Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Evocações/Primeira evocação

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PRIMEIRA EVOCAÇÃO

.......... Das sombras do sepulcro
Eil-a que surge placida e formosa
    Essa visão primeira,
Que me sorrio na quadra venturosa
    Da infancia prazenteira...

Sê mui bem vinda, ó flôr sempre lembrada
    De minha leda aurora!
Graças te rendo, pois a consolar-me
    Surges primeira agora.

Inda hoje mesmo, após tão largos annos,
Que repousas no leito funerario,

A’ minha voz acodes, e abandonas
Para escutar-me o gelido sudario...

Não; não morreste; — ou bella como outr’ora
A’ voz do meu amor hoje renasces!...
Tombão-te ao collo as nitidas madeixas,
E adoravel pudor te adorna as faces.

Não vens da campa, não, que nos teus labios
Vejo o frescor e a purpura da rosa;
Palpita o seio, e bincão-te os sorrisos
    Na boca graciosa.

Vejo-te os olhos limpidos, serenos,
Taes como costumava outr’ora vêl-os;
Nem dos sepulcros o halito mephytico
    Exhalão teus cabellos.

Tu vens direito da mansão celeste
A mim descendo, ó anjo meu formoso,
Com azas de ouro desferindo o vôo
    No espaço luminoso.

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Lembras-te ainda dos felizes dias,
Que deslisámos, antes de trocares
Pela patria dos anjos, que hoje habitas,
    A sombra de teus lares?...

Oh! quem me dera ver essas campinas,
De que me afasta tão fatal distancia,
E ver os céos, onde sorrio-me a estrella
    De minha leda infancia!...

E a fonte, e o musgo, aonde te sentavas
A’ sombra do florido limoeiro,
Ouvindo o trepidar harmonioso
    Do proximo ribeiro;

E os vargedos sem fim, onde alvejava,
— Em meio dos vergeis quasi encoberto, —
Teu lar ditoso, — ninho de alva pomba
    Em meio do deserto;

E do bosque a avenida solitaria,
— Tão grato asylo ao timido recato, —
E essa agreste alpondra, em que brincando
    Saltavas o regato.

Lá, nas tardes serenas, eu te via
Por entre os perfumados laranjaes,
Ou qual errante Nayade, vagando
    Nos campos teus nataes.

E ao teu passar, as arvores do bosque
Os ramos brandamente meneavão;
E o chão, em que pisavas, á porfia
    De flôres alastravão.

Briza amorosa bafejava aromas
Em torno a ti com placidos rumores;
E murmurando a fonte te mandava
    Um cantico de amores.

E eu te amava; – mas do meu affecto
Dentro em meu coração continha as lavas;
E o fogo, que n’esta alma então fervia,
    Nem sei se adivinhavas.

Eu era tão feliz, — e nem sabia
O nome a tão suaves emoções;
Nem pensei que jámais se esvaecessem
    Tão puras illusões.

E nossos corações erão quaes flôres,
Que o casto seio mal abrindo ao lume
De nascente manhã, dentro do calix
    Guardavão seu perfume.

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Mas ah! — no fundo do painel donoso
Vejo sinistra a campa, que se eleva!...
E’ lá que minha aurora para sempre
    Sumio-se em negra treva.

Ha bem tempo que dormes n’esse leito
Frio, que a dura morte preparou-te,
Ao fremito suave da palmeira,
    Que em teu berço, embalou-te.

Ha bem tempo! — e ás vezes me parece
Ser nosso amor uma reminiscencia
Apenas de outro mundo, em que dormimos
    O somno da innocencia!...

E é bem verdade que viveste outr’ora
Vida real de humana creatura,

Que no mundo tiveste o berço um dia,
    E n’outro a sepultura?

Ou foste só visão da fantasia,
Que em meus formosos sonhos de criança
Me fascinava a mente descuidosa
    C’um raio de esperança?...

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Vai, fantasma querido, volta aos bosques
De nossa infancia, — ás verdes ribanceiras
Do ribeirão, que vio de nosso affecto
    As emoções primeiras.

Debaixo d’esses céos de azul brilhante,
N’essas campinas de eternal verdura,
Dorme tranquilla aos placidos rumores
    Que a solidão murmura.

Lá vá de tarde o sabiá sozinho
Saudoso modular tristes endeixas;
E nos burityraes24 gemendo a briza
    Susurre eternas queixas.

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Vai-te, ó lindo fantasma! — n’este mundo
Não mais profanes teus pudicos véos;
Vai-te, que ha muito os cherubins saudosos
    Te aguardão lá nos céos.

Notas do autor[editar]

24 Burityraes; burity. Especie de altos e donosos coqueiros, bellos em si mesmos, porém ainda mais bellos pelas longas e alinhadas filas que formão pelos brejaes das vertentes ao longo dos chapadões.