Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/No meu aniversário
AO MEU AMIGO O SR.
Hélas! hélas! mes années
Sur ma tête tombent fanées,
Et ne refleuriront jamais.
(Lamartine.)
Não vês, amigo? — Lá desponta a aurora
Seus roseos véos nos montes desdobrando;
Traz ao mundo belleza, luz e vida,
Traz sorrisos e amor;
Foi esta qu’outro tempo
Meu berço bafejou, e as tenras palpebras
Me abrio á luz da vida,
E vem hoje no circulo dos tempos
Marcar sorrindo o gyro de meus annos.
Já vai bem longe a quadra da innocencia,
Dos brincos e dos risos descuidosos;
Lá s’embrenhão nas sombras do passado
Os da infancia dourados horizontes.
Oh! feliz quadra! — então eu não sentia
Roçar-me pela fronte
A aza do tempo estragadora e rapida;
E este dia de envolta com os outros
Lá s’escoava desapercebido;
Ia-me a vida em sonhos prazenteiros,
Como ligeira briza
Entre perfumes leda esvoaçando.
Mas hoje que cahio-me a venda amavel
Que as miserias da vida me occultava,
Eu vejo com tristeza
O tempo sem piedade ir desfolhando
A flôr dos annos meus;
Vai-se esgotando a urna do futuro
Sem do seio sahir-lhe os dons sonhados
Na quadra em que a esperança nos embala
Com seu fallaz sorriso.
Qual sombra vã, que passa
Sem vestigios deixar em seus caminhos,
Eu vou transpondo a arena da existencia,
Vendo irem-se escoando uns apos outros
Os meus estereis dias,
Qual naufrago em rochedo solitario,
Vendo a seus pés quebrar-se uma por uma
As ondas com monotono bramido,
Ah! sem jámais no dorso lhe trazerem
O lenho salvador!
Amigo, o fatal sopro da descrença
Me roça ás vezes n’alma, e a deixa nua,
E fria como a lagem do sepulcro;
Sim, tudo vai-se; sonhos de esperança,
Fervidas emoções, anhelos puros,
Saudades, illusões, amor e crenças,
Tudo, tudo me foge, tudo vôa
Como nuvem de flôres sobre as azas
De rabido tufão.
Onde vou? Para onde me arrebatão
Do tempo as ondas rapidas?
Porque ancioso corro a esse futuro,
Onde reinão as trevas da incerteza?
E se através de escuridão perenne
Só temos de sulcar ignotos mares
De escolhos semeados,
Não é melhor abandonar o leme,
Cruzar no peito os braços,
E deixar nosso lenho errar ás tontas,
Entregue ás ondas da fatalidade?
Ah! tudo é incerteza, tudo sombras,
Tudo um sonhar confuso e nebuloso,
Em que se agita o espirito inquieto,
Até que um dia a plumbea mão da morte
Nos venha despertar,
E os sombrios mysterios revelar-nos,
Que em seu escuro seio
Com ferreo sello guarda a campa avara.