Programa (Luís da Gama)
Dos Deuses o Democrito medonho,
Filho da negra noite e horrível sonho,
Que de quanto no Olympo se fazia,
Com desprezo satyrico se ria.
(Cand. Lusit.)
E' prologo, Senhores, não libello,
O que mostrar-vos vem Polichinello ;
E’ thema ou frontespicio de um volume,
Que será pouco a pouco dado a lume;
È’ obra de longada e resfolego,
E não de levadia, feita a prego:
Attentem todos, pois, sem exclamar,
Que os guizos agitando, eu vou fallar.
Bem sei que muita gente apavonada,
Que os fóros teem gozado de illustrada,
Com rotunda prosapia, mal cabida,
Contando-se feliz, cá nesta vida,
Boceja indifferente—Que um programma
E’ cousa mui sediça e já sem fama;
Que os Lynces— Litteratos de luneta—
Argonautas de chelpa na gaveta,
Fidalgos mais que os Reis do mundo inteiro,
Áltivos, como gallos de terreiro,
Exhibem, de improviso, os pensamentos,
Saltitantes, luzentes como tentos,
Lançados sobre a meza do gamão,
De annoso Boticario fanfarrão;
E que, apenas pisando o chão da praça,
A’ luz do sol a-pino, sem fnmaça,
Ao som dos atabales dos Jornaes
Dos amigos—irmãos universaes—
Do famoso congresso decantado
Do Elogio Mutuo conflado,
Recebem as pancarpias redolentes,
Com que zombam das turbas maldizentes ! ...
Mas isto nada prova, e tenho visto,
Se não que judas houve, e vendeu Christo ;
Que ha birbantes, charlatas de casaca,
Que impingem óvos podres á pataca ;
Que o silencio sagaz, que a velhacada,
São obras de Tartufo ou de empalmada;
Que o homem de verdade, sem refólhos
Tudo faz por pregão, á vista d’olhos.
Isto posto, sustento, sem detença,
Embora velha seja tal sentença,
Que por mais que se queira contestar,
Um prologo, por fim, tem seu lugar.
O prefacio, no Livro, é como a sopa,
Vem na frente, e prepara sempre a bocca;
E' garrida vedeta, mui lampeira,
Seductora, risonha e feiticeira;
E para acautelar contestação
Vou dar alguns exemplos de feição :
O tambor rufa a caixa, e vae na frente,
Vai-lhe apoz o colloso armipotente;
De gazes, a provecta natureza
Este globo formou de pedra teza;
Do pollen das antheras—sementeiras
Renascem as frondosas perobeiras;
Segundo a sacra lettra da Escriptura
Do cahos reverberou a luz mais pura;
Ao diluvio geral do Deus tremendo
Aviso precedeu do Céo Colendo;
As estrellas nasceram do infinito,
A areia faz-se em rochas de granito;
O ar tornou-se em chuva, a chuva em mares,
A pudica virtude em lupanares,
O Demonio foi anjo predilecto,
E corre que no Céo gozou de affecto;
E e proprio Padre-Eterno, que é barbado,
Teve buço macio, e foi pellado;
Evidente, pois, fica a todo mundo
Em classico brocardo, e bem profundo,
Que, por mais que se queira contestar,
Um prologo, por fim, tem seu lugar.
Do programma a razão tendo por dada,
Devo agora tratar, sem matinada,
Dos factos, dos heroes, e dos sucessos,
Que devem figurar nos meus processos,
E de tudo, por alto, dar noticia,
Que eu sou homem com faro de Policia.
As salectas prôesas, os talentos,
Glorias, artes, prodigios, monumentos,
Chafarizes soberbos moldurados,
Canaes de papelão, chapéos armados,
Chanfradas durindanas, barretinas,
Espingardas de pedra, lazarinas,
Da Cantareira o Fox, Rodovalho,
O potente Praxista, a grão Ramalho,
O redondilho Dutra, o Valladão,
O Campos Mello, ferrado ao Gavião,
O Rubino imponente, afradalhado,
De arrojante fallar, alatinado,
Bondes, carros, carroças, tropelias,
Dos frades as famosas fanforrias,
O rispido Souzismo, a Padraria,
Do Poncio enfarruscado a bizarria,
Os Pachecos valentes, Prados fortes,
E outros felisardos pelas sortes,
Em tremendos artigos, e de fundo,
Cantando espalharei por todo mundo.
Nem tam pouco esquecidos ficarão
O famoso banqueiro Gavião,
O Rogério de Salles—Malachias—,
Que só traga melão feito em fatias,
Que juro, com ardor de Dom Gigadas,
Em columnas guindal-os de almofadas;
D' America dourada, o tal logista,
Que tem caza ao quebrar da Boa-vista,
E da fronteira o Paço, que é barbeiro,
Metido entre o Cafè e o Padeiro;
O Momo curioso o—Militão,
"Senhor de gran tesoura e rebecão“;
O Bernard, de chapéo de para-raios
O Torres, resador de mil rosarios;
O Garraux, meditando além da pança
As tricas de Bismark sobre a França,
E as coleras do povo, em toda parte,
Contra a pêrra familia Bonaparte;
O Furtado, o Elias da Policia,
O Chaves, resador, por ter malicia,
Do Norte o Grão-Pachà—Padre Lauterio,
O Faria— Barão do Cemiterio,
O Sor Lins, de catana e de armadura,
Que dizem não mandar quinhão ao Cura,
Que usa de fivela e suspensório,
Manhoso, capadocio—e mui finorio ;
Thomaz Gomes, Mesquitas, Boticarios;
Roldoens de ribanceira e relicarios;
Pedagogos magriços, mestres-regios ;
Aguadeiros de becca, privilegios,
Rufando espalharei por toda parte,
Si a tanto me-ajudar baquêta e arte,
A golpes de tesoura e de rebeca,
De tudo hei de fazer leve peteca,
Guardando tam sómente, com respeito,
Quanto vem da natura, por defeito,
Ou róla pelos ares—as mazellas,
Que eu só vejo o que sahe pelas janellas;
Tudo mais ha de ter a impia sorte
De espatifado ser a malho ou córte,
E ainda que seja do mais alto gráo
Para alcofa ha de vir, em vara-páo,
Que eu pretendo tornar tudo em farello,
Ou eutão nao serei “Polychinello.”
O Falcão, de tabardo e de commenda,
Campando n’hum vapor, sem mossa ou fenda;
O Almeida Martins longo e magriço,
Com pernas de canudo ou de chouriço;
O Dias, alegrinho e tão cheiroso,
De dourada luneta, e vaporoso;
O Bom Brasiliense, grão-pagé.
Presidente do Club do café;
O rei dos coronéis—Paulo del grosso,
Que deixou de ser fino por ser trôço;
O Oliva, de corda e de cutélo,
Roldanete de gladio e de murzello;
O Mendes, Lopes Chaves, o Vieira,
Que nos tangos fadejam de fleira;
O Payão, que é só Payo na estatura,
Que a tripa não tem fóra, e nem grossura,
Que mineira linguiça mais parece
Si a memoria fugaz me não fallece;
D’alto abaixo serão analysados,
E em verso d'espavento decantados.
Tudo isto adubado com engenho,
No que pretendo pôr mui grande empenho,
Deve dar para rir a muita gente,
E aos proprios heróes, que alegremente,
Pachorrentos, dirão, mesmo comsigo:
—“Sempre é bom que o tenhamos por amigo.“ .....
Vai ter ponto o programma, que mais nada
Me fica por dizer, nesta jornada.
O papel acabou-se, e foi-se a vela,
Nem eu tenho que dar mais á tramela;
E fico do meu fado mui contente,
Por ter escripto muito alegremente,
Fallando em muita cousa, e nada dito,
Que tal ao começar, fôra meu fito,
Como falia aos augustos deputados
O Rei dos Botucudos celebrados;
E mostra tenho dado exuberante
De quanto póde um homem ser massante;
Mas creio que provei, sem vos massar,
Que hum prologo, por fim, tem seu lugar.
(Publ. no n. 1 do Polychinello de 16 de Abril de 1876)