Pobre Moisés que não foste!
A janela estava aberta ao luar: porém, de uma grande amendoeira, que subia quase apegada aos altos muros da casa, caíam sombras negras fazendo lavores imensos no pano do caiamento, e assim, era numa grande mancha, preta como uma nuvem de chuva, que a janela emoldurava-se, adquirindo as parecenças de um remendo quadrilongo, de um tampo de fogo, sobre um pano de trevas. Uma cabecinha loira despontou do ambiente luminoso, e rapidamente fechou-se. Ficou tudo no escuro cá fora, a não ser a face dos corpos onde batia o luar. O murmurejo das ondas ressoava como a escoar pelo chão.
O regato achatava-se morno e quase invisível sob rijos golpes de sombra. Um corpo alvo se encaminhava por ele acima, e ouvia-se o chape-chape dos pés.
A intervalos, o corpo resplendia de luar.
Ao depois, a janela abriu uma greta, como uma larga fita de fogo, e a fita fez-se mais larga, e, em seguida, a modos que rasgou-se e desapareceu. Ficou tudo no escuro outra vez, a não ser a face dos corpos onde batia o luar.
No dia seguinte, a noite estava zangada. A lua, que ontem era a princesa de pezinhos pequenos, hoje era a Maria Borralheira; tudo era cinza no seio do luar; nem as lindas sombras negras e nem os colora-mentos mágicos porejando encantos de poesia e saudosa tristeza. O céu queria chover, o céu queria chorar, o céu queria mais proteger a virgem que lhe confidenciara na janela aberta.
Virgem?!
Pois quem é que não conhece na vila o velho Antônio Faraó? É aquele que habita no sítio cheio de canaviais. Ele é o senhor da mulher loira que apareceu na janela. É um homem sem mácula. Jesus, então, por que é que a janela não se tornou a abrir? Pois aquilo não era a alegria dos raios da luz e a predileção das sombras da amendoeira? A amendoeira? cortaram-na!
E quem era aquele que subia a corrente fazendo chape-chape? Ele amava muito a mulher loira. Um dia ela disse-lhe: — Quando vires a luz na minha janela, sobe a amendoeira, e apega-te ao lençol que penderá da sacada.
E ele viera; mas, quando tornou a desaparecer na corrente, fazendo chape chape, jurou a si que ali não voltava mais. "Tu me enganaste! dissera ele, ao despedir-se dela. — Meu pai só planta em roçado novo. A capoeira é para se dar aos cavalos."
"Não compreendo" — respondera-lhe a amante. — E logo desatou a chorar.
O homem tinha o coração de fogo, porém a decepção apagou. E ficou de gelo. Assim, para nunca mais, desapareceu na corrente, fazendo chape-chape.
— O velho Antônio Faraó quase endoideceu. A mulher loira botou-se a ele como uma fera e disse-lhe:
— "Desgraçado!"
E calou-se. Não disse mais, porque estava toda cheia, desde o cérebro até ao ventre. Caiu para trás, e pediu veneno, a ele — que pelo amor de Deus matasse-a! Mas, neste ponto, ajoelhou-se, pôs as mãos, e pediu-lhe, cheia de lágrimas, que a deixasse viva, porque, santo Deus, no seu corpo de mulher palpitavam dois corações vivendo um da vida do outro.
Contudo, era tremendo e feroz o olhar que ela flechava para o pai de seu filho. E achava horrível a idéia dele, a de ter aberto a janela para a entrevista de um inexperiente mancebo, com o fim de salvar a honra.
"E então? blasfemara o velho, chacoteando, a remexer num saco de dinheiro — Porventura José não é o pai de Jesus?..."
Hediondo!
E os meses corriam, bem como as águas do riacho. Uma vez, vinha rompendo a aurora, e foi a primeira vez que a janela se abriu, desde que o mancebo veio e foi para nunca mais. Foi também a primeira vez que a mulher loira sorriu, desde aquela cena com o António Faraó. Agora ela Podia morrer, porque os dois corações que palpitavam no mesmo corpo se tinham separado: o seu filhinho nascera! E foi por isso que o sorriso da mocidade reabriu-lhe os lábios secos de mártir.
Mas era preciso salvar-se a honra de Antônio Faraó. A mulher loira desmaiara num frouxo de sangue. Nesse ínterim, desapareceu o seu filho. Ela acorda, ergue-se pálida, grita por ele, e, acima de suas forças, corre à janela donde sentia-se cheio o rosicler da aurora, se debruça, estira o pescoço, aflita...
Nas praias do riacho cavava um homem, com a ponta de um facão, uma covinha onde se poderia sepultar um botão de rosa.
Com as suas praias lavadas, o riacho parecia um poço comprido e interminável, manso, com uma correnteza que lhe esflorava apenas, e umas tremulações de quando um líquido quer abrir a fervura; de modo que as ondulações eram antes efeito de um ventozinho que a ameaçava engrossar. As águas, em si, aparentavam uma quietude, uma pachorra admiráveis.
O lugar, onde o homem cavara uma covinha, era sob o dossel de um bananedo. O sol, no limbo de uma larga folha de tinhorão, avivava transparências, desenhava-lhe veiames como em fina cútis de moça, e projetava embrazinhas, que o vento movia tremendo, para o pequeno cômoro que entupira a covinha onde sepultar-se-ia um botão de rosa.
Por cima do bosque o dia empoeirava deslumbramentos sem par. As flores se destacavam nas polpas enormes da folhagem, e pareciam rir de inocência.
Mais tarde caiu a chuva e o riacho encheu, subiu, trepou, até as moitas do bananedo. Agora, moirejava nas areias do leito a ação de uma volumosa corrente, improvisando cômoros e os desfazendo.
Nos tapumes, ao passar entre as estacas, a água se abria como dedos, a espumar e a marulhar. Escavava canais, espraiava e revolvia-se no polme do enxurro. A superfície líquida não era mais uma casquinha de espelho que em seu seio recebia um paraíso ideal pintado para debaixo do chão a golpes de sol e de claridade.
O turbilhão montava. E parecia um rio de lama, chicoteado pelos cordõezinhos da chuva. Caía sobre a natureza uma zoada infernal.
O sol, pé ante pé, rasgando uma brechinha entre as altas nuvens de repouso, furava pelo dossel do bananedo e descia até ao lugar do cômoro que encobria a covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. "Nada. Aqui não está coisa alguma." O sol falava consigo mesmo, gesticulando como um espião, na pontinha dos pés, com um olhar tão vivo que abria transparências no limbo das grandes folhas. Foi adiante.
O riacho tomara juízo, recolhendo-se ao seu leito modesto e voltando à pacatez de bom colega. Recebeu o sol com todas as cortesias. Acendeu rebrilhamentos à tona, encheu-se de imagens que pareciam um paraíso debaixo do chão, mostrou que tamanhamente amava aos seus amigos a ponto de conservar dentro de si o retrato vivo do bananedo, e dos tinhorões verdes e púrpuros, e das touceiras de borboletas, de tudo e de tomos, até do próprio céu que bem alto mora.
Porém ambos se retraíram quando avistaram, passando o caule do coqueiro caído que servia de ponte, a mulher loira que habitou a janela do castanheiro cortado. A imagem caía de águas a fundo com a cabeça para baixo. Aqui o sol acendeu-se mais, a fim de que o riacho gozasse da aparição, e pintasse grandes segredos, e fartasse o peito nela toda. Ela passou e foi direitinha ao lugar onde vira o homem cavando com um facão uma covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. E deu um grito, abugalhou os olhos, e caiu de joelhos, mãos postas para o céu:
— Ah! Ela olha para cima, o seu olhar se parece comigo, os seus cabelos são meus irmãos. Implora para cima, é a mim que ela pede, porque aqui quem manda sou eu — disse o sol, incandescendo raios de alegria.
— O que ela quer sei eu, que vi tudo — respondeu o riacho. — E cochichou com o sol, que se estendia sobre ele, num amplexo doirado.
Vamos, protejamos a pobre mãe!
— Mas olha, não vês tu aquele sujeito que atravessa a ponte e segue os mesmos passos da mulher loira?
— Que importa! Protejamos a pobre mãe! Ela é a judia cativa, tu és o Nilo, e eu sou o grande Deus dos oprimidos! Anda! Revolve-te!
Sobre a água estendiam-se natas de claridade trêmula ao fremor da corrente. Folhas maduras do bananedo e tudo o mais de ao redor, como que era chupado para o fundo, em perspectiva. E as águas em comoção pareciam de bronze doirado, pareciam de seda furtiva entre verde e cor de fogo. E esse manto a modos que se ia rasgando. O zéfiro soprava embalamentos doces na folhagem. O sol tremia paternalmente. E num grande riso de luz e de marulhos, o riacho apresentou ao sol, de repente, no chamalote encantador das águas, o corpo encantador de um cupidozinho de espumas.
A mulher soltou um grito alegremente desvairado e saltou para as águas. Porém não pôde. O homem que, armado de um facão, abrira a covinha onde poder-se-ia sepultar como um botão de rosa o corpozinho encantador de uma criança morta, estava ali e agarrou-a.
Ela ficou esbugalhando um olhar de pedra para a tumidez das águas. Ele também olhava assim.
E a corrente lhes parecia membrana viva de um animal, a modos que o lombo chato de uma cobra que não acabava de passar, de urna cobra insinuante, fascinadora, que hipnotiza.
Assim, deslizava o riacho por entre a vegetação, como uma serpe E ali, estava a mulher loira tolhida pelo homem do facão, semelhante um jacaré sob as garras de uma onça.
E o cupidozinho foi, foi, foi, e sumiu-se nas águas onde quando a gente andava fazia chape-chape.