Peter Pan (Lobato, 1935)/Capítulo 5

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CAPITULO V


O NAVIO DOS PIRATAS


NO outro dia tia Nastacia apareceu com o beiço ainda mais caido, porque a sua sombra continuava a desaparecer. Colocou-se entre o lampião e a parede e disse para dona Benta:

— Veja, sinhá. Só resta um tiquinho...

— E o visconde, que diz a isso?

— O visconde promete pegar o ladrão de sombra, como pegou o gato, mas ainda está "estudando", como diz ele.

Emilia, que andava de ponta com o visconde, meteu o bedelho.

— No caso do gato Felix ele descobriu tudo porque eu ajudei. Se eu não tivesse arrancado aquele fio do bigode do gato ladrão, queria ver! Esses tais detectives são uns grandes palermas...

— Sonso ele é, disse tia Nastacia. Mas a cabecinha dele pensa tão certo que até dá inveja na gente. Vocês vão ver como ele descobre o ladrão.

O visconde, que estava escondido debaixo da mesa, tudo ouvindo e observando, notou o torcimento de nariz da Emilia. E desde esse momento começou a desconfiar que a criminosa fosse ela.

Dona Benta sentou-se e dispôs-se a continuar a historia.

— Onde ficamos hontem? perguntou.

— Peter Pan havia saido da caverna para salvar os outros, disse Pedrinho.

— Sim, é isso. Peter Pan dirigiu-se para o navio dos piratas. Oh, era horrendamente feio esse navio! Feio e velho, de velas sujas e cordas sebentas, com um mau cheiro horrivel. Chamava-se a Hiena dos Mares — e era mesmo uma hiena em fórma de navio. Hiena vocês sabem o que é.

— Sei, disse Pedrinho. E' um animal da familia dos Hienidias, muito feio, cabeçudo, peludo, que só anda de noite e come carniça. Animal da Africa e da Asia. O urubú das féras.

Dona Benta aprovou a ciencia do menino e prosseguiu.

— Pois tinha esse nome o navio do Capitão Gancho. No mastro principal flutuava uma bandeira vermelha, com uma caveira negra sobre dois ossos cruzados em forma de X.

Para esse horrivel navio tinham sido levados os pequenos prisioneiros, e chegados lá foram arremessados com toda a brutalidade ao porão, onde havia mais ratos nojentos do que ha estrelas no ceu. Enquanto os coitadinhos tremiam de pavor no porão escuro, o chefe dos piratas passeava pelo tombadilho, muito satisfeito consigo mesmo por haver num só dia derrotado os indios e aprisionado os meninos. De repente parou para perguntar a Capacete:

— "Estão os prisioneiros bem acorrentados, de modo que não possam fugir?

— "Sim, Capitão.

— "Nesse caso, traga-os cá para cima, ordenou ele, tomando assento numa velha cadeira de braços, que lhe servia de trono.

Os meninos foram conduzidos á sua presença, acorrentados dois a dois. O Capitão encarou-os com ar feroz e declarou que seis deles iam ser lançados ao mar com uma pedra ao pescoço, e que dois ficariam no navio como grumetes, a fim de virar piratas.

— "Você ai do centro, disse ele referindo-se a João Napoleão. Você tem bom jeito para grumete. Que tal a ideia de ficar comigo neste navio?

João, que havia lido muitas historias de piratas e gostava de aventuras no mar, ficou logo seduzido com a perspectiva. Adiantou-se e disse:

— "Se eu ficar você me dá o nome de Jack, o Mão-Peluda?

O Capitão Gancho riu-se da lembrança e respondeu que sim.

"Nesse caso, fico! declarou João Napoleão, com os olhos a faiscarem de entusiasmo.

O chefe dos piratas fez a mesma pergunta a Miguel, o qual, em vez de responder, aproximou-se dele e, sem medo nenhum, bateu-lhe no hombro, dizendo:

— "Depende do nome que você me der.

— "Joe, o Barbanegra! Gosta?

Miguel gostou e declarou que ficava. Mas quando ele e João Napoleão souberam que para ser pirata a primeira coisa que tinham a fazer seria jurar guerra e odio ao rei, gritando: "Morra o rei da Inglaterra !" ambos desistiram da ideia. Como bous inglezinhos, conservavam-se leais ao seu soberano.

O Capitão Gancho ficou furioso e declarou que nesse caso teriam de morrer como os demais, afogados com pedras ao pescoço. Em seguida ordenou que trouxessem á sua presença a mãe daqueles meninos.

Wendy foi trazida de rastos e deixada sozinha em frente do terrivel chefe de piratas. Apesar do terror que esse monstro lhe inspirava, a menina soube dominar-se e não fazer má figura. O Capitão Gancho perguntou-lhe se tinha alguma recomendação a fazer aos filhos, dos quais ia separar-se para sempre. Wendy voltou-se para os meninos e falou deste modo :

— "Já que vocês têm de morrer nas mãos destes bandidos, que morram como verdadeiros herois. E' isto o que as suas verdadeiras mães diriam se estivessem no meu lugar. Viva o rei da Inglaterra!

— "Viva! Viva! gritaram todos os meninos, como se fossem um só.

Dar vivas ao rei da Inglaterra nas fuças do Capitão Gancho era o maior atrevimento do seculo. O chefe dos piratas espumou de colera, e ordenou que amarrassem Wendy ao mastro grande, donde teria de assistir á morte de todos os meninos, um por um. Assim foi feito e a corajosa menina lá ficou, que nem uma Joana Darc, no seu vestidinho cor de ouro velho e de chale ao pescoço.

Ia começar a matança. Os piratas trouxeram as pedras de afogar prisioneiros. O Capitão Gancho sorria com ar de delicias. Para aquele monstro, o maior prazer da vida era ver afogar prisioneiros.

Subito, o seu sorriso diabolico transformou-se em careta de terror. Um famoso tic-tac, muito seu conhecido, soara perto.

— "O crocodilo! exclamou ele, dando um pulo e indo esconder-se no fim do navio, atrás duma pilha de cordas. Os demais piratas para lá tambem correram, cercando o chefe com uma muralha de corpos. Os meninos, de respiração suspensa, ficaram á espera de ver o crocodilo surgir.

Mas não surgiu crocodilo nenhum. Em vez da féra apareceu na beira do navio a carinha de Peter Pan. Fez aos meninos sinal de bico calado e entrou á moda dos indios, agachado, de jeito que os piratas nada vissem. Trazia atravessado na boca o seu terrivel punhal e na mão direita, um despertador. O tic-tac que tanto apavorara o Capitão Gancho não era do crocodilo...

Peter Pan esgueirou-se pelo chão, feito cobra, e penetrou numa cabina, dentro da qual se fechou.

Tendo cessado de ouvir o tic-tac, o Capitão Gancho virou valente outra vez. Voltou ao trono, dando ordem para que se começasse a matança dos prisioneiros.

— "Vamos, comecem! gritou ele.

A resposta foi um coricócó de galo dentro da cabina. O chefe dos piratas empalideceu. Não podia compreender o que fosse aquilo, pois nunca existira galo nenhum a bordo da Hiena do Mar.

— "Capacete, vá ver o que ha na cabina, ordenou ele.

Capacete foi. Entrou na cabina e não saiu mais. Vendo que Capacete não reaparecia, o Capitão Gancho, muito palido, ordenou que outro pirata fosse ver do que se tratava. Esse segundo pirata, porém, tomou-se de tanto medo que em vez de obedecer lançou-se ao mar e foi nadando para terra.

— "Covardes! berrou o Capitão Gancho. Têm medo? Pois vou eu mesmo, para mostrar o que é coragem, e tomando uma lanterna dirigiu-se para a misteriosa cabina.

Entrou, mas incontinenti voltou atrás, dum salto.

— "Uma coisa assoprou e apagou a minha lanterna! Deve ser uma abantesma, ou qualquer monstro dessa laia. O melhor é lançarmos os prisioneiros contra ela. Serão devorados e nós economizaremos as nossas pedras de afogar. Vamos! Empurrem a meninada para a cabina da abantesma!

Era justamente o que os meninos queriam; mas não deram sinal disso, bem ao contrario resistiram, fingindo grande medo, e só entraram na cabina á força.

Os piratas são em regra muito supersticiosos. Acreditam em quanta bobagem ha. Uma das suas crendices é que mulher traz desgraça para navio. Por isso juntaram-se em conferencia para resolver o que fariam de Wendy. Enquanto conferencia vam na pôpa, Peter Pan saiu da cabina sem ser visto, foi ao mastro, soltou a menina e colocou-se em seu lugar, bem disfarçado com o chalinho ao pescoço.

Depois de muito discutirem, os piratas resolveram lançar ao mar a mulherzinha que estava atrapalhando a vida de bordo.

"Muito bem! exclamou o Capitão Gancho, fechando a disenssão. Assim seja. Lancem-na ao mar! Acabem logo com a vida dessa criatura que nos está trazendo desgraças.

Varios piratas dirigiram-se para o mastro a fim de cumprir a ordem do chefe. Parando diante daquele vultinho meio embuçado no chale disseram com voz de escarneo:

— "Chegou sua hora, menina. Nada no mundo poderá salva-la.

— "E' o que parece! gritou Peter Pan, arrancando o chale e espetando a espada no peito do pirata mais proximo. Depois soltou um grito de guerra: "Por Wendy e pelo Rei! Avança, meninada!

Foi uma coisa espantosa. Os meninos sairam da cabina armados com as melhores armas existentes no navio, e cairam em cima dos piratas como um bando de

vespas colericas. Os pobres piratas não sabiam o que pensar, pois estavam certos de que a abantesma já os havia devorado a todos. Foram tomados de panico. Uns jogavam-se ao mar; outros tapavam os olhos com a mão; outros, mais corajosos, resistiam.

— "Ninguem ataque o Capitão Gancho! berrava Peter Pan. Esse é meu só.

Travou-se medonha luta. Embora fossem mais fortes que os meninos, os piratas eram vencidos pela agilidade deles — e um a um foram sendo postos fóra de combate, ou forçados a jogarem-se ao mar. Ao cabo de alguns minutos só ficou em campo o Capitão Gancho, sempre atracado com Peter Pan.

Foi a luta mais bonita que ainda se viu no mundo. Peter Pan parecia um demoninho. Saltava como gato selvagem e dansava na frente do pirata, fazendo-o errar todos os botes da sua mão de gancho. E enquanto isso, tome lá um pontapé na barriga, tome lá uma cotucada no nariz, tome lá mais um galo na testa!

A agilidade de Peter Pan fazia que ele não perdesse um só golpe e evitasse todos os golpes arremessados pelo pirata. O Capitão Gancho estava já de lingua de fóra, como cachorro cansado. Suava em bicas, um suor muito fedorento. Tinha mais arranhões pelo corpo e galos pela testa do que cabelos na caheça. Em certo momento deteve-se, apavorado, e gritou:

— "Será que estou lutando contra um demonio? Peter Pan, diga-me, quem é você?

Peter Pan, como um galinho novo que sacode as asas ao nascer do sol, respondeu com um grito de atroar os ares:

— "Eu sou a Juventude ! Sou a alegria da vida ! Sou eterno e invencivel !

E zás, zás, zás, apertou o velho capitão numa tal roda viva de golpes que ele foi recuando, recuando, recuando até que chegou na beiradinha do navio e...

Tchibum ! Caiu n'agua, completou Emilia.

— Não. Caiu mas foi bem dentro da goela do crocodilo. O paciente animal tinha ouvido o barulho da luta e aproximara-se de mansinho, ficando rente ao navio, de boca aberta, á espera do resto da mão. E desse modo devorou para sempre o famoso chefe de piratas, com gancho e tudo...

— Bravos! exclamou Pedrinho. Eu sabia que ia suceder isso. Menino protegido pelas fadas acaba sempre vencendo...

Tia Nastacia arregalou os olhos.

— Crédo! disse ela. Imaginem um menino desses aqui no sitio! Era até capaz de serrar o chifre do rinoceronte. Crédo !...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.