse :

— Pronto ! Já sei quem é o senhor Peter Pan, e sei melhor que o gato Felix, pois duvido que ele haja lido este livro.

— Está claro que não leu, observou Emilia. Ele só lê ratos. Lê com os dentes...

— Se leu, conte, vóvó! gritou Narizinho. Andamos ansiosos por conhecer a historia desse famoso menino.

— Muito bem, disse dona Benta. Como hoje já é muito tarde, começarei a historia amanhã, ás sete horas. Fiquem todos avisados.

No dia seguinte, de tardinha, a curiosidade dos meninos começou a crescer. A's seis e meia já estavam todos na sala, em redor da mesa, á espera da contadeira. Emilia olhava para o relogio pensativamente. Quem entrasse em sua cabeça havia de encontrar lá esta asneirinha : "Que pena os relogios não andarem de galope, como os cavalos! Nada me amola tanto como esta maçada de esperar que chegue a hora das coisas — a hora de brincar, a hora de dormir, a hora de ouvir historias..."

Pedrinho matava o tempo arrepiando xizes no veludo de uma velha almofada — com o dedo. E Narizinho, no seu vestido novo de rosinhas côr de rosa, fazia exercicio de "parar de pensar" — uma coisa que parece facil mas não é. A gente, por mais que faça, pensa sem querer.

Faltava o visconde. O velho sabio, depois que se meteu a estudar matematicas, fazia tudo com "precisão matematica", que é como se diz das pessoas que não fazem as coisas mais ou menos, e sim certinho. Quando bateu sete horas ele entrou, em sete passadas, cada uma correspondendo a uma pancada do relogio. Logo depois surgiu dona Benta.

— Viva vóvó! gritaram os meninos.

— Viva a historia que ela vai contar ! berrou Emilia.

Dona Benta sentou-s na sua cadeira de pernas serradas, subiu para a testa ps oculos de aro de ouro e começou :

— Era uma vez uma familia inglesa...

— Espere, sinhá! Não comece ainda, gritou lá da copa tia Nastacia. Eu tambem faço questão de conhecer a historia desse pestinha. Estou acabando de lavar as panelas e já vou.

Dona Benta esperou que a negra chegasse, apesar do protesto da Emilia, que disse : "Fedor! Para que precisa uma negra beiçuda saber a historia de Peter Pan?"

Tia Nastacia veio e escarrapachou-se no assoalho, entre o visconde e a menina. Só então dona Benta começou de verdade.

— Havia na Inglaterra uma familia inglesa composta de pai, mãe e tres filhos — uma menina de nome Wendy (pronuncia-se Uêndi), que era a mais velha; um menino de nome João Napoleão, que era o do meio; e outro, de nome Miguel, que era o caçulinha. Os tres tinham o sobrenome de Darling, porque o pai se chamava não sei que Darling. Esses meninos ocupavam a mesma "nursery" numa linda casa de Londres.

— Nursery ? repetiu Pedrinho. Que vem a ser isso ?

— Nursery (pronuncia-se nârseri) quer dizer em inglês quarto de crianças. Aqui no Brasil quarto de criança é um quarto como outro qualquer e porisso não tem nome especial, Mas na Inglaterra é diferente. São uma beleza os quartos das crianças lá com pinturas engraçadas rodeando as paredes, todo cheio de moveis especiais e de quanto brinquedo existe.

— Boi de xúxú tem ? indagou Emilia.

— Talvez não tenha, porque boi de xúxú é brinquedo de meninos da roça e Londres é uma grande cidade, a maior do mundo. As crianças inglesas são muito mimadas e têm os brinquedos que querem, porque na Inglaterra os brinquedos não custam os olhos da cara, como aqui. E que bons e bonitos são !

— Por que, vóvó, os brinquedos no Brasil custam tanto dinheiro e são tão ordinarios ? quis saber Pedrinho. Aquele urso que a senhora me deu no ultimo Natal, por exemplo custou cinco mil réis e nem bem saiu da caixa ja derrubou o rabo e entortou a orelha.

— Por causa dos impostos, meu filho. Ha no Brasil uma peste chamada governo que vai botando impostos o selos em todas as coisas que vêm de fóra, a torto e a direito, só pela ganancia de arrancar dinheiro do povo para encher a barriga dos parasitas. Quando você for presidente da Republica trate de fazer uma lei que acabe com essa pouca vergonha de cobrar altos impostos até sobre cavalinhos de pau, trenzinhos de folha, patinhos de celuloide, gaitas de assoprar, bonecas, etc. Tome nota para não esquecer.

Pedrinho tomou nota numa capa de livro da lei tão necessaria ao Brasil e dona Benta continuou :

— Pois é isso. Essa nursery era um encanto. Imaginem que quem tomava conta das crianças era a Nana.

— Alguma criada ?

— Não. Uma cachorra muito inteligente. Era Nana quem dava banho na criançada, quem as vestia para dormir e tudo mais — e muito direitinho.

Na noite em que a nossa historia começa, Nana estava cochilando perto da lareira, com a cabeça entre as patas, enquanto no comodo pegado o senhor e a senhora Darling se preparavam para uma visita a uns parentes. Quando o casal saia de noite quem ficava tomando conta dos meninos era sempre a cachorra.

Nisto o relogio bateu sito horas — bem, bem, bem, bem, bem, bem...

— A senhora errou, dona Benta, disse logo Emilia, que não deixava escapar coisa nenhuma. A senhora só bateu seis bems.

Dona Benta riu-se.

— Não faz mal, disse ela. Os dois que faltam ficam subentendidos. Mas o relogio bateu oito horas e Nana ergueu-se e espreguiçou-se, porque a ordem da senhora

Darling era fazer a criançada ir para a cama a essa hora justa. Depois Nana acendeu a luz eletrica.

— Como?

— Ela sabia agarrar com a boca na chave da luz e torcer. Estava acostumada a fazer isso. Acende a luz e foi ver os pijamas de cada um. E foi ao banheiro abrir a torneira de agua quente e fria, experimentando a agua com a pata para ver se estava no ponto.

— Que danada ! Por que a senhora não nos arranja uma cachorra assim, vóvó?

— Por que vocês só querem saber de onças e rinocerontes e bichos esquisitos. Mais deixem estar que ainda ponho um cachorrinho aqui no sitio.

— E ha de chamar-se Japi! gritou Emilia, que sempre fora a botadeira de nomes. Mas continue, dona Benta. Encheu a banheira d'agua e que mais?

— Preparou a agua do banho e foi buscar Miguel, que era o menorzinho, e Miguel veio montado nela, dando esporadas. Nana o fez apear-se e entrar n'agua e foi fechar a porta para que não houvesse corrente de ar. Depois de acabado o banho, deu o pijaminha para ele vestir e o levou para a cama.

Nesse momento a mãe dos meninos entrou no quarto para ver se estava tudo em ordem. Agradou a todos, um por um, prometeu um passeio ao jardim zoologico, para que vissem a enorme goela vermelha do hipopotamo e o pescoço que não acaba mais da girafa. Depois contou uma historia linda.

— Que historias ela contava? perguntou Emilia.

— Quantas existem. As mesmas que já contei a vocês e muitas outras. Depois distribuiu beijos, dizendo: "Agora tratem de dormir." Acendeu uma lamparina de luz muito fraca, apagou a luz eletrica e ia saindo na ponta dos pés, quando notou uma sombra esquisita na parede — uma sombra que vinha da rua. Voltou-se de repente e viu do lado de fóra da janela o vulto dum menino.

Assustou-se, está claro, porque as boas mães se assustam por qualquer coisinha, e correu a fechar a vidraça. Fez isso tão depressa que a sombra não teve tempo de retirar-se e foi guilhotinada. Por essa e outras é que as tais vidraças de subir e descer, como as nossas aqui do sitio, são chamadas "vidraças de guilhotina".

— E que é guilhotina? perguntou Emilia, que pela primeira vez ouvia essa palavra.

Dona Benta explicou que era uma certa maquina de cortar cabeça de gente, inventada por um medico francês de nome Guillotin. Isso durante o terrivel periodo da Revolução Francesa, um tempo em que cortar cabeça de gente se tornou a preocupação mais séria do governo. E Pedrinho, já lido na Historia do Mundo, lembrou que o proprio doutor Guillotin teve a sua cabeça cortada por essa maquina.

— Bem feito! disse Emilia. Quem manda...

— Bom, chega de guilhotina, gritou Narizinho. Continue, vóvó. A senhora Darling guilhotinou a cabeça da sombra e que fez depois?

— Ao ver cair no chão a cabeça da sombra, como se fosse um pedaço de gaze negra, ela murmurou: "Que fato estranho !" Depois abaixou-se, pegou a cabeça da sombra e examinou-a á luz da lamparina, com cara de quem diz : "Nunca ouvi contar dum fato semelhante ! E' dessas coisas que até parecem invenção." Em seguida dobrou a sombra, bem dobradinha, guardou-a na gaveta de Wendy e retirou-se do quarto, pensativa.

— E os meninos? indagou Narizinho. Nada viram ?

— Os meninos nada perceberam. Quando a senhora Darling deu com a sombra na parede, eles já iam caindo no sono.

O quarto ficou mergulhado em silencio profundo. Todos dormiam, e até a chama da lamparina parecia cochilar, de tão quietinha. Mas de repente essa luz tremeu tres vezes e apagou-se.

— Por que? indagou Narizinho.

— Algum besouro, sugeriu Emilia.

— Não, disse dona Benta. E' que havia entrado pela janela uma pequena bola de fogo.

— Como havia entrado pela janela, se a janela estava fechada? berrou Emilia.

— Isso não sei, disse dona Benta. O livro nada conta. Mas como fosse uma bola de fogo magica, o caso se torna possivel. Para as bolas de fogo magicas tanto faz uma janela estar aberta como fechada. Ela acha sempre jeito de entrar. Do contrario não valia a pena ser bola magica. Entrou e começou a esvoaçar em todas as direções, muito aflitazinha, como quem anda atrás dalguma coisa.

— Já sei, interrompeu Narizinho. Estava procurando cabeça da sombra.

— Talvez fosse isso, concordou dona Benta, porque depois de varias voltas pelo ar a bola parou defronte do armario de Wendy e entrou na gaveta pelo buraco da fechadura.

— E houve um incendio, já sei ! gritou Emilia. Bola de fogo em gaveta de armario é incendio certo. A cidade de Londres vai ser destruida...

— Crédo ! exclamou tia Nastacia, que estivera cochilando e acordara naquele ponto. Não fale assim, Emilia, que é mau agouro.

— Não houve incendio nenhum, disse dona Benta. Bola de fogo magica não pega fogo nas coisas.

— Então que aconteceu ? perguntou a menina.

— Nada. A bola ficou na gaveta, e nesse mesmo instante a janela foi erguida pelo lado de fóra. A cabeça dum menino apareceu. Apareceu, espiou de todos os lados e pulou para dentro do quarto, sem fazer o menor barulho.

— "Sininho, Sininho! Onde está você, Sininho? indagou ele em voz bem baixa.

— "Tlin, tlin, tlin, foi a resposta da bola de fogo, lá dentro da gaveta.

O menino dirigiu-se pé ante pé na direção dos tlins, abriu a gaveta e remexeu-a toda, até encontrar a cabeça da sombra. Pela cara alegre que fez via-se que era o dono dela.

— Que engraçado! exclamou Emilia. Só agora noto que todos nós temos a nossa sombra, que é só nossa e de ninguem mais. Infelizmente a minha sombra não é de gaze, como a desse menino. E' de ar preto.

— E que fez ele, vóvó, depois de achar a sombra? perguntou a menina.

— Que fez? Tirou-a da gaveta, desdobrou-a e tratou de emenda-la no resto, porque desde que a senhora Darling desceu a janela ele ficou com a sombra sem cabeça — ou decapitada. Mas isso de emendar sombra não é coisa facil. Exige pratica. O menino tentou primeiro gruda-la com cuspo. Não grudou. Lembrou-se de a colar com sabão. Tambem não colou. O menino ficou atrapalhado.

— Se fosse eu, disse Emilia, experimentava uma bisnaga de Cola-Tudo. O que cola tudo, deve colar sombra tambem.

— E onde achar a tal bisnaga de Cola-Tudo?

— Toda as nurserys devem ter uma bisnaga de Cola-Tudo para colar os brinquedos. Eu, se fosse a senhora Darling...

— Está bem, Emilia, mas páre de falar. Não atrapalhe mais. Continue, vóvó.

Dona Benta continuou :

— A cabeça não colava de jeito nenhum, de modo que o menino foi tomado de grande desespero. Isso de ter sombra sem cabeça parece ser uma coisa terrivel ; pelo menos para aquele menino, pois escondeu a cara nas mãos e pôs-se a chorar tão alto que Wendy acordou e sentou-se na cama, muito admirada.

— "Por que está chorando? indagou ela.

Em vez de responder, o menino enxugou depressa os olhos com as costas da mão e fez um bonito cumprimento com o gorro vermelho. Depois disse :

— "Eu ha muito tempo que ando querendo saber qual é o seu nome.

— "Meu nome é Wendy Darling, respondeu a menina. E o seu?

— "Peter Pan.

— "E onde mora o senhor Peter Pan ?"

— "Moro na rua das casas, numero das portas.

Wendy riu-se daquela molecagem e puxou prosa. Conversa vai, conversa ven, ficou sabendo que Peter Pan era um menino sem pai, nem mãe, que vivia solto pelo mundo e agora estava muito atrapalhado por ter perdido a cabeça de sua sombra.

— "Não gruda, nem com sabão, disse ele fazendo bico.

— "Bobo! exclamou Wendy rindo-se. Com sabão está claro que não gruda. Sabão só gruda nota velha. Sombra tem que ser costurada com retroz, quer ver? e sem esperar resposta pulou da cama, foi á sua mesinha de costura, abriu a cesta e tirou uma agulha já enfiada. Ajeitou a cabeça da sombra no resto da sombra e num instante alinha vou-a com retroz preto. Ficou que ninguem percebia a emenda.


— "Pronto ! Vê como está bem agora ?

Peter Pan pulou de contentamento. Deu varias voltas pela nursery, num verdadeiro namoro com a sua sombra concertada.

— "Eu sou mesmo um danado ! exclamou por fim, todo chelo de si.

Tamanha gabolice espantou Wendy. Ela havia concertado a sombra e o prosa chamava para si as honras! Já se viu uma coisa assim?

— "Danado, você? disse a menina com ironia. Se fui eu quem costurou a sombra como o danado pode ser você, sêo prosa?

— "Sim, disse o menino ; você ajudou um pouco, não nego.

— "Ajudou! repetiu Wendy imitando-lhe o tom de voz. Pois nesse caso, passe muito bem! Não gosto de gente gabola.

Disse e pulou para a cama, deitando-se e cobrindo a cabeça com a colcha.

Peter Pan desapontou e fez cara de arrependido.

— "Oh, não se ofenda, Wendy ! Eu tenho esse defeito. Sou gabola de nascença. Quando qualquer coisa de bom me acontece, ponho-me sem querer a contar prosa. Seja boa. Perdôe-me. Reconheço que uma menina vale mais do que vinte meninos.

— Isso tambem não ! protestou Pedrinho. Só se lá na Inglaterra. Aqui no Brasil um menino vale pelo menos duas meninas.

— Olhem o outro gabola ! disse Narizinho. Vóvó já disse que louvor em boca propria é vituperio.

— Wendy, continuou dona Benta, enterneceu-se com o tom daquelas palavras e sentou-se de novo na cama, descobrindo a cabeça. Estava risonha e contente.

— "Peter Pan, disse ela, você bem que merece um beijo. Quer?

O menino ficou no ar, sem compreender. Menino sem mãe é assim, nem beijo sabe o que é. Beijo ! pensou ele consigo. Que seria isso de beijo ? Com certeza era aquele copinho de prata que Wendy tinha posto no dedo quando tomou a agulha para coser a sua sombra. Não podia ser outra coisa.

— "Quero, respondeu ele, e foi logo tirando o dedal do dedo de Wendy e colocando-o no seu, certo de que beijo queria dizer dedal. Depois, para retribuir a gentileza, perguntou á menina se ela aceitava um beijo dele.

— "Aceito, sim, respondeu Wendy, que estava achando muito curioso aquilo.

— "Pois tome este, disse Peter Pan arrancando um dos botões do seu casaco e apresentando-o á menina com toda a seriedade.

— Ja sei, gritou Emilia. Beijo para ele significava presente, um presente qualquer. Que bobissimo !

— Wendy, continuou dona Benta, recebeu o botão e ficou de olhos postos em Peter Pan. Subito, perguntou :

— "Que idade você tem, Peter Pan ?

— "Não sei. Só sei que sou bastante criança. Fugi de casa no mesmo dia em que nasci.

— "No mesmo dia em que nasceu ? Que ideia ! E por que, meu caro ?

— "Porque ouvi uma conversa entre meu pai e minha mãe sobre o que eu havia de ser quando crescesse. Ora, eu não queria crescer. Não queria, nem quero nunca virar homem grande, de bigodeira na cara, feito tatorana. Muito melhor ser sempre menino, não acha ? Por isso fugi e fui viver com as fadas.

Wendy quasi perdeu a fala de tanto gosto, ao saber que estava diante dum menino conhecedor de fadas. Ela ouvia sua mãe contar historias de fadas, mas não havia nunca falado com alguem que as conhecesse pessoalmente.

— "E' verdade isso, Peter ? Ha mesmo fadas ou você está a mangar comigo?

— "Verdade, sim, Wendy. Não muitas, mas ha.

— "E de onde vêm elas ?

— "Então não sabe, Wendy ? Parece incrivel ! Não ha quem não saiba disso...

— "Pois eu não sei. Conte.

— "Foi assim. A primeira fada apareceu no mundo no dia em que a primeira criança nascida deu a primeira risadinha.

— "Oh, nesse caso deve haver uma fada para cada criança do mundo, porque todas as crianças dão uma primeira risadinha, observou Wendy.

— "Assim devia ser, confirmou Peter Pan, se as fadas não fossem as criaturas mais faceis de morrer que existem. Morrem como passarinhos. Cada vez, por exemplo, que uma criança diz que não acredita em fadas, morre uma delas.

Aqui tia Nastacia interrompeu a narrativa para dizer :

— Para mim esse menino estava empulhando dona Wendy. Estou velha e só vi fadas nas historias.

— Cale a boca ! berrou Emilia. Você só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda...

— Mais respeito com os velhos, Emilia! advertiu dona Benta. Não quero que trate tia Nastacia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fóra.

— E' o pigmento, disse o visconde. Isso de brancuras e preturas não passa de maior ou menor quantidade de pigmentos nas celulas da pele.

Emilia, que não sabia o significado de pigmento, veio logo com a sua celebre respostinha: "Pigmento é o seu nariz," mas dona Benta apoiou o visconde, dizendo que era aquilo mesmo, que os pretos são pretos porque têm muitos pigmentos na pele.

— Mas que é esse tal pigmento, vóvó?

— Pigmento é como os sabios chamam a qualquer substancia colorida que tinge os tecidos duma planta ou dum organismo animal. A rosa vermelha é vermelha por causa dos pigmentos vermelhos que possue nas petalas e os negros são negros por causa dos pigmentos negros que possuem na pele.

— Quer dizer, observou Emilia, que se os pigmentos de tia Nastacia fossem côr de burro quando foge ela não seria negra e sim uma burra fugida...

— Chi, meu Deus! exclamou Narizinho. Como a Emilia está asneirenta hoje...

— E' a lua, disse tia Nastacia. Já reparei que em tempo de lua cheia Emilia dá para espirrar bobagem que nem torneira aberta que a gente quer tapar com a mão.

Emilia botou-lhe a lingua e dona Benta prosseguiu :

— Mas vamos ao caso. Vocês me interrompem tanto que a historia não pode chegar ao fim. Peter Pan contou a Wendy como as fadas nascem, e ao falar em fada lembrou-se da bola de fogo que havia entrado na gaveta. Era uma fada, essa bolinha, e muito sua amiga. Uma fada que fazia tudo que as outras fadas fazem, menos falar. Sua fala não passava daquele tlin, tlin, tlin de campainha de prata.

Assim que Peter Pan se lembrou da bola de fogo, ou Sininho, como era o seu nome, um tlin, tlin, tlin zangado se fez ouvir dentro da gaveta.

— "A pobre! exclamou Peter Pan. Deve estar furiosa comigo por ter-me distraido com você e esquecido dela. Sininho é ciumentissima.

De fato. Sininho saiu da gaveta furiosa. Esvoaçou pelo quarto por uns instantes, indo afinal esconder-se num canto, emburrada. Eram ciumes de Wendy. Mas a menina não deu nenhuma importancia áqueles maus modos; continuou a conversar com Peter Pan como se não houvesse visto nada.

— "Vamos, Peter Pan ! disse ela. Conte-me mais alguma coisa da sua vida. Conte onde mora, mas de verdade.

— "Moro com os meninos perdidos.

— "Fiquei na mesma, retorquiu Wendy. Quem é essa gentinha? Nunca ouvi falar em meninos perdidos.

— "Meninos perdidos são os meninos que caem dos carrinhos nos jardins publicos quando as amas se distraem a namorar os soldados. Se as mães deles não conseguem encontra-los no praso de quinze dias, eles são remetidos para a Terra do Nunca, onde quem manda sou eu.

— "Que engraçado! exclamou Wendy. Terra do Nunca ! Está aí uma terra que eu não sabia que existisse. As geografias não falam dela. E depois? Que ideia a sua, de aparecer por cá esta noite?

— "Eu costumo vir sempre, respondeu Peter Pan, para escutar do lado de fora da janela as historias tão lindas que sua mãe conta. Tantas vezes vim que sou capaz de contar uma por uma todas as historias que vocês já ouviram.

— "Mas como é lá na Terra do Nunca ?

— "Oh, uma terra linda, Wendy ! Temos piratas terriveis num grande lago, temos alcateias de lobos famintos que percorrem a floresta e temos uma tribu de indios ferozes, os Peles Vermelhas, como são chamados. E temos ainda as sereias.

— "Sereias ? repetiu Wendy batendo palmas. Com cauda ?

— "Com cauda, escamas e tudo. Sereias iguaizinhas a essas que você vê pintadas nos livros. Uma lindeza, Wendy !

Wendy não cabia em si de encantamento ante as maravilhas contadas por Peter Pan. Ele, porém, alegou que era tarde e tinha de ir-se embora.

— "Os meninos perdidos já devem estar inquietos com a minha ausencia, e ansiosissimos por ouvir o fim da historia que a senhora Darling contou hoje. Já sabem a primeira parte. Eu venho cá, ouço as historias ali da janela e depois conto-as a eles direitinho.

— "Não vá ainda ! pediu Wendy. Eu sei mais de cem historias, cada qual mais bonita, e se você ficar eu as contarei todas. Fique.

— "Mais de cem historias? Oh, que mina ! exclamou Peter Pan, batendo palmas. Nesse caso o melhor seria ir você comigo para a Terra do Nunca. Poderá contar todas essas historias aos meninos perdidos, poderá ainda remendar a roupa deles, pregar botões e de noite faze-los dormir tudo como a senhora Darling faz aqui. Oh, Wendy, venha comigo...

A tentação era enorme. Visitar um país daqueles, com féras e piratas e indios ferozes e sereias, e ter ainda toda aquela meninada para brincar ! Que bom não seria... Mas a menina vacilava.

— "Não posso, Peter Pan. Mamãe não o consentiria nunca. E alem disso, deve ser muito longe, essa terra.

— "Que importa que seja longe? Iremos voando, e para quem vôa não ha distancias.

— "Voando? Mas eu não sei voar, Peter Pan ! Que ideia...

— "Eu ensino, não seja essa a duvida. Em dois minutos deixo você voando que nem uma andorinha.

Aquilo era demais. Era ainda melhor do que ver sereias. Voar, voar... Wendy não pôde resistir á tentação e resolveu que iria. Em todo o caso, duvidou um pouco.

— "Já disse que ensino, assegurou Peter Pan com firmeza. Eu, quando digo, faço.

— "E ensina tambem ao Joãozinho e ao Miguel ? Se formos para lá teremos de ir todos.

— "Ensino, sim, claro que ensino. Está resolvida ? Vai mesmo ?

— "Estou resolvida, vou ! respondeu Wendy com firmeza e pulando da cama foi acordar os seus irmãozinhos.

João Napoleão e Miguel sentaram-se na cama, esfregando os olhos, e logo que souberam do caso deram pulos de contentamento. Gostavam de piratas e sereias ainda mais que Wendy e portanto ficaram ainda mais assanhados. Queriam partir incontinenti.

— "Isso, não! disse Peter Pan. Vocês precisam, antes de mais nada, tomar umas lições de vôo.

— "E' facil voar? indagou Miguel.

— "E' assim — e Peter Pan deu uma demonstração, esvonçando pelo quarto como se fosse uma borboleta.

Vendo a facilidade, os meninos tentaram fazer o mesmo. Subiram ás camas, ergueram os braços e atiraram-se. Mas foi só tombo. Esborracharam-se no tapete.

Peter Pan riu-se.

— "Não é assim, meninos. Eu tenho de soprar em vocês um pó magico, que certa fada me deu, e dizendo isto sacou do bolso uma caixinha do pó magico e soprou uma pitada no nariz de cada um; depois mandou que experimentassem, que subissem ás camas, erguessem os braços e dessem outro pulo para o ar.


Os meninos experimentaram e com grande assombro viram que estavam leves como plumas e que podiam equilibrar-se no ar com a maior facilidade.

— "Estou que nem esses balõezinhos de borracha que mamãe enche de gás, disse Miguel. Estou sem peso nenhum! e voou quasi tão bem como Peter Pan. Por falta de experiencia os tres voadores deram algumas cabeçadas no forro; mas alguns minutos depois estavam que nem uma andorinha que havia ficado presa no quarto dois dias antes.

Vendo-os nesse ponto, Peter Pan achou que não era preciso mais. Poderiam partir.

— "Muito bem, disse ele. Podemos partir. Sininho seguirá na frente, para indicar o caminho. Em segundo lugar vou eu com Wendy. Depois vai João Napoleão e por ultimo, Miguel. Aprontem-se para partir.

Foi uma correria. João Napoleão queria levar uma porção de coisas, mas teve que desistir porque ficaria muito pesado. Miguel correu ao vestibulo da casa em busca dum gorro e como não o encontrasse veio com uma cartola do senhor Darling na cabeça. Wendy resolveu ir como estava, de camisola mesmo.

— "Pronto? perguntou Peter Pan.

— "Pronto! responderam todos.

— "Então vamos lá. Um, dois e... tres!

Ouviu-se um prrrrr... e ergueram-se nos ares os quatro meninos, na ordem marcada pelo chefe e com a bola de fogo voando á frente para indicar o caminho. E lá se foram para a maravilhosa Terra do Nunca...

Justamente naquela hora a senhora Darling estava na sala de jantar contando ao marido a historia da sombra. O senhor Darling sorria.

— "Impossivel, querida. Isso ha de ser sonho. E' um absurdo.

Nisto soou o prrrrr... Julgando que fosse alguma coruja que houvesse entrado na nursery, a senhora Darling correu para lá. Ao ver a janela aberta e as tres camas vazias, deu um grito e desmaiou.


Neste ponto dona Benta interrompeu a historia, deixando o resto para o dia seguinte. Todos gostaram muito daquele começo e Narizinho observou que as historias modernas são mais interessantes que as antigas.

— Estou notando isso, vóvó, disse ela. Nas historias antigas, de Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é sempre a mesma — um rei, uma rainha, um filho de rei, uma princesa, um urso que vira principe, uma fada. As historias modernas variam mais. Esta promete ser muito boa. Peter Pan está com jeito de ser um diabinho levado da breca.

Dona Benta concordou que sim.

— Eu só não entendo uma coisa, disse tia Nastacia. Como é que a tal senhora... como é mesmo?

— Darling.

— Isso. Não entendo como é que a senhora Darli foi deixar a janela aberta. Quarto de criança a gente não deixa de janela aberta nunca. Entra morcego, entra coruja — e entram até esses diabinhos, como o tal Peter Pan.

— Boba! exclamou Emilia. Se ela não deixasse a janela aberta não podia haver essa historia. Se você fosse a mãe dos meninos deixava a janela fechada, não é? E que acontecia ? Cortava a cabeça da historia já no começo.

— Estou desconfiado, disse Pedrinho, que o tal pó magico de Peter Pan era o nosso pó de Pirlimpimpim.

— E quem nos garante que o tal Peninha, que deu a você o pó de Pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan? Aquela historia do Peninha ser invisivel com certeza foi arteirice de Peter Pan para nos empulhar.

— Pode ser. Tudo pode ser, concordou Pedrinho, pensativo.

Houve um silencio. Cada qual pensava numa coisa. Tia Nastacia pensava na franga que teria de matar para o almoço do dia seguinte. Dona Benta pensava num remendo a fazer no paletó de Pedrinho. Pedrinho pensava num jeito de arranjar mais pó de Pirlimpimpim. Narizinho pensava num meio de fazer Peter Pan vir visita-la no sitio. O visconde não pensava em coisa nenhuma. E Emilia?

Emilia saira da sala pé ante pé sem que ninguem percebesse, e logo depois voltou com a tesoura de dona Benta na mão. E deu jeito de cortar a cabeça da sombra de tia Nastacia, que enrolou e foi guardar no fundo de uma gaveta.

Ninguem percebeu a manobra, mas quando chegou a hora de recolherem-se e tia Nastacia foi apagar o lampião:

— Ué! exclamou ela espantadissima, vendo projetar-se na parede a sua sombra sem cabeça. Que coisa, santo Deus! Será que perdi minha cabeça?

E apalpou-se para verificar se estava mesmo sem cabeça. Só então se lembrou da passagem contada por dona Benta, e viu que alguem lhe havia cortado a cabeça da sombra.

— Isso tambem é demais! gritou ela. E' judiação. Cortar a cabeça da sombra duma pobre negra velha que nunca fez mal nem a um mosquito... Mas quem foi o malvado?

Olhou para a cara de Pedrinho, de Narizinho, do visconde e da Emilia e não viu em nenhum deles o menor ar de criminoso. Emilia, sobretudo, estava com uma carinha que era só botar num quadro e virava Santa Emilia — de tão inocente.

Dona Benta foi de opinião que aquilo só podia ser arteirice do Peninha, ou talvez do proprio Peter Pan que houvesse entrado na sala ás escondidas, no momento em que todos estavam mais distraidos com a historia.

A boa negra arrenegou, e lá se foi para a cozinha com a sua sombra sem cabeça, a coisa mais esquisita e feia que se possa imaginar.

— A gente não tem sossego neste sitio, resmungava ela. Esses meninos endiabrados não param com as reinações. Uma sombra que me acompanhava desde criança, tão direitinha, com cabeça e tudo — e está agora essa coisa esquisita, que nem aquela rainha dona Maria Antonieta que sinhá Benta contou que perdeu a cabeça na tal janela de guilhotina... Crédo!...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Vide Vol. 1.º desta serie.